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Tudo o que você precisa saber sobre a vida de Nelson Mandela

Quando teve seu prepúcio cortado, ele não pôde chorar de dor; seu pai morreu de tuberculose; um filho dele morreu num acidente de carro aos 24 anos e outro morreu de aids.
Ilustração por Victoria Sin.

Nelson Mandela deixou este planeta. E isso, no momento em que escrevo, é um pouco mais cru do que o tão ensaiado baixar de cortinas de uma vida de 95 anos. Para sul-africanos como eu, ele há muito tempo era o homem que segurava o céu. Quem vai fazer isso agora?

Nos próximos dias e semanas, teremos uma torrente de jornalismo excelente, igualmente ensaiado e um tanto previsível, para celebrar o homem. Não é esse o caso aqui. Isto não é “o Mandela que Conheci”. Não é o “Jesus do Soweto”. Não pretendo acrescentar mais entulho a toda a bem-intencionada hagiografia que vem por aí.

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Ao contrário, isto é como um antídoto. Uma história de vida picada em fatos interessantes menos conhecidos, estranhos momentos reveladores e coisas pessoais, pensadas para dar um sabor do homem real por trás do homem Morgan Freeman que ele se tornou. Algo para penetrar, se possível, no cheiro de incenso que está prestes a envolver nosso santo secular e fazer algo mais medido, talvez mais humano.

Ele Aprendeu Cedo que Quem Tem Tuberculose em Estágio Avançado Não Deveria Fumar Cachimbo
Quando tinha 9 anos, Nelson Mandela chegou da escola um dia e encontrou seu pai sacudido por um acesso de tosse sem fim. “Ele ficou na cabana por muitos dias”, ele escreveu mais tarde. “Sem se mover ou falar, então, uma noite, piorou muito.” Depois do ataque de tosse, ele pediu para fumar seu cachimbo. “Ele continuou fumando”, relembrava Mandela, “e então, com o cachimbo ainda aceso, ele morreu”.

Ele Provavelmente Herdou a Teimosia do Pai
Com uma formação muito rural e pobre, é improvável que Nelson Mandela fosse lembrado por algo além de ser muito bom em gerenciar vaqueiros. Então, o fato de seu pai ter morrido quando ele era criança foi — de uma maneira perversa — bastante oportuno. A família de Mandela tinha perdido sua modesta fortuna depois que o pai, um chefe, entrou numa disputa com oficiais coloniais ingleses sobre a propriedade de um boi. Mas logo após a morte de Hendry, o jovem Mandela foi viver com o rei thembu. Isso foi um favor póstumo a seu pai, já que o velho Mandela tinha apoiado a sucessão do rei muitos anos antes. De lá, ele foi mandado para uma escola missionária de elite e criado como parte da casa real.

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Ele Foi Se Encontrar Com Seu Prepúcio
O pedaço de carne foi enterrado quando ele tinha 16 anos, depois de ser cortado por um dos anciões tribais com uma faca cega. De acordo com a tradição xhosa, ele não podia chorar de dor. Então, à meia-noite, ele devia enterrar a pele no solo pedregoso do lado de fora de sua cabana. Pensando agora, isso foi uma boa preparação para o tipo de dor sem sentido que ele experimentaria mais tarde.

Ele Estudou na Oxford de Uhuru
Fort Hare, em Eastern Cape, era a única instituição de ensino superior na África do Sul a aceitar negros. O resultado? Nos anos 1940 e 1950, a universidade abrigou uma Primavera de Praga de intelectuais nacionalistas: o bom, o feio e o mau. Lá se formaram: Robert Mugabe do Zimbábue, Julius Nyerere da Tanzânia, Seretse Khama de Botswana e Kenneth Kaunda do Zâmbia. Desmond Tutu atuou brevemente lá como capelão. Mas Mandela não chegou a se formar.

Depois de ser eleito para o Conselho Representativo Estudantil de Fort Hare, ele se envolveu numa disputa com o chefe da universidade. Mandela recusou um ultimato e foi expulso de Fort Hare por insubordinação. Que grande causa tocou pela primeira vez a consciência desse guerreiro? A baixa qualidade da comida na cantina dos estudantes.

Até Seu Segundo Casamento Foi Menos Atribulado que o Primeiro
Mandela não negava que pegou sua esposa, Evelyn, pela garganta uma vez. A história dele era que eles discutiram, ela tirou um atiçador quente do fogo e ele torceu sua mão para que ela o soltasse. No geral, sua relação com Evelyn era muito desgastada. Uma vez, ele retornou para casa depois de pagar a fiança e descobriu que ela tinha ido embora e levado os filhos. Ela levou até as cortinas. “Por algum motivo, esse detalhe me incomodou mais do que tudo”, lembrava ele. Pensando de forma mais geral, na época, ele não era um caso atípico na cultura de onde vinha: ele se considerava o chefe da família, então, esperava ser obedecido. Muitos de seus colegas de ANC lembravam seu jeito conquistador como uma de suas principais características na época.

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Com sua altura, seus ternos bem cortados e seu físico de boxeador, o que não faltava eram garotas impressionáveis que adoravam ouvi-lo falar sobre libertação. Infelizmente, para a indústria hagiográfica, ele era um macho xhosa dos anos 1940, não um liberal de Islington de 1999. Anos depois do divórcio, Evelyn se aposentou de seu trabalho como enfermeira e foi viver no Transkei. Ela manteve um silêncio estoico sobre o ex-marido, mas disse à biógrafa Fatima Meer que ele foi “o único homem que ela amou e um pai maravilhoso”.

Ele Teve Duas Filhas Chamadas Makaziwe
A segunda foi batizada em homenagem à primeira, que morreu de meningite aos 9 meses, enquanto Mandela ainda estudava direito na Universidade Wits.

Seu Filho Mais Velho Morreu Num Acidente de Carro aos 24 Anos
Isso aconteceu quando Mandela estava na cadeia. “Recebi a notícia por volta das 14h30”, ele escreveu mais tarde. “De repente, meu coração pareceu parar de bater e o sangue quente, que corria livremente em minhas veias nos últimos 51 anos, congelou. Por algum tempo, não consegui pensar nem falar. Todas as minhas forças pareciam ter sido drenadas. Por fim, encontrei meu caminho de volta para a cela.”

Walter Sisulu, o ativista antiapartheid, apareceu um pouco depois. Mandela mostrou o telegrama da morte do filho a ele e os dois deram as mãos silenciosamente pelo resto da tarde. Seu pedido de comparecer ao funeral do filho foi negado. A carta solicitando essa permissão, como já era de se esperar, é comovente. A dor ainda o perseguiu: uma neta se afogou em 2008. E uma bisneta morreu num acidente de carro na véspera da Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul.

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Outro Filho, Makgatho, Morreu de AIDS em 2005
Apesar de ser uma pandemia nacional espalhada pela desinformação, mesmo alguns figurões da ANC passaram boa parte dos anos 1990 e 2000 morrendo de “pneumonia” ou “doença não revelada”. Mandela, no entanto, imediatamente dispensou os eufemismos convenientes, quebrando o tabu e chamando a doença do filho do que realmente era.

Apesar de Toda a Bravura, Por Dentro Ele Não Estava Tão Ansioso Com a Possibilidade de Ser Enforcado
No muito repetido discurso chave de seu julgamento, Mandela desafiava o estado a matá-lo. Mas, por trás da fachada, ele depois se lembraria: “A ameaça não evocava em mim o desejo de fazer o papel de mártir. Eu estava pronto para fazer isso se fosse preciso. Mas a ansiedade de viver sempre permanecia”.

Durante aquele ano tumultuado, ele e seus colegas pareciam mais preocupados com a etiqueta da morte. “No caminho de casa, paramos na cadeia para falar com os acusados”, recordava Joel Joffe, um dos advogados de Mandela. “Eles estavam calmos, vivendo agora à sombra da morte. A tensão tinha se tornado quase insuportável, mas a única questão que eles queriam discutir era como deveriam se comportar no tribunal se a sentença de morte prevalecesse.”

Se Você Vai Ficar 27 Anos Preso, Essa É Uma Boa Oportunidade Para Ler Guerra e Paz
O livro de Tolstói se tornou o favorito de Mandela. Apesar de não ter tempo para ler Proust, ele também gostava muito de Shakespeare (“Ele sempre tinha algo a dizer para nós, os prisioneiros, sobre a condição humana”) e o citava liberalmente em cartas para Winnie. O biógrafo Richard Stengel achava essas “as maiores cartas de amor já escritas, até onde sei. Elas estão no mesmo patamar de Robert Browning e o que mais você tiver”. No começo, naquela ilha deserta literária, a obra completa de Shakespeare e a Bíblia contrabandeadas eram tudo o que os prisioneiros políticos tinham.

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Quando Winnie Também Foi Presa, Nelson Enviou a Ela um Conselho Sobre Como Lidar Com Isso
O conselho era: medite por 15 minutos antes de dormir.

Todas as Vigílias na Trafalgar Square Não Valeram Muita Coisa, Mas a Inglaterra Teve pelo Menos um Papel Crucial na Construção da Democracia na África do Sul
Em 1981, Gordon Winter, o ex-espião sul-africano, escreveu um livro de memórias, Inside BOSS, no qual ele descreve como recebeu a dica sobre o plano do governo de “libertar” Mandela em 1969. Na época, os nacionalistas amantes do apartheid no comando da África do Sul tinham decidido mandar agentes disfarçados para ajudar Mandela a escapar e depois fazer ele ser “acidentalmente” baleado na captura. No final, o plano foi descoberto e minado por agentes da inteligência inglesa.

Pelo Menos Três Histórias Clássicas Sugerem Que Ele Secretamente Gostava da Cadeia
UM: Em 1985, P.W. Botha, o então presidente da África do Sul, ofereceu libertar Mandela sob duas condições. Primeira: ele teria que voltar para sua terra natal na Transkei e não ao que era tecnicamente solo sul-africano. Segunda: ele teria que renunciar à violência. Mandela recusou as duas condições e passou mais cinco anos na cadeia.

DOIS: Em 1990, outro presidente, F.W. de Klerk, disse que ele seria libertado em dois dias, sem nenhuma condição. Imediatamente, Mandela começou a tentar impor condições para sua liberdade, dizendo que precisava de tempo para se preparar e que gostaria de ficar na cadeia por mais duas semanas, se possível. “Nesse ponto percebi”, disse Klerk mais tarde, “que esse não seria um homem fácil com quem negociar”.

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TRÊS: Quando se aposentou da presidência em 1999, Mandela foi viver numa casa que tinha construído em Qunu, sua cidade natal. Essa casa é uma réplica da pequena moradia onde ele viveu no final mais luxuoso de sua sentença na prisão Victor Verster, em Paarl. Esse foi, aparentemente, um dos momentos mais felizes de sua vida. Sem ser molestado, ele tinha acesso a todos os livros não proibidos que quisesse e ele passou o tempo lendo e escrevendo, algo que não teve tempo de fazer durante os anos 1970 e 1980.

Caso Você Não Saiba, Longa Caminhada Até a Liberdade Foi Escrito por Um Ghost-Writer
Baseado em notas que Mandela fez na prisão, além de muitas entrevistas. Richard Strengel, o cara que escreveu o livro, é editor da revista TIME hoje. Mas mesmo que, digamos, James Fox andasse por aí com um gravador embaixo do nariz de Keith Richard para a Life, e conseguisse muitas anedotas e sentimentos para trabalhar em cima, Mandela frequentemente se provava complicado demais para que seu fantasma espremesse emoções dele.

Durante o processo de escrita, um colega de ANC, Ahmed Kathrada, agiu como intermediário entre o partido — que estava tentando impor sua própria censura ao conteúdo do livro, consciente de quão importante seria esse golpe publicitário — e os editores. Há uma transcrição de uma conversa entre Mandela e Kathranda, na qual o colega diz a ele que os editores anotaram os manuscritos pedindo por reações mais pessoais e emocionais em diversos momentos chave. “Como você se sentiu naquele momento?”, pergunta Kathrada de novo e de novo… E a pergunta é sempre desviada. Há uma dureza ao redor da maciez — uma couraça, uma falta de autopiedade, ou talvez apenas o desejo muito fora de moda de manter algumas coisas privadas.

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Apesar de Seu Papel Ser Exagerado Às Vezes, Mandela Salvou o País Sozinho Pelo Menos Uma Vez
Agora meio esquecido, o momento mais incrível de Mandela foi provavelmente em abril de 1993. Enquanto as negociações ainda estavam em andamento, um imigrante polonês matou o líder do Partido Comunista Sul-africano, Chris Hani, em frente à sua casa, sob ordens de um parlamentar de extrema-direita africâner. Em poucas horas, o país entrou numa rápida espiral de violência. No dia seguinte, mais de 70 mortes estavam associadas ao assassinato de Hani.

Mandela apareceu em rede nacional naquela noite. Não para pedir que as pessoas arrancassem antenas de carros e quebrassem tudo. Não para que elas saíssem às ruas com tacos de basebol até que todo o asfalto estivesse coberto de geleia de morango. Ele pediu para que elas se acalmassem.

“Hoje à noite, estou falando com cada sul-africano, negro ou branco, do fundo do meu ser”, ele leu no teleprompter. “Um homem branco, cheio de preconceito e ódio, veio ao nosso país e cometeu um ato tão vil que toda nossa nação oscilou à beira do desastre. Uma mulher branca, de origem africâner [uma testemunha do assassinato] arriscou sua vida para que soubéssemos o que aconteceu e para trazer esse assassino à justiça…”

Depois de um discurso apaixonado sobre a qualidade não racial do não racialismo, as coisas se acalmaram.

Ele Foi Bem Comunista
Em termos de heróis, Mandela sempre preferiu o fabianismo de Nehru à economia mais arejada de Ghandi. No começo dos anos 1960, ele esteve por um breve tempo no comitê organizador do Partido Comunista da África do Sul. Ironicamente, essa é uma das razões para o Apartheid ter durado tanto. Poderes ocidentais forneciam empréstimos e apoio tácito ao regime do apartheid porque ele era um baluarte contra a tomada da África do Sul pelo comunismo. Quando a União Soviética ruiu, eles não precisavam mais do RAS. Então, apertaram as condições para financiar Pretória, o que significou que o tesouro nacional, já dilapidado pelos custos das guerras estrangeiras e da segurança doméstica, estava quase falido e eles acabaram sendo arrastados para a mesa de negociação.

Claro, em 1994, Fukuyama já estava tagarelando sobre “o fim da história”, o Consenso de Washington existia e a economia neoliberal — apoiada pela Terceira Via Clinton/Blair — era a nova moda. Mandela, nessa época mais contente em ser o presidente do conselho em vez de um microgerente, acompanhou seus conselheiros, que apontavam um caminho de baunilha: alguma redistribuição, algumas leis trabalhistas, taxas baixas, nenhuma estatização e uma grande caçada por investimento estrangeiro. Os resultados foram variados. A economia tem crescido 3% ao ano de maneira constante e pouco espetacular. Mas hoje, o desemprego na África do Sul continua em 25%. Mais ou menos o mesmo de quando a presidência de Mandela começou.

Mesmo Dez Anos Depois De Sair da Presidência, Nelson Mandela Ainda Precisava de Um Visto Especial Para Visitar os Estados Unidos, Porque Seus Arquivos Ainda o Apontavam Como Terrorista
Mas acho que todo mundo já sabe que a Imigração dos Estados Unidos é uma bosta.

Mandela Não Podia Chorar Por Causa de um Dano No Canal Lacrimal, Causado Pelo Calcário, Depois de Tantos Anos Trabalhando Nas Pedreiras da Ilha Robben
:(

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Imagens de Nelson Mandela nas Colagens de Marta Parszeniew via, via e via.

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