"Eles Não São Brasileiros"

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"Eles Não São Brasileiros"

Acompanhamos as marchas da Família com Deus Pela Liberdade e a Antifascista que aconteceram ao mesmo tempo nesse sábado, em São Paulo, e uma coisa pareceu bem clara no final: Deus não deve curtir cubanos, desenrola um sertanejo e só usa verde e amarelo.

A tentativa paulista de reedição da série de manifestações cinquentenárias conhecidas como Marcha da Família com Deus pela Liberdade aconteceu nesse sábado com concentração na Praça da República às três da tarde. Os policiais já cercavam o local desde às 14h, onde acontecia a usual feirinha de artesanato. No começo, ficou difícil reconhecer imediatamente quem estava lá para marchar ou para comprar: em uma barraca que parecia feita por encomenda com o tema do protesto, entre várias parafernálias verde e amarelas, as bandeiras eram vendidas a 50 reais, a camisa a 40 e as sacochilas transadas e patrióticas para guardar o apito, os iPads e o Crocs por 25 reais.

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Um ônibus preto com equipamento de som, daqueles com cara de caveirão, servia de palanque. Outro carro de som aguardava o início da marcha do outro lado da Praça: não conseguimos nenhuma informação com a organização sobre quem financiou os dois veículos. Os organizadores e entusiastas da suposta causa militar expuseram suas reivindicações em alto e bom som: fim da corrupção, morte ao comunismo, intervenção militar, #vemDeus e aqui não é Cuba.

De uma barraca onde se lia “Crie seu próprio cartaz”, coisas como “Cadê o meu porte de arma?”, “Ave Maria” e “Rachel Sheherazade me representa” saíam aos montes, assim como os xingamentos e palavras de baixo calão vociferadas pelos representantes. No evento do Facebook, tal atitude é condenada, porque lógico, criancinhas não podem ouvir “Filhos da puta”, mas saudações fascistas e acusações xenófobas estão OK — até ensinamos a diferenciar uma coisa da outra quando precisar no futuro.

Enquanto os protestos #nãovaiterCopa usaram a inevitável Copa do Mundo como pivô para pedir melhorias nos setores de transporte, saúde e educação, a da Marcha da Família condenava Cuba, a foice e tudo aquilo que os participantes julgavam não agradar um tal de todo-poderoso. A pequena ilha servia como uma grande vilã e fonte de tudo o que não presta no mundo. “Porque Comunismo não é cultura, é ausência de cultura” me falou um judeu que pediu para não ser gravado e identificado, pois sábado não é dia de aparecer dentro das tecnologias. De acordo com ele, jovem banqueiro que tinha acabado de sair do trabalho, o salário mínimo e os auxílios como Bolsa-Família são os principais motivos para pessoas pobres não saírem de casa para trabalhar, “assim como pessoas do Norte e Nordeste vivem com 20 reais, dormem em redes e não precisam de abrigos ou casas muito implementadas, pois eles estão satisfeitos do jeito que estão, só a gente que sai perdendo”.

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Um dos manifestos mais curiosos foi quando um cara, apresentado como Marcelo Denoni de Osasco, indagou “por que dar dinheiro para Cuba e trazer médicos de lá, quando eles claramente trazem o comunismo junto? Eu sou a favor de trazer médicos da Inglaterra, da Espanha, de Portugal…”. Bem, se eu entendi direito, ele não quer que o país volte ao estado militar de 50 anos atrás, mas vai mais longe e incita uma recolonização europeia. E o mesmo cara também incentivou um boicote aos energéticos, “essas drogas sintéticas que entram nas mentes dos nossos jovens e deixam os jovens 15 dias sem comer, por isso que não estão aqui conosco, eles estão destruídos”.

Apesar dos anúncios de que a marcha apoiava a democracia e a igualdade, repórteres, pessoas de vermelho e black blocs eram tachados de comunistas e prontamente expatriados. “Os brasileiros que querem mudança devem se unir. Mas juntar nosso movimento com os black blocs: nunca. Eles não são brasileiros, são comunistas e recebem dinheiro por isso. O Brasil é verde e amarelo, não é preto e vermelho, entendeu?”, declarou Isabella Trevisani, uma das organizadoras da Marcha. “Eu conheço blocs lá de Ferraz, eles vão porque recebem 150 reais, são jovens de periferia e vão precisar do dinheiro. Infelizmente, não posso falar os nomes porque todos são menores e conheço as famílias.” Quando perguntei se ela não teria medo de deixar o legado de uma segunda ditadura militar para as futuras gerações, como estamos ainda resolvendo pendências da primeira, ela disse: “Olha, eu teria mais medo de deixar um governo comunista e ditador para os meus filhos, onde o aborto é liberado, a droga é liberada, homossexualismo é normal… Não, eu vim de uma família conservadora e a religião hoje também não é respeitada, eu não quero deixar isso para os meus filhos”.

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Isabella Trevisani, organizadora e hater de black bostas.

Líder da Marcha e facebooker incondicional, o Bruno Toscano deu uma ideia do que era sua ditadura militar. “Eu via o respeito entre as pessoas. Existiam gays e eram respeitados. Os negros sempre foram respeitados. Esse governo pilantra que está aí foi quem mais massificou o preconceito entre as classes, pobres x ricos, empresário x empregado, preto x branco, hétero x homossexual. Eu mesmo fui comissário de bordo por cinco anos e nunca tive problema com nenhum amigo meu, eu os amo e quando falo dou beijo no rosto, e não tenho problema com isso aí.” Daí um repórter atrasado lhe perguntou pela milionésima vez o que ele sentia ao tocar um protesto que há 50 anos resultou no golpe militar e se ele acreditava que mais uma vez eles poderiam chegar ao poder: “Por que não? Vamos continuar com outras passeatas, essa é a primeira de muitas que virão. O fascismo é fascinante, deixa gente ignorante fascinada. Nosso povo vive na ignorância, graças a esses caras que não investem na educação”.

A marcha saiu às 16h da Praça da República em direção à Praça da Sé pelo Viaduto do Chá, sem nenhum conflito durante todo o percurso — se não contar os sertanejos e os hinos que saíam dos caixas e das vozes em diferentes tempos. Ao chegar na praça, policiais bloquearam o acesso a uma farmácia, onde duas pessoas foram presas e um policial saiu levando a bengala de um sósia do Hitler (com bigodinho e gel na franja), que estava o tempo todo cercado por pessoas vestindo branco. Pouco antes, uma garota tinha sido espancada e expulsa por usar uma camisa vermelha e desafiar alguns dos manifestantes. Filmamos isso e semana que vem teremos o vídeo.

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Curiosos saíam de lanchonetes, prédios e ficavam logo atrás da linha policial querendo saber o que as pessoas estavam pedindo ali. Alguns nem sabiam o que significava uma intervenção militar, mas quando eu explicava que aquele pessoal afirmava ser a solução mais rápida para “limpar” o governo, eles não hesitavam em olhar a marcha com olhos de aprovação. Outros eram abertamente contra, como Maricel, a professora de artes que foi só para ver se pessoas que apoiam um governo militar existiam de verdade. Ela achou todo mundo muito velho.

Ao contrário dos protestos contra a Copa, em que a polícia sempre solta o gás de misericórdia para dispersar os restos dos manifestantes e dar o “The End” do rolê, dessa vez, eles continuaram patrulhando todas as vias de acesso à praça até que o último manifestante corresse dos cracudos que dormiam e jogavam baralho em paz em seus colchões. Alguns organizadores continuaram discursando no carro de som enquanto o público ia se dispersando enquanto o dia ainda estava claro. Eu até esperei que uma grande missa fosse realizada, já que saímos da frente da Igreja da Sé, mas apesar de figurar no título, Deus não foi visto durante o percurso.

Nessa mesma praça, algumas horas antes, um movimento de oposição à Marcha conseguiu concentrar cerca de 1.500 pessoas. A diferença de ideologia entre os dois movimentos era perceptível mesmo de longe, pelas cores das camisetas e bandeiras que balançavam com o vento, que trazia uma fina garoa à Praça da Sé lá pelas três horas da tarde. Nenhum verde e amarelo que não fosse da vegetação da praça era avistado e, aos pés da Catedral, faixas vermelhas e pretas eram finalizadas com tinta branca e amarela por alguns organizadores, integrantes do grupo de Ação Antifascista do Brasil, enquanto outros distribuíam folhetos e cartazes nas mesmas cores. Todos criticavam de alguma forma o fascismo e a ditadura. Um garoto, com seus 16 anos, tirou da mochila uma bandeira do Brasil. O verde e amarelo destacava-se pela primeira vez entre as outras faixas e as cores atraíram a atenção de outros manifestantes. O garoto empunhou uma lata spray de cor branca e, meio de qualquer jeito, pintou a letra A, de anarquismo, no círculo azul. A presença da bandeira, mesmo que personalizada, não durou muito. O pano logo se transformou em cinzas, na mão do mesmo garoto, no instante em que os organizadores proferiam as primeiras orientações de cima do carro de som alugado que acompanhou o grupo.

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Uma lista de oradores foi organizada e, pouco a pouco, cada um teve seu momento com o microfone. Um dos melhores foi, sem dúvidas, Eduardo Suplicy, que de cima do caminhão cantou um trecho da música "Blowing In The Wind" do mestre Bob Dylan para incentivar os manifestantes a exigirem mudanças e repudiarem o retrocesso. Era dessa forma que, deste lado do centro da cidade, a intervenção militar era classificada: um retrocesso. E, entoando gritos contra o fascismo, o grupo seguiu em direção à Estação da Luz, onde costumava ficar o temido prédio do Departamento Estadual de Ordem e Política Social (DOPS), símbolo da violência característica do período que sucedeu o golpe de 64. O evento da marcha de oposição, intitulado Movimento Antifascista, contava com o dobro de confirmações em relação à Marcha da Família e essa diferença se perpetuou nas ruas. Os manifestantes eram trabalhadores, sindicalistas, militantes de partidos de esquerda, punks, black blocs, sem-teto e senhores que viveram grande parte da vida sob o governo militar, todos caminhando tranquilamente escoltados por policiais militares munidos de escudos e cassetetes, felizmente, não utilizados. O clima esquentou somente uma vez, ainda na concentração, quando uma mulher vestindo a bandeira do Brasil avançou na multidão em defesa dos "bons costumes", acusando todos de estarem incentivando o golpe comunista. Empurrada por um grupo ofendido, que tentou rasgar a bandeira, ela se escondeu atrás de alguns policiais e fugiu do local em uma viatura. A chegada ao destino final foi marcada por um coro de vaias, seguido de mais uma série de discursos e uma salva de palmas ao presente – em que a ditadura sobrevive apenas como sentimento saudosista, aparentemente, de poucos.

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