De operário a oráculo do ringue: a trajetória do ex-boxeador e medalhista olímpico Servílio de Oliveira

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De operário a oráculo do ringue: a trajetória do ex-boxeador e medalhista olímpico Servílio de Oliveira

O ex-peso mosca nos contou como sua carreira pode inspirar o futuro do esporte no país.

Conteúdo produzido para a campanha

Quem vê o pequeno senhor discreto no canto de fora do ringue não faz ideia de sua força e agilidade em cima do quadrilátero. Atarracado, de pele escura, cabelos começando a clarear no topo da cabeça, ele está sempre alerta. Com os braços cruzados, presta atenção nos dois jovens que se atracam entre as cordas improvisadas. Os óculos pendurados na ponta do nariz disfarçam o olho direito que, prejudicado por uma cabeçada ocasional, perdeu 25% de sua avidez. Este é o ex-boxeador Servílio de Oliveira, de 68 anos, o primeiro brasileiro a conquistar medalha olímpica em sua modalidade e, hoje, um dos mais respeitados oráculos esportivos do país.

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O feito de Servílio é celebrado nas rodinhas de boxeadores até hoje. O peso mosca — categoria até 51 Kg — ficou com o bronze na Cidade do México, em 1968, depois de derrotar Leo Rwabdogo de Uganda. "Eles [da delegação brasileira] não queriam levar o boxe porque não tinha dinheiro nem tradição. Fomos pro torneio Latino-Americano e fizemos quatro campeões. Esperávamos que eles levassem os quatro e, não, eles resolveram mandar somente o Expedito Alencar e eu", comenta, 48 anos depois do pódio.

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Paulistano, nascido em criado na Vila Simões, quebradinha do bairro do Ipiranga, na zona sul, Servílio estava no meio de uma fila de 13 irmãos, sete homens e seis mulheres. "Foi uma infância comum e corrente de menino da periferia, com poucas possibilidades de estudo, tendo que trabalhar para ajudar a família", conta. Aos 11 anos, começou a ajudar a botar dinheiro dentro de casa. Aos 13 começou os treinos, já com certo estilo, segundo ele mesmo, que não poupa elogios às suas habilidades. "Eu era técnico e agressivo. Me adaptava de acordo com o meu adversário e procurava fazer aquilo que mais me convinha." Sua entrada no boxe tem um nome: Éder Jofre. "Todo mundo queria jogar futebol, mas aí surgiu o Éder Jofre e toda a molecadinha da periferia queria praticar boxe", conta. "Os meus irmãos compraram umas luvas e, quando iam pra escola ou pro trabalho, eu chamava os meus coleguinhas pra treinar comigo no porão de casa." Ele explica que os títulos do ídolo Jofre, bicampeão mundial na categoria peso pena, criaram uma legião de aspirantes a boxeador. "Ele foi campeão do mundo no dia 18 de novembro de 1960 e inflamou todo mundo tal como aconteceu com o tênis aqui do Brasil quando o Guga [Gustavo Kuerten] ganhou o Roland Garros. Eu fui um dos meninos que procurou acompanhar o Éder."

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Jab. Foto: Guilherme Santana/VICE

No final dos anos 60, Servílio começou a se destacar nos torneios amadores. Foi campeão no Campeonato Popular de Boxe Amador da Gazeta Esportiva, vice-campeão paulista e campeão brasiliero. Em março de 1968 foi campeão latino-americano de Santiago, no Chile, e, no mesmo ano, em outubro, faturou o bronze nas Olimpíadas. Leia também: Felipe Kitadai quer quebrar mais uma medalha

A profissionalização veio só um ano depois, mas não nos moldes que estamos acostumados hoje. Para ser atleta, Servílio tinha dar expediente no chão de fábrica. "Eu era operário", diz. "As empresas levavam os atletas, mas você tinha que desempenhar as oito horas de trabalho para defender o clube, porque não tinha patrocínio." Funcionário e atleta da Pirelli, figurava na elite do boxe. "Fiz boas lutas e sempre subi no quadrilátero com 100% das minhas possibilidades. Nunca subi no ringue dizendo: 'pô, eu não tô bem'. Se eu não me desse bem na luta é porque não tinha que me dar bem." Isso até 3 de dezembro 1971.

O dia da luta contra o Moreno. A luta contra o americano Tony Moreno é uma das grandes batalhas do boxe mundial. Foram 10 rounds de uma trocação severa e, até hoje, é relembrada em quase todo especial de boxe que você vê pela TV. "A luta que eu fiz com o Tony Moreno foi uma luta dura", conta Servílio. "Se eu desse distância pra ele eu seria nocauteado porque ele era maior e pegava muito forte. Tive que encurtar com ele, busquei o tempo todo. Foi questão de sobrevivência. Falei:'Ou é você ou sou eu'", relembra. Nesta luta, porém, Servílio levou muito mais do que os socos habituais. Uma cabeçada de seu opositor lhe tirou 25% da visão do olho direito. "Foi um acidente, um encontrão que nós tivemos…involuntário. Ele fez o papel dele. Acho que ele foi um lutador leal", explica. E aí se gaba do resultado. "Eu fui até o final e tive o braço erguido no fim."

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No habitat natural. Foto: Guilherme Santana/VICE

Depois da vitória épica, Servílio parou de lutar. Mudou-se para o Chile. "Minha mulher é chilena, a conheci em 1968 no Latino-Americano e, quando não pude lutar mais, escolhi o Chile pra morar", conta. O boxeador teve seus dois primeiros filhos fora do Brasil, se firmou na terra de Neruda, mas um imprevisto da pior espécie – o totalitarista – o trouxe de volta à São Paulo. "Vivi o golpe militar no Chile, perdi o emprego e tinha que sustentar minha família. Não era justo eu ficar na dependência dos meus sogros. Peguei minha família e vim pro Brasil. Foi difícil se adaptar aqui, porque eu já tava adaptado lá". Outros três filhos vieram. Quatro anos e sete meses depois do acidente, Servílio voltou a lutar. Fez cinco lutas e ganhou as cinco. "Quando eu fui disputar o título sul-americano no Chile contra o Martin Vargas eles alegaram, atrás do regulamento, que todo boxeador com menos de ¼ de visão em uma das vistas não poderia lutar. Fizeram isso para que a luta não acontecesse. Eu tava muito bem e podia perfeitamente ganhar do chileno, mas eles tinham que proteger a galinha dos ovos de ouro deles e foi isso que eles fizeram". O fim da carreira definitivo foi em 1978.

Saco de areia, adversário da vida toda. Foto: Guilherme Santana/VICE

Depois disso Servílio se manteve à beira do ringue. Por 20 anos foi coordenador de boxe no São Caetano e manager de atletas. "O melhor momento da minha vida pra conhecer os países foi após ter parado de lutar, exercido a função de manager e ter levado atletas pra lutar lá fora. Viajei muito". Ele elenca algumas dessas trips pelo mundão véio sem porteira. "Eu tive cinco vezes na Rússia, seis vezes na Alemanha, duas vezes na Dinamarca…."

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Hoje acompanha o trabalho dos filhos, os Oliveira Brothers. Na última edição do Forja Campeão, tradicional competição do boxe brasileiro, faturaram cinco dos 10 títulos. Servílio acompanha de perto também a trajetória do filho Ivan Oliveira como técnico e dos netos Luiz Gabriel e João Victor, o Bolinha, como atletas. Se debruça em elogios, mas mantém os pés no chão. "Eu acho que os meninos vão indo muito bem e que eles têm grandes chances de defender o Brasil e conquistar medalhas, mas se isso não for possível, eles vão ganhar dinheiro lutando boxe, porque a gente tem os caminhos", diz. "Se aqui não tiver possibilidade tem os Estados Unidos, tem a Alemanha, tem um monte de lugar que a gente tem contato e eles poderão ganhar o dinheirinho deles."

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À beira do ringue. Foto: Guilherme Santana/VICE

Relembrando a morte recente de Muhammad Ali, Servílio levanta questões que saem do quadrilátero. "O Muhammad Ali foi um cara que eu sempre admirei, não só como atleta, mas como ser humano. Ele era um cara que sabia o que queria da vida, brigou pela emancipação do negro norte-americano e eu tiro o meu chapéu pra ele". Enquanto a molecada se enfrenta no ringue do CEU de São Mateus, Servílio faz breves comentários, sempre elogiosos, sobre o futuro do esporte. Comenta a postura, agilidade e destreza dos atletas que está ajudando a evoluir. De braços cruzados mantém o olhar atento. Nessa hora faço a pergunta: e as Olimpíadas? O ex-boxeador vê o copo meio cheio. "Com todas essas verbas que foram implantadas a partir de 2001, o Brasil teve mais condições de participar de torneios internacionais e isso dá gabarito, te dá potencialidade pra se equiparar com times de outros países", afirma. "Os meninos nossos são experientes e estão muito bem. Além disso, ao estarem no Brasil, têm muito mais chance do que se estivessem disputando os jogos olímpicos em outro país."

Se Servílio falou, tá falado.