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As Facções no Brasil e a Ideologia do Crime

Neste artigo, Bruno Paes Manso mostra a crueldade no interior das prisões e os efeitos colaterais dela no mundo do crime e no cotidiano.
Ilustração por Juliana Lucato.

A "Linha de Espancamento" é uma modalidade de tortura em presídios do Acre. Os detentos ficam enfileirados atrás de uma linha a pouco menos de um metro de distância da parede. Todos têm de colocar as mãos para trás: depois, são obrigados a jogar o corpo contra o muro, batendo a testa com força, numa tentativa cínica das autoridades de criar a modalidade da autotortura.

Em Pernambuco, palco das últimas rebeliões que produziram três mortes e dezenas de feridos, o Complexo do Curado, antigo Presídio Aníbal Bruno, é reconhecidamente um dos piores do país. Ambulatórios e refeitórios se transformaram em espaço para presos dormirem. Sem guardas suficientes para controlarem o caos, o Estado praticamente institucionalizou a figura do chaveiro, detento responsável pela imposição das regras internas, definindo desde a venda de alimentos até a negociação de drogas e amantes.

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Seria possível relatar centenas de casos de maus-tratos em presídios no Brasil, desde as revistas vexatórias a mulheres e filhas dos presos até as denúncias que não param de chegar por cartas. Esses casos virão à tona neste espaço, que começa hoje na VICE. Mas não agora. O objetivo deste artigo é partir do interior das prisões para mostrar os efeitos colaterais dessa crueldade cotidiana disfarçada de punição feita em nome do Estado.

Longe de coibir o crime, as torturas e o descontrole dos presídios são componentes que levam cada vez mais brasileiros a mergulharem fundo em suas carreiras criminais motivados pelo ódio ao sistema. Toda essa raiva serve como base da ideologia do crime que se dissemina com velocidade em todo o território brasileiro. Em pelo menos 22 Estados, as facções formadas dentro das prisões tentam organizar as fileiras de pessoas dispostas a ingressarem em atividades criminais, principalmente o tráfico de drogas, que produzem grandes assaltos. Essas atividades, que geram quadrilhas como as do novo cangaço nordestino, também incluem explosões em caixas eletrônicos, comércio de armas de grande e pequeno porte e muita, mas muita corrupção e violência policial.

O estreitamento dos laços entre criminosos em todo o Brasil começou a ocorrer ao longo dos anos 2000, junto com o aumento massivo do encarceramento em São Paulo e nos demais Estados. O país tem a quarta maior população prisional do mundo, com 578 mil presos, total que praticamente dobrou desde 2005. A farta presença de celulares nos presídios depois do ano 2000 ampliou a comunicação entre o lado de dentro e o de fora, assim como aproximou os pavilhões de todo o Brasil.

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"O crime fortalece o crime" é a máxima que resume a ideologia criminal de hoje. Prega a união dos criminosos como forma de autodefesa e como medida para ampliação dos lucros. A expressão, aliás, apareceu em um grampo feito em 2010 pelo Ministério Público de São Paulo em que Gegê do Mangue e Tiriça, dois líderes do Primeiro Comando da Capital ( PCC), negociavam com Nem, chefe da facção carioca Amigos dos Amigos (ADA), que dominava o crime na Rocinha, no Rio de Janeiro.

Os paulistas já mantinham aliança duradoura com o Comando Vermelho , rival do ADA, cujos conflitos produziram centenas de mortes nos morros cariocas. O armistício entre os rivais cariocas foi proposto pelos paulistas para ampliar o lucro do comércio de drogas. E foi aceito. Parcerias horizontais, que buscavam amarrar interesses em vez de impor vontades de cima para baixo, já vinham sendo feitas em todo o Brasil.

O NETWORK DO CRIME

O PCC nasceu em 1993, ano seguinte ao massacre de 111 presos no Carandiru , com a proposta de se tornar uma espécie de sindicato do crime. Pregava a união dos presos para aumentar a força de barganha com as autoridades e para coibir as disputas internas, algo que demorou a ocorrer. Só a partir de meados dos anos 2000, com a subida de Marcola para a liderança, caminho que promoveu um banho de sangue e de conflitos dentro e fora das prisões de São Paulo, o tráfico de drogas se tornou carro-chefe dos interesses da facção.

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O apetite para confronto dos ladrões de banco, que, até 2001, ditava o estilo de liderança do PCC, deu lugar à disposição para o diálogo e para a busca de parcerias dos traficantes. Se o ladrão precisa ser covarde para roubar, o traficante deve ser sedutor para ampliar mercados. Encerrados nas próprias disputas nos morros cariocas, as lideranças criminais fluminenses, que já vinham no tráfico desde os anos 1980, não tinham tempo para aprimorar suas práticas comerciais. Coube ao PCC promover essa nova estratégia para o mercado das drogas conforme ampliava sua hegemonia na distribuição em todo o território nacional.

As prisões se tornaram excelentes pontos de encontro e contato para se juntar os interesses de revoltados contra o sistema em busca de oportunidades de negócios ilícitos com grande potencial de lucro. São os chamados escritórios do crime, espécie de MBA para aqueles que desejam ampliar seu networking marginal. Com a estabilização das prisões em São Paulo e com os bondes permanentes de suas lideranças pelos presídios federais, o PCC conseguiu galgar passos para o lado de fora do Estado. O censo feito pela própria facção, apreendido pelas autoridades, mostrou que, além dos 7,8 mil integrantes em São Paulo, a rede conta com pelo menos 3,6 mil parceiros espalhados pelo Brasil.

Os dois Estados com maior número de integrantes são Paraná e Mato Grosso do Sul, justamente os que fazem fronteira com Paraguai e Bolívia, dois dos principais fornecedores de droga para o Brasil. Em jograis nas quadras de presídios paranaenses, presos foram filmados fazendo a reza da facção: "Fé em Deus, que ele é Justo! Se Deus é por nós, quem será contra nós? Um por todos. Todos por um. Unidos, venceremos. 1533. PCC. Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade, União. Para todos!".

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Um ponto importante da estratégia do PCC na distribuição de drogas é que o partido do crime não chega a outros Estados com violência para dominar mercados, impondo a mercadoria. Como um caixeiro viajante, o partido negocia para arregimentar parceiros e ampliar seus pontos de distribuição. Comprar do PCC e se aliar à facção, além do produto em si, pode garantir certo prestígio no crime ao varejista e apoio material para as disputas com rivais.

Longe de promover a trégua no mercado das drogas, portanto, as realidades territoriais vão determinar os conflitos. Na Paraíba, por exemplo, Estado para o qual o PCC fornece, a venda no varejo é disputada pelas facções Okaida (corruptela de Al-Qaeda) e Estados Unidos. Esses grupos se formam normalmente para lidar com as ameaças na prisão. Mas a rivalidade se estende às comunidades pobres no comércio de drogas. Região relativamente pacífica até 2001, a Paraíba saltou em dez anos da 18ª para a 2ª colocação entre os 26 Estados brasileiros nos quais os jovens mais morrem.

No Maranhão, as disputas intensas entre o Primeiro Comando Maranhense e o Bonde dos 40 também fizeram a taxa de homicídios mais do que dobrar em dez anos. O ápice da crise ocorreu no final de 2013 com a gravação das cabeças cortadas no presídio em Pedrinhas. Cabeças cortadas não são atos de monstros irracionais, mas sim uma tentativa de intimidação em um período cujos próprios homicídios não mais amedrontam.

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As parcerias de integrantes do PCC se espalharam pelos demais Estados. Parceiro da facção paulista, um preso do Ceará liderava de um presídio em Fortaleza a venda de drogas em Brasília. Fortaleza, palco do cinematográfico assalto ao Banco Central pelo PCC em 2005, foi a capital brasileira mais violenta em 2013.

Na Bahia, não houve acordo entre os integrantes ligados ao PCC, chamados de Caveirinha, e o Comando pela Paz. A violência baiana come solta como nunca com a ajuda da polícia, proporcionalmente a mais violenta do Brasil. Na semana passada, ela matou 13 de uma vez em uma chacina no bairro do Cabula, em Salvador. Pancadões no Morro de Mãe Luzia, em Natal; proibidões inspirados na facção gaúcha Bala na Cara; exigência de regalias nas prisões de Teresina.

Apesar dos sotaques diferentes, as ideais sobre o certo e o errado no crime são quase sempre as mesmas em todo o território nacional. Alimentando o ódio, as prisões e a polícia corrupta e violenta parecem, na verdade, fortalecer e engordar o monstro que vai nos engolir. O crime, faz tempo que deixou de ser uma atividade de quem não tem dinheiro para comer. O universo criminal é formado por pessoas que se cansaram de ser humilhadas e estão dispostas a pagar com a vida para passarem a humilhar. Ideias autodestrutivas de uma sociedade produzidas pelo nosso combalido e irracional sistema de justiça e de segurança pública.