10% de visão, 100% dos recordes nacionais: as braçadas de Raquel Viel rumo ao pódio paralímpico

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10% de visão, 100% dos recordes nacionais: as braçadas de Raquel Viel rumo ao pódio paralímpico

Com a melhor marca brasileira em todas as sete provas de natação, atleta de Vinhedo busca o maior desafio da carreira: a medalha nas Paralimpíadas Rio 2016.

Foto: Guilherme Santana/VICE

Numa piscina coberta em Indaiatuba, no interior de São Paulo, Raquel Viel, 33, surge nas águas muito à frente de seus companheiros de natação. Suas pernadas, braçadas e viradas são velozes, sincronizadas, perfeitas. Parecem sempre deixá-la muitas voltas adiante de quem está na raia ao lado.

Ela está acostumada à solidão da liderança: é, desde o ano passado, a recordista brasileira em sete modalidades da natação — todas as que disputa. Em sua especialidade, o 100 metros costas, já cravou a marca de um minuto, 16 segundos e 12 centésimos, o recorde pan-americano da categoria paralímpica.

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Com baixa visão por uma doença congênita que também afeta a visão de seus dois irmãos mais novos, Raquel passou a vida toda enxergando cerca de 10% do mundo ao seu redor. Aos 25 anos, meio que por acaso, começou a nadar e iniciou uma carreira meteórica cheia de medalhas: mais de 500 segundo suas contas. Além das competições nacionais, ela participou das Paralimpíadas de Londres, em 2012, e faturou o sétimo lugar nos 100 metros costas. Agora, para as Paralimpíadas Rio 2016, em setembro, quer um retrospecto melhor.

Ela nos recebeu durante um treino para o indíce paralímpico, segundo ela leve, mas que perdemos as contas de quantas vezes cruzou a piscina de 25 metros. Com voz doce, timidez e muita segurança de seu talento, ela nos falou sobre a vida dentro da piscina, a visão, o preconceito, a acessibilidade e, claro, sobre a expectativa para a maior competição da modalidade.

Foto: Guilherme Santana/VICE

De onde você é?
Eu nasci em Vinhedo [cidade no interior de São Paulo há quase 80 quilômetros da capital paulista] e moro lá até hoje. Você enxerga alguma coisa?
Eu tenho 10% de visão. Mas como foi? Você foi piorando a visão ou nasceu assim?
É congênito. Teve uma época que piorou um pouquinho, mas sempre tive baixa visão. Então você não teve uma ruptura para adaptação, né?
Eu cresci assim já. Agora nem parece que é 10%, parece um pouco mais, porque você se acostuma. Eu te vi caminhando por aqui com muita desenvoltura, é por que você já conhece bem o lugar?
É, os lugares que você frequenta são bem mais fáceis. Você já sabe mais ou menos onde estão as coisas. E quais são as dificuldades do seu dia a dia?
Tenho dificuldade para pegar ônibus porque vem escrito. Tive muita dificuldade na escola porque quando estudei não tinha muita ajuda, eu tinha que me virar. Eu tinha que dar um jeito de ter as coisas porque ninguém procurava as coisas ampliadas para mim. Se eu não conseguia copiar da lousa, tinha que copiar de alguém, essas coisas. Mas como você fazia? Você lê em braile?
Não, uso o texto ampliado só. Eles não me ensinaram braile porque eu tinha que desenvolver a visão para aproveitar o máximo dela. Só usei letras ampliadas a vida toda. A gente conversou pelo Facebook antes da pauta e fiquei pensando como você fazia.
Eu uso mais o ampliado, mas hoje os celulares usam sistema de voz também. Eu posso falar que ele digita. Eu posso te mandar mensagem de voz também, não é tão difícil.

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Foto: Guilherme Santana/VICE

Há quanto tempo você nada?
Desde 2008. São oito anos já. É pouco tempo se você pensar bem, né?
É, comecei tarde. Mas você começou treinando pra valer?
Sim. Comecei treinando em Vinhedo, mas como lá não tem uma equipe paralímpica de alto rendimento, passei a vir pra Indaiatuba. Mas aprendi a nadar nas escolinhas de lá. Agora eu venho praticamente todo dia pra cá, de segunda a sábado. Quem foi que reconheceu o seu talento?
Eu sabia nadar e participava de uns torneios master [acima de 30 anos] e um professor uma vez me disse que eu poderia nadar no paraolímpico porque eu nadava muito bem. Em 2008 você começou a nadar e competir? Como foi isso?
É, comecei no circuito Caixa, que é o Brasileiro. Foi a minha primeira competição pro paralímpico. E quando você começou a se destacar?
No primeiro ano em que eu nadei já bati o recorde brasileiro da categoria. Em 2009 foi a primeira vez que fui pra seleção. E quais são os seus melhores tempos?
Tenho sete recordes brasileiros. De todas as provas os recordes são meus. Só isso, né?
E tenho o recorde pan-americano do 100 metros costas. Deixa eu entender. Em 2008 você virou atleta profissional e vem ganhando tudo desde então?
É, o campeonato brasileiro eu ganho bastante. Ganhei cinco medalhas nos jogos Pan-americanos e fiquei em quinto lugar no mundial. E para as paralimpíadas você ainda não tem o índice?
Não, teremos quatro seletivas esse ano. Qual a sua expectativa?
Primeiro é me classificar. Todo atleta agora tá focado pra estar no Rio. Se eu participar, quero estar na final. Qual é o indíce da sua categoria?
Tem o indíce A, que é o terceiro tempo do mundo, e é quem vai praticamente ganhar medalha nos jogos. E tem o indíce B que são os seis melhores. O indíce B é exatamente o melhor tempo que eu já fiz na minha vida. Que é o sexto tempo do mundo, que é 1:16:12 (um minuto, 16 segundos e 12 centésimos). Eu tenho que repetir isso ou fazer em menos. Isso do 100 metros costas?
É. Do 50 livre o tempo é mais baixo. Fiquei com o oitavo ou nono tempo ano passado. O indíce é 30:08 (trinta segundos e oito centésimos) e eu tenho 30:10.

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E quais provas você pretende disputar?
Na minha classe só vai ter 100 metros costas e 50 metros livres. 50 livres não é muito a minha especialidade, vou tentar o 100 costas. Mas vai tentar os 50 livre também?
É, também, mas os 100 costas eu nado melhor. Você acha que tem chance de medalha?
As duas primeiras do mundo têm um tempo bem baixo. Se elas vierem pra cá competir, o que é bem provável, não tenho como chegar no tempo delas, mas no ano passado o melhor tempo do mundo é um segundo abaixo do meu. Entre o terceiro e o sexto a diferença é de um segundo, um segundo e meio.

O que tem que ter na piscina diferente de uma competição para quem enxerga?
A piscina é igual. O que eu uso só é aquele bastão pra virar no costas [ferramenta usada por alguém de fora da piscina para avisar ao nadador quando ele se aproxima da borda], mas a natação pra deficiente praticamente não tem nenhuma adaptação porque as pessoas não usam as próteses. É diferente, por exemplo, do atletismo. Na natação alguns deficientes usam o tapper [bastão] e alguns atletas usam adaptação pra saída – tipo, quem não tem as mãos pra se segurar na saída usa uma corda na boca. O que pode mudar um pouco é a regra.

Foto: Guilherme Santana/VICE

Como assim?
Ah, por exemplo, na natação comum às vezes você é obrigado a chegar na borda com as duas mãos e no paralímpico tem gente que não tem, você tem que só fazer o movimento. Enfim, há algumas exceções.

A idade que você começou a treinar é uma idade que muita gente acha tarde. Você teve que lidar com muitos comentários a esse respeito?
As pessoas falam que não evolui mais, mas eu melhorei. Até o ano passado os meus tempos baixaram. Meus melhores tempos são do ano passado. Essa é a segunda paralímpiada que você tem chance de disputar. Você acha que tem chances de aguentar mais quatro anos em alto rendimento?
Se eu aguentar treinar, sim. O treino é muito forte e o Luiz [o treinador] é bem exigente. Se eu continuar evoluindo eu vou treinar até onde der. Um ano de cada vez.

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E como você conheceu o seu técnico?
Eu nadava por um clube de Campinas, mas eles não iam mais levar os atletas paralímpicos pras competições. Eu conheci o Luiz indo pra uma competição. No começo falei pra ele só deixar eu usar o nome da associação daqui pra eu poder competir. Aí ele foi me convidando pra vir treinar e cada vez fui melhorando mais aqui com ele. Comecei uma vez por semana, depois duas. Hoje eu faço oito treinos semanais aqui com ele.

E qual a importância dele pro seu desenvolvimento?
É tudo. Ele me ajudou muito na natação e acho que tudo que melhorei foi por causa do treino. Quantas horas você passa na água por semana mais ou menos?
Depende muito da fase do treino. Tem época que a gente nada muito e acaba ficando duas horas, duas horas e meia por treino. Agora estamos numa fase de um pouco menos de treino porque precisamos começar a descansar pras seletivas.

Você tem ideia de quantas medalhas você tem guardadas?
Tenho mais de 500 porque eu nado muita competição de master. Faz parte do meu treinamento. Amanhã acho que vou pra Pirassununga nadar. Não é uma competição pra deficiente, é só categoria por idade. No ano passado, bati dois recordes do circuito, 100 e 200 metros peito. Essa segunda era desde 2006. Isso me incentiva mais a nadar. Quando a competição não é pra deficiente, parece que me empolgo mais. E como são as competições do master?
As pessoas se sentem incentivadas, mas muitas vezes elas não gostam de perder pra mim, não. Fica justa a competição?
Eu sou deficiente, mas eu só treino. Elas não são, mas trabalham, têm outra profissão. A natação pra elas acaba sendo um lazer. Então, acaba ficando igual.

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Foto: Guilherme Santana/VICE

Como a falta de visão aguçou outros sentidos do seu corpo?
O que eu acho é que não deve ser melhor, a diferença é que eu acabo usando mais. Às vezes as coisas que você vê eu preciso ouvir. Por exemplo, pra você atravessar a rua, você vê; para eu atravessar, preciso prestar atenção no som do carro. E como é isso?
Às vezes vou pegar o ônibus e sei diferenciar pelo barulho do ônibus pra onde ele vai, porque o motor é diferente. Às vezes um ônibus de determinada empresa tem um barulho diferente do outro. E quando não dá pra distinguir?
Eu, como tenho baixa visão, uso uma lupa que me ajuda bastante também. Com ela a minha visão chega a 50%. Dá pra ver qual é o ônibus que vem vindo. O problema é que ela só dá pra usar parada porque é como um binóculo.

Eu reparei que você não está com bengala.
Eu não uso.

Em situação nenhuma? Por quê?
Ah, quando falaram pra fazer o teste pra usar, eu não quis, eu já tinha acostumado a andar, consigo diferenciar o degrau muitas vezes pelas cores. Eu nasci com problema neurológico, então eu não tenho nada na retina, na córnea. Consigo ver bem as cores. A ausência da bengala te faz passar despercebida?
Um pouco. Eu tinha muita vergonha quando era criança. Eu tinha muita vergonha na escola, vergonha de ler alguma coisa, porque as crianças tiravam sarro de mim por colocar o papel muito próximo do rosto. Eles perguntavam se eu ia comer o papel. Eu passei a vida disfarçando, hoje não ligo mais.

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Nos jogos paralímpicos tem umas nomenclaturas. S11, S12. Como elas funcionam?
S é de swimming. 11, 12, e 13 são as classes de deficiência visual. De 1 a 10 é físico. 11, 12 e 13 visuais e 14 é intelectual.

E qual é a diferença entre o 11, 12 e 13?
O 11 é cego totalmente, o 12 e 13 é baixa visão. Pra competir o que você precisa apresentar neste caso?
Preciso apresentar um parecer médico explicando que eu tenho baixa visão, que meu caso não tem solução nem passando por cirurgia e lá você passa por uma avaliação com os médicos. Reparei que você tem os arcos olímpicos tatuado no pulso.
Foi um presente do Luiz. Nós dois fizemos. Eu fiz antes de ir pra Londres.

Foto: Guilherme Santana/VICE

Você trabalhava antes de começar a treinar?
Fiz faculdade de fisioterapia. Passei em um concurso público em Vinhedo, eu trabalhava no atendimento do ambulatório em um posto de saúde. E na faculdade como foi pra se adaptar?
Acho que tinha um pouco de preconceito na faculdade. Uma vez só porque tirei uma nota muito alta a professora olhou com espanto pra mim. Não é porque não enxergo que não consigo aprender. Eles confundem muito isso. A deficiência visual não interfere na parte cognitiva. Em outros lugares é comum ter esse tipo de preconceito?
Sim, no cartório de Vinhedo não me deixaram ser testemunha do casamento da minha irmã. Era só assinar um papel, e a mulher queria que eu provasse de algum jeito que eu sabia ler. Não quis me submeter a isso, já fiz faculdade, não preciso provar que sei ler em cartório. Ela falou que só deixava eu assinar o papel se lesse um texto em voz alta pra ela e escrevesse uma parte do documento que ela ditasse. Não quis passar por isso. Não fui mais lá. Você tem dois irmãos mais novos, né?
Sim, e eles nasceram com o mesmo problema. Eles enxergam mais, mas também tem o mesmo problema. Seus pais têm algum problema de vista?
Não, mas eles eram primos, por isso a gente tem isso.

E como foi sua criação?
Minha mãe morreu quando eu tinha 13 anos. Meu irmão mais novo tinha 10 meses. Depois disso fomos criados pela minha avó materna. Ela faleceu faz pouco tempo. Hoje eu moro com meus irmãos só. Na infância que brincadeira você mais gostava?
Eu brincava na rua com as amigas. Era boneca, casinha, eram mais coisas tranquilas. Eu até tentava brincar de correr, mas era perigoso. E o que levou para dentro d'água?
Você se sente livre, independente.