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Música

As memórias e devaneios do Júpiter Maçã viraram um livro

‘A Odisseia’ é o resultado de mais de 30 horas de conversa que o coautor Juli Manzi teve com o intrigante músico pouco tempo antes de sua morte.

Durante os seus últimos anos de vida, Flávio Basso, conhecido pelo nome artístico Júpiter Maçã, andava inquieto. Ele sentia que era chegada a hora e queria concretizar o projeto de um livro, uma espécie de "autobiografia ficcional". Uma troca de ideias no camarim com o também músico, jornalista e conterrâneo porto-alegrense Juli Manzi fechou a parceria: Juli, que nunca escondera o apreço pelas composições de seu interlocutor, topou ser o ghost writer da empreitada. Ícone do rock nacional, infelizmente o artista viria a morrer pouco tempo após a conclusão da obra. Ao menos, teve a chance de ler e aprovar o resultado.

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A Odisseia – Memórias e Devaneios de Júpiter Apple (Azougue Editorial, 154 pgs, R$ 38) conta com texto de apresentação do Tatá Aeroplano e foi concebido a partir de mais de trinta horas de conversas. Preserva-se no texto a autêntica fala do Júpiter, com todas as suas piras. Ele era um rola doida, mostram os relatos. Falava e pensava em sexo até umas horas. Mas os relatos também evidenciam que ele não era um tipo unidimensional, jogando luz sobre sua faceta criativa, filosófica, psicotrópica, amiga e outsider.

Se a narrativa em primeira pessoa tem para si o grande êxito do conteúdo, vale enaltecer o mérito do coautor na amarração das histórias. Juli soube oxigenar as costumeiras digressões e temperar a abordagem que se espera de uma biografia com sensíveis doses de irreverência e humor, coisas que fazem diferença positiva no ritmo da leitura.

Noisey: Conta um pouco sobre como o projeto desse livro começou. Você era amigo íntimo do Júpiter?
Juli Manzi: Nós somos de Porto Alegre e eu havia conversado rapidamente com ele por lá algumas vezes nos anos 90. Frequentávamos o bar Garagem Hermética, que era um inferninho espetacular, e ele me chamava de General Custer, por causa do meu bigode vermelho. No ano retrasado eu fui no camarim dele em São Paulo depois dum show e puxei assunto, comecei a elogiar as letras das canções dele, disse que eram muito originais, muito autênticas, e perguntei se ele nunca tinha pensado em fazer um livro, alguma coisa no formato de literatura ou de poesia. Ele me disse que estava procurando um ghost writer para um livro de memórias dele, e perguntou se eu topava escrever. Eu disse que sim, ele me deu um abraço e falou "senti uma energia boa nos meus chakras". Estava firmado o nosso contrato.

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Como foram as conversas você teve com ele para colher o material do livro?
Começamos as conversas um mês depois desse primeiro encontro. Ele estava hospedado numa casa na Vila Mariana, em São Paulo, perto de onde eu moro. Ele ficava me contando histórias no porão, deitado num sofá que parecia um divã. Eram histórias loucas com uma narração muito rica na forma e inventiva no conteúdo, e um estilo bem próprio dele, que eu procurei preservar. Trabalhamos assim um tempo e depois ele se mudou para Porto Alegre. Antes, passou pelo Rio e gravou aquela entrevista insólita com o Rogério Skylab. Eu fui para Porto Alegre algumas vezes conversar com ele no ano passado, e ele ficou uns dias aqui em casa em agosto, foi quando nos vimos pela última vez. Encerramos as entrevistas e dei para ele ler uma versão que tinha, mais ou menos, metade do conteúdo do livro. Ele adorou, lembro que cruzei o corredor para ir ao banheiro de manhã cedo e ele estava no sofá com um sorriso muito sacana estampado do rosto. Me viu passar e comentou: "Acabei de ler o livro".

Como você recebeu a notícia da morte dele?
Era final de ano e eu, que leciono, estava em sala de aula, aplicando exame. De repente, os amigos começaram a enviar mensagens me pedindo a confirmação do ocorrido. Dali a pouco, o Tatá Aeroplano, que era parceiro dele e escreveu a orelha do livro, me ligou chorando. Foi foda. Não posso dizer que fiquei surpreso, eu vinha acompanhando os abusos dele e sabia que a situação andava complicada. Mas o curioso é que ele faleceu de enfarto agudo, o que não necessariamente tem a ver com alcoolismo.

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"O Júpiter adorava o glamour e viveu intensamente o fascínio pelo sucesso. Hoje existe um bom número de fãs dele que têm cerca de 20 anos de idade, e o fato de estar atravessando gerações deixava ele muito satisfeito."

Olho no olho com o artista em tantas oportunidades diferentes, o que esses encontros te revelaram sobre ele que a mídia não conseguiu capturar?
As lembranças que ficaram para mim são de um cara divertido, espirituoso, muito inteligente e com um papo agradável, capaz de fazer observações interessantes sobre qualquer assunto. Além das nossas conversas para o livro, gostávamos de passear, comer bem, e ele me contava em detalhes a história maluca dum filme sobre maldição que estava finalizando, rodado com câmera de celular.

O Júpiter Maçã foi um cara bem compreendido pela cultura pop nacional?
Ele tinha plena consciência de que ocupava um lugar raro na cultura pop nacional, situado entre o underground e o mainstream. Isso, reforçado pelo charme de quem se revelou precocemente e passeou pelo rock'n'roll, rockabilly, psicodelia, bossa nova e outros experimentalismos, com discos em português e em inglês, lançados no Brasil e na Europa. Não tocava direto nas rádios pop, mas tinha vários hits celebrados no underground, embora muita gente ainda ache que "Um Lugar do Caralho" é do Raul Seixas. Mas o Júpiter adorava o glamour e viveu intensamente o fascínio pelo sucesso. Hoje existe um bom número de fãs dele que têm cerca de 20 anos de idade, e o fato de estar atravessando gerações deixava ele muito satisfeito. Em relação aos obituários, vi que o falecimento dele ocupou as homepages dos principais portais de notícias brasileiros na época, um reconhecimento muito justo.

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Quem eram os melhores amigos do Júpiter Maçã?
Resolvi dedicar o livro a dois amigos que eu tenho certeza que estão entre os maiores: o guitarrista Marcio Petracco, colega do Júpiter e grande roqueiro gaúcho, que tinha uma ligação fraterna com ele, e Thomas Dreher, um produtor e amigo com quem ele também tinha uma sintonia muito especial.

E os inimigos? Quando publicamos o obituário dele no Noisey, apareceu uma mina nas redes dizendo que ele era agressor de mulheres…
Sobre os inimigos e agressões, eu não saberia dizer nada conclusivo, mas acho que, quando o assunto envolve questões conjugais, todos que amaram um dia estão sujeitos a desafetos.

Nas conversas que você teve com ele, alguma te tocou especialmente?
Os episódios familiares me tocam bastante. Conheço os pais dele, sei o quanto a família se preocupava com ele e tudo o que passaram em tentativas de ajudá-lo nas questões referentes à saúde.

Você tirou alguma lição de vida da convivência que teve com o Júpiter?
Acho que foi tudo muito rápido, a ficha ainda não caiu para mim, e o ciclo ainda não se completou. Em dois anos nos conhecemos, viramos amigos, parceiros de trabalho, escrevemos juntos um livro, ele faleceu, o livro saiu e está emplacando muito bem. Os fãs estão devorando o livro de um dia para o outro. Eles vêm aos lançamentos e querem conversar, me abraçar e saber se tenho mais histórias. É como se eu tivesse virado um elo de ligação com o Júpiter, e isso me deixa muito feliz, porque eu também tinha uma grande admiração pelo trabalho dele, mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente.

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"Ele contava histórias impossíveis e isso me deu um pouco de esperança, por um tempo, de que mesmo depois da morte, ele fosse ligar a qualquer momento."

As suas entrevistas eram organizadas por temas ou cronologicamente?
No começo das sessões de entrevista ele contava as histórias livremente, com um fluxo espontâneo. Quando as histórias começaram a se repetir, passei a organizar pautas que direcionavam os assuntos. O fato de eu gostar do trabalho dele e ter pesquisado um pouco a respeito nos auxiliou nessa parte. A tentativa de cronologia de vida eu construí posteriormente, como forma de organização do conteúdo. Nossos encontros geraram um material muito extenso, que criou um grande quebra-cabeça para eu montar depois. Mas não é uma cronologia fiel, tampouco o livro propõe-se a ser uma biografia. Antes de tudo, tratam-se de memórias ficcionais, que passam por abduções, fantasmas e encontros com Amy Winehouse (!), Tim Maia e o demônio. Enfim, tudo o que a mente fértil do Júpiter continha e era capaz de combinar.

A ironia e a irreverência, qualidades do texto, são as mesmas que definem a personalidade do Júpiter?
Sim, sem dúvida, e isso também é recorrente nas letras das canções dele. Ele tinha um grande senso de humor, conciliado com muita presença de espírito, era um cara muito presente e buscava sempre um viés bem-humorado, o tempo todo. Eu acho o livro muito engraçado e me diverti muito enquanto escrevia, embora também tenha momentos de muita emoção, lógico. Ele contava histórias impossíveis e isso me deu um pouco de esperança, por um tempo, de que mesmo depois da morte, ele fosse ligar a qualquer momento.

Você acha que ele teve uma vida realizada artisticamente e pessoalmente?
Artisticamente e pessoalmente, não tenho dúvida de que ele queria um maior reconhecimento do seu trabalho pela cultura pop nacional e, sem dúvida, merecia isso. Era um rockstar nato, no melhor estilo. Ambicionava e merecia muito sucesso. Do ponto de vista criativo, tenho certeza de que o que ele queria no momento era concluir esse nosso projeto. Acho que o livro foi fundamental para ele se resolver consigo mesmo antes de partir.