Peço desculpas de antemão, mas nas linhas abaixo partirei de um ponto de vista muito particular que é a vida de um pai de menina e tal experiência pode ter suas universalidades, mas os calcanhares de Aquiles são muito íntimos. O que sugeri para esta pauta era uma espécie de toque aos amigos, amigos de amigos — meus e de quem chegou a este texto — em como não ser cuzão e machista com os pais (aqui entenda como pais e mães) de meninas e também em como evitar preconceitos e padrões misóginos. Não tenho a pretensão de dar nenhuma cagada de regra, mas de propor uma reflexão.
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Passei a tarde pensando na primeira vez em que foram machistas com minha filha, que hoje tem 4 anos e 3 meses, e fazendo um rewind mental lembrei exatamente do dia em que descobrimos que ela era uma menina. A cena aconteceu no segundo ou terceiro ultrassom da minha companheira. Estávamos ansiosos para saber qual seria o gênero do bebê, ansiosos para os próximos passos e no maior cagaço como qualquer casal que terá o primeiro filho.Depois que você optou por ter o filho, se preocupar se está tudo bem com aquele tamarindinho na barriga dela, se está tudo bem com sua companheira, se vai ter grana para bancar os gastos, se o seu emprego é estável, se terá tempo, se terá trampo, se será difícil, se está preparado e mais um zilhão de conflitos. Se posso dar um conselho depois do que passei é: respira e oxigena o cérebro, porque você vai precisar dele.
"É uma menina, olha aqui o 'xoxotão' dela. Essa aí vai dar trabalho…"
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Seu órgão sexual indicava para aquela médica que eu, como pai, deveria ou haveria de me preocupar no futuro e com o que ela faria dele. O fato dela estar com a perna aberta no ultrassom indicava para a doutora sua possível “desinibição” e ela falava isso provavelmente sem pensar, sem se dar conta de que estava reproduzindo algo perverso. Na hora nem eu nem minha companheira pensamos por este prisma e focamos nossas energias na emoção de descobrirmos que aquele serzinho que crescia ali era uma menina que já saiu de lá batizada e veio ao mundo no dia 8 de março de 2014.Puxando esse fio condutor de chorume me vieram outras situações em que vi de perto o senso comum, a piadinha, ganhar uma conotação mais cruel. Cenas que eu gostaria de desver e de deslembrar, mas que ficam cada vez mais nítidas na minha mente.
"Agora você passou de consumidor para fornecedor"
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Na hora foi incômodo, mas passou. Minha filha ainda não tinha nascido e já não era a primeira vez que presenciava comentários machistas a seu respeito.Em outra ocasião, saindo para almoçar com alguns colegas de trabalho, um cara mais velho, que tem um filho, fez o seguinte comentário ao saber que eu seria pai de uma menina: "Prende a sua cabra que o meu bode tá solto".Sim, ele comparou nossos filhos a animais, o dele um procriador incontrolável e a minha uma vítima em potencial. E ela ainda nem tinha nascido. Dessa vez, assim como na cena com meu familiar, eu não tive reação. Engoli a seco o comentário e segui em frente talvez por não encontrar palavras ou simplesmente por não ter coragem para me posicionar e comprar uma treta.E não, não é mimimi se incomodar com comparações como essas de dizer que uma criança que está para nascer é um produto fornecido para o consumo de alguém ou então que ela precisa ser presa, porque há bodes à solta por aí.Obviamente que desde o enxoval lidamos diariamente com as lojas de brinquedos e roupas pragmaticamente divididas em coisas de meninos e meninas, as lojas de departamento com roupas azuis e verdes para os garotos e rosas, roxas e vermelhas para as garotas. Obviamente tivemos que lidar com olhares de desaprovação ao vesti-la na rua com um macacão azul do Mickey.Se você está à espera de uma menina, situações como essas narradas acima infelizmente devem lhes ocorrer e tomara que você tenha sagacidade para uma resposta que ensine ou pelo menos demonstre ao machista o seu desconforto.Sei que parece inocente o que direi a seguir, mas ainda tenho esperança nas próximas gerações e torço para que a descoberta do gênero de uma pessoa não seja determinante para a vida que ela terá.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, nstagram e YouTube.