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​Adeus, Andrzej Zulawski

O obscuro diretor polonês morreu nesta quarta-feira (17) após uma luta contra o câncer.

Still do trailer de Cosmos, o último filme do diretor. Foto via.

Com o lançamento de Cosmos, seu primeiro filme depois de um longo hiato de 15 anos, o cineasta, roteirista e ensaísta Andrzej Zulawski morreu nesta quarta-feira (17), com 75 anos, após lutar contra o câncer. Seu filho, o também cineasta Xawery Zulawski, postou em sua página no Facebook sobre o estágio terminal da doença. Algumas horas depois, Zulawski se foi.

Andrzej poderia facilmente figurar na lista de diretores obscuros europeus até que, por uma feliz obra do acaso, muitas cenas do seu filmePossessão (1981) foram revisitadas em gifs e fotos perdidas pela internet. Dos círculos franceses de cinema e de cinéfilos do mundo inteiro, Possessão acabou se tornando um cult nos meio virtual, especialmente no Tumblr. O duo de tumblr-goth Crystal Castles ajudou a ampliar a onda, usando trechos da famosa "cena do aborto no metrô" como clipe oficial para a faixa "Plague".

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Claro que resumir Possessão e a trajetória do cineasta apenas pelo interesse no Tumblr é injustiça. Nascido em 1940 na Polônia , Andrzej começou sua jornada no cinema como assistente do diretor Andrzej Wajda até lançar, em 1971, seu primeiro longa. The Third Part of the Night é sobre um ex-soldado atormentado pelos fantasmas da Segunda Guerra Mundial que perde sua família, assassinada brutalmente pelos alemães. Seu segundo filme, Diabel, é uma história violenta sobre o soldado Jakub, que é guiado pelo próprio demônio no século XVIII. Esse filme foi censurado pelo regime comunista polonês, acarretando no banimento de Zulawski do país.

Com isso, Zulawski se mudou para a França, onde realizou a maioria de suas obras. Ele se casou com a atriz Sophie Marceau, que se tornou inevitavelmente sua musa, atuando em três filmes do marido.

Andrzej Zulawski na época de divulgação de Cosmos. Foto via.

Não há sequer um consenso entre os fãs de Zulawski em qual gênero Possessão deveria se encaixar. Ele é descrito alternadamente como um filme de terror, um drama, uma conspiração política ou simplesmente um filme de "body horror". Provavelmente, ele é tudo isso e mais nada. O longa foi filmado inteiramente na Alemanha Oriental durante a Guerra Fria e conta a história de um tormentoso final de casamento entre Anna e Mark, interpretados por Isabelle Adjani (que ganhou sua primeira Palma de Ouro em Cannes e seu primeiro César pela performance) e Sam Neill.

É um registro de divórcio horrível entre um homem controlador e constantemente ausente no ambiente familiar por causa do seu emprego misterioso e uma mulher que aos poucos começa a mostrar a perda completa da sua saúde mental ao anunciar que irá deixar sua família para viver com seu amante, um alemão caricato, pseudobudista/artista que quase parece um alívio cômico da trama. Eles gritam entre si, brigam no meio da rua e praticam todos os tipos de atos de desespero como tentativas de suicídio, agressões e constantes sabotagens.

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O desespero dos personagens começa a crescer em alta velocidade durante a história. E os indícios estão lá, descarados, quando vemos o filho do casal perambulando pelo apartamento abandonado dos pais e os personagens deixam de trocar de roupa, usando durante quase o filme inteiro figurinos sujos de comida e sangue. A própria Anna começa a sabotar sua beleza e gerar um monstro, literalmente, de si mesma. Esse monstro começa a tomar forma gradativamente à medida que Anna se entrega aos seus delírios de loucura. Inclusive, não é de se espantar se o próprio Cronenberg, mestre do body horror, tenha bebido na fonte de Zulawski para fazer suas próprias obras como o longa Filhos do Medo.

Acima de tudo, Possessão fala sobre o como amor pode ser cruel. E Zulawski conseguiu mostrar a faceta de todos nós quando nos vemos presos em um relacionamento em que ninguém está feliz. Seus personagens são caricaturas de nós mesmos, nos agarrando a fatores inevitáveis em alguns casamentos. Um filho, uma casa, os móveis comprados em conjunto e todas as desculpas inventadas para justificar a infelicidade do amor. Um teatro horrível, filmado com uma câmera rodopiante e coreografado como uma peça de Pina Bausch.

Zulawski ainda lembra que há algo maior na história desse divórcio, constantemente trazendo a Alemanha Comunista ao filmar à distância soldados alemães fazendo a guarda do Muro de Berlim como se a insanidade do casal estivesse sendo observada o tempo todo. O próprio diretor declarou em uma entrevista que esse é um filme completamente pessoal e que foi escrito durante um processo doloroso de divórcio:

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_Possessão _nasceu de uma experiência completamente íntima. Depois de ter feito_ That Most Important Thing , voltei à Polônia para buscar minha família (a qual, na época, era minha mulher e meu filho) para trazê-los à França. (…) Porém, quando retornei à Polônia, vi exatamente o que o cara em Possessão vê quando abre a porta do seu apartamento: uma criança abandonada em uma casa vazia e uma mulher que está fazendo alguma coisa em algum lugar. É, basicamente, muito íntimo. Hoje, anos depois disso, consigo recordar que os diálogos feitos em certas cenas na cozinha e certas cenas íntimas foramescritos depois de um dia angustiante. É muito incrível como uma coisa tão íntima se tornou quase um ícone. (…) Acredite, é mentalmente perturbador ver que seu pequeno filme privado se tornou algo em que tantas pessoas reconhecessem algo de si mesmas. Ainda penso nisso, 30 anos depois._

Para além de Possessão, os outros longas de Andrzej não deixam de ser memoráveis. Em That Most Important Thing: Love (1975), Zulawski mostra um fotógrafo que se envolve com criminosos e outras criaturas do submundo para financiar um filme a fim de uma dar um papel de protagonista a uma atriz decadente de filmes B. La Femme Publique, de 1984, tem uma das cenas mais desconfortáveis do cinema: uma bela atriz se sente enojada durante uma sessão de fotos ao perceber que os envolvidos estão fazendo pornografia, enquanto ela apenas dança livremente. Agora, com o lançamento de Cosmos, vemos o último retorno do cinegrafista à tradição de trazer às telas personagens complexos, idiossincráticos e presos na suas próprias loucuras e mediocridades.

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Além da sua obra cinematográfica, Zulawski também escreveu vários livros durante sua vida. Filho de um escritor, Miroslaw Zulawski (autor do romance adaptado em Diabel), Andrzej cresceu em um ambiente envolto pela arte, prova que se dá nas suas inúmeras adaptações cinematográficas que reúnem obras de Dostoiévski, Shakespeare e Witold Gombrowicz, o último gerando seu derradeiro filme na carreira, Cosmos.

Dentre os grandes nomes do cinema polonês, talvez Zulawski nunca tenhachegado a saber a real dimensão de como era admirado pela nova geraçãoapaixonada pela estética tão caótica e tão emocional de suas películas. Porém, após sair do longo período de silêncio, talvez Cosmos continue a intensificar a admiração pela sua obra. Assim como David Bowie, Zulawski fez questão de deixar o mundo saber suas últimas palavras antes da morte.

Além do seu filho Xawery, o diretor também deixou Vincent, fruto do casamento com Marceau.

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