"Sou travesti e moro num abrigo masculino da prefeitura"

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"Sou travesti e moro num abrigo masculino da prefeitura"

Recentemente, a prefeitura de São Paulo inaugurou um abrigo para pessoas em situação de rua com quartos separados para travestis, transexuais e transgêneros. Fomos até lá.

Fotos por Felipe Larozza 

De terça a domingo, das 6h30 até as 17h, Samanta bate cartão num restaurante da zona norte. Ainda que travesti, usa tudo no masculino quando fala de si. Às vezes se confunde e fala os dois. "Sou cozinheiro/cozinheira." Sua vida é um pouco melhor do que das quase 15 mil pessoas em situação de rua que existem na cidade de São Paulo. Além de trabalhar com carteira assinada, ela tem uma vaga fixa no recém-inaugurado Centro Zaki Narchi, um abrigo enorme localizado na zona norte da capital. Dividido em três unidades, o complexo conta com 900 vagas masculinas e quartos exclusivos para travestis, transgêneros e transexuais.

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Samanta acha positivo dividir um quarto com outras quatro travestis. "Quando você mistura homossexuais, travestis e rapazes tem confronto. Muitos criticam, não aceitam. Aqui, eles não podem entrar no nosso quarto, nem nós nos deles. Existem regras."

Aos 6 anos, ela foi deixada em um orfanato. E assim viveu o tempo todo, pulando de abrigo em abrigo. Ao trabalhar na noite como prostituta, se deparou com o álcool e as drogas. "Trabalhei uns sete, oito anos. Morava num lugar e pagava diária pra cafetina. Mas, depois, vi que aquilo lá não era vida. Eu era escrava. Pensei que poderia sair da prostituição e arrumar um emprego. Que seria uma coisa mais digna", conta. Há pouco menos de dois meses, tem se dedicado à cozinha e está feliz da vida. O salário de R$ 1 mil ainda não é o suficiente para alugar um espaço só pra ela, mas está nos planos. Na hora da foto, pergunto se ela gosta de Beatles. "Adoro."

Mantido pela prefeitura, o abrigo é dividido em três unidades. Todos que chegam lá começam pela primeira. Conforme o comportamento do hóspede, é possível avançar para a unidade 2 e 3. Uma equipe de assistentes sociais e psicólogos ajudam com novas perspectivas de vida e encaminham para tratamento e empregos. A ideia é que o Centro Zaki Narchi vire um modelo para outros abrigos.

O lugar é novo, limpo. Ainda que os banheiros da unidade 1 estivessem com um cheiro fortíssimo, quase insuportável. Quando avistamos uns adesivos da Dilma na parede, Moreira, assistente social e coordenador do espaço, foi logo tirando um por um. "Eles que colam", explicou. Espelhos estão por toda a parte, inclusive na entrada. "É importante que eles se vejam. É importante que eles queiram mudar", suspirou - empolgado e inspirado. A todo momento, ele pegava o celular para mostrar algo relacionado ao Centro: fotos, vídeos da rapaziada fazendo uma roda de samba.

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Ali, conversei com um abrigado mais velho que disse ser alemão e passou minutos me ensinando a falar seu sobrenome, Gütler. "Se tirar o G e colocar H fica parecido com Hitler", falou.

Outro rapaz, mais novo, disse que queria criar uma espécie de campeonato de "palavra". Inocente, perguntei se era de rima, e ele me explicou que era sobre religião.

Transitando pelas unidades, tive o olfato seduzido pelo cheiro de comida. Dona Tereza, cozinheira há menos de uma semana do Centro, me passou o cardápio da janta: arroz, feijão, músculo com legumes, salada de acelga, suco de limão e melancia de sobremesa. "Eles só não são muito chegados em salsicha", revelou.

Pergunto a opinião de Jefferson Franco, um dos abrigados, sobre a convivência com as travestis. Ele me responde que "melhorou bastante. Não vou mentir: já tive relação, mas não aqui dentro. Tem gente que respeita, mas tem alguns que não respeitam. Eu não tenho nada contra. Eu respeito".

De blusa pink e calça jeans colada, Vivian diz que é tratada normalmente, "como se fosse hétero". Ela considera importante ter um lugar só para travestis, transexuais e transgêneros. "Já passei por outros abrigos, mas graças a Deus não tive muito problema. Em alguns, homens e mulheres ficavam separados. Não tinha espaço LGBT. E nós ficávamos no feminino."

Liguei para o Beto de Jesus, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que também considera a iniciativa da prefeitura positiva. "A principio, não vejo isso como segregação. Vejo como possibilidade de respeito a diferença", diz. Ele pergunta se eu sei o que significa a expressão "aquendar a neca", método utilizado para esconder o pênis. "As travestis têm procedimentos para a montagem do seu corpo que são muito particulares. Fazer isso em qualquer ambiente poderia causar constrangimento para ela mesma e para outra pessoa. Fica muito mais confortável se organizar entre elas."

Às vezes pode ser confuso lidar com tantas particularidades de gênero e orientação sexual. Beto conta que outro dia uma juíza o consultou sobre uma travesti. "Devo colocá-la num abrigo para homens ou mulheres?", perguntou a magistrada. Ele explica que o importante é respeitar a vontade da travesti e deixá-la onde for mais confortável. "Essa especificidade não é um privilégio. É um respeito a essa diferença."

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