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Relato

Meu trabalho é dar más notícias para vítimas de crimes horríveis

Uma das piores partes de ser promotor é contar às vítimas que a condenação de seu agressor foi anulada – ou que um ente querido morreu.
Ilustração  por Cornelia Li.

Este texto foi originalmente publicado na VICE UK em colaboração com o Marshall Project .

"É a Jean", digo. "Sou da promotoria. Eu gostaria de falar com você sobre o caso em que você foi a vítima. Podemos nos encontrar pessoalmente?"

"Não, só me diga por que você está ligando", responde Sue*, uma vítima de estupro.

"Eu preferia dizer pessoalmente."

"Fale agora."

"Acho que essa é uma notícia que você gostaria de ouvir cara a cara", digo, pacientemente. "Eu gostaria de me encontrar com você para discutir isso."

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"Não. Preciso que você conte tudo agora."

Há uma pausa enquanto decido o que dizer.

"O caso foi anulado pelo Tribunal de Apelação", digo de uma vez.

"O que isso significa?"

"Significa que temos que começar de novo."

Ouço o som da mulher vomitando. Depois a ligação cai.

Não recebemos treinamento para coisas assim na faculdade de Direito. É uma parte do sistema de justiça criminal raramente visto ou retratado na cultura pop. Mas como um médico que precisa informar o paciente sobre alguma doença grave, um promotor como eu muitas vezes precisa dar notícias difíceis para as vítimas, ou — quando a vítima morreu — para sua família.

Fiquei sabendo do caso de Sue mais de seis anos depois do julgamento inicial. Lá ela teve que testemunhar que numa noite do final dos anos 90, em Jackson County, Missouri, nos EUA, estava levando a prima para casa de carro quando acabou numa rua sem saída. Percebendo que estava perdida, ela pediu ajuda a alguns homens que estavam na rua. Um deles se aproximou.

De repente ele puxou uma faca de açougueiro e ordenou que ela abrisse a porta do carro. Ele a obrigou a dirigir até um lugar remoto e a estuprou.

Sue logo deu queixa do crime à polícia. Graças a um teste de DNA, o sêmen nas roupas dela levou ao agressor.

Um júri condenou o homem. Mas o tribunal de apelação encontrou erros no caso, incluindo uma possível má conduta de jurado. (Durante o julgamento, um jurado foi até a área onde Sue se perdeu e contou a outro jurado que era mesmo fácil se perder por ali.)

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Foi aí que entrei, como promotora assistente da unidade de crimes sexuais. Quando a decisão da apelação saiu, recebi aleatoriamente a tarefa de dar a má notícia à vítima.

Primeiro encontrei as informações de contato dela nos nossos arquivos. Mandei uma carta, mas ela voltou sem ter sido aberta.

Aí achei o que acreditei ser o número de telefone da mãe de Sue. Quando liguei, para minha surpresa, a própria vítima atendeu. Descobri depois que devido ao estupro, ela costumava usar o nome da mãe para se esconder do mundo exterior.

Dar o pior tipo de notícia nunca é fácil. Ainda assim, minha política é contar à família da vítima tudo que eles quiserem saber.

Em casos de homicídio, as famílias geralmente perguntam: "Meu filho sofreu?" Me preparo para essa pergunta me imaginando como alguém que perdeu um ente querido. Eu gostaria que um promotor me transmitisse essa informação?

Se a autópsia não deixa claro a questão de dor e sofrimento, entrevisto o legista antes de me encontrar com a família da vítima. Fico grata quando posso dizer que a morte foi rápida — a bala penetrou o coração, por exemplo. As mães, que se preparam para ouvir o pior, geralmente ficam particularmente aliviadas ao ouvir isso.

Quando é inegável que um ente querido sofreu, tento encontrar o momento certo e a melhor maneira de contar isso à família. Mas cedo ou tarde, tenho que dizer. Eles choram. Eles dizem "Não". Eles se levantam e andam pela sala porque não conseguem ficar parados.

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Também há situações em que as provas não são suficientes para acusar criminalmente o indivíduo que teria matado o ente querido. Às vezes as "ruas estão falando", mas nenhuma testemunha está disposta a falar com a polícia. E essas famílias acabam tendo que ver o suposto assassino de seu filho ou filha andando pelo bairro. Tudo que podemos dizer é que vamos continuar tentando montar um caso, que assassinatos não prescrevem, que eles não devem buscar vingança. Às vezes eles fazem silêncio quando ouvem isso.

Às vezes encontramos a família da vítima na cena do crime antes de conhecê-los. Desesperados por informação, eles ficam por ali, esperando a resposta de quem é o corpo embaixo do lençol da polícia. Eles procuram pistas. O que seu ente querido estava vestindo naquela manhã?

Já me pediram para ver os sapatos da vítima ou procurar marcas de identificação. Já vi familiares discando furiosamente em seus celulares, esperando que a vítima atenda e acabe com seus medos — até ouvir o toque do telefone ao lado do corpo no chão.

As vítimas e suas famílias não pediram para serem jogadas no sistema de justiça criminal. Elas têm pouca voz sobre a direção que o caso vai tomar. A justiça vai se voltar para as provas e a habilidade dos promotores em as apresentar de maneira convincente.

E do nada, eles recebem um curso relâmpago de direito. Eles sofrem para entender conceitos como evidência admissível, dúvida razoável e as proteções constitucionais de um réu criminal.

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Alguns dias depois que liguei para Sue, a vítima de estupro, nos encontramos pessoalmente. Seu marido a estava acompanhando.

"Moça, você virou minha casa de cabeça para baixo", ele disse, antes mesmo de cruzar a porta do meu escritório.

E pensei comigo mesma: "Eu sei". Fiz ela reviver o pior dia de sua vida de novo.

Nos sentamos. Sue me contou como testemunhou no tribunal dias depois de ter dado à luz ao primeiro filho. O juiz se recusou a conceder adiamento, mesmo depois que o réu recebeu um antes por razões bem menos sérias.

Com o tempo, ganhei a confiança de Sue e a convenci a continuar buscando justiça, testemunhando num novo julgamento.

O caso acabou no corredor de um tribunal. O advogado do réu, quase sem fôlego, correu até mim para dizer que o cliente estava disposto a pegar 18 anos em troca de se declarar culpado. (A promotoria originalmente pedia 22 anos de cadeia.)

Peguei meu celular.

"Ele vai pegar 18 anos", eu disse a Sue. "E isso vai terminar." Comecei a entrar nos detalhes do acordo, mas ela logo me interrompeu.

"Aceite", ela disse. "Aceite."

O acordo garantia que o réu continuasse no registro de criminosos sexuais. E a família, finalmente, teria um pouco de paz.

Antes de desligar, Sue me disse: "Me prometa só uma coisa."

"Sim."

"Nunca me ligue de novo."

Jean Peters Baker é a promotora eleita de Jackson County, Missouri, (que inclui partes de Kansas City), e vice-presidente do conselho nacional da Associação de Promotores.

*O nome foi mudado.

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