YouTube e trap alavancam popularidade de codeína entre jovens brasileiros
Crédito: Captura de tela/ YouTube

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YouTube e trap alavancam popularidade de codeína entre jovens brasileiros

Inspirados pela cena trap gringa, tutoriais e referências à bebida pingam aos montes nas redes. Médicos e psiquiatras se preocupam com a desinformação.

Gelo e dois copos, minha Sprite é roxa/Você só tem maconha, eu te acho trouxa/No quesito drogas, eu tô avançado”, diz o trecho da música do rapper Raffa Moreira que fala sobre sua predileção pela droga lean. Embora seja grande o destaque dado por Moreira na canção, é no tuíte do também rapper Diego Thug, ex-Bonde da Stronda, que se chega mais perto do que está por trás da substância: “Purple Drink, codein e fenergam de 30mg, um comprimido de cada, sprite, xarope de açaí ou qualquer outro bagulho pra dar gosto, não usem.”

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Se você já assistiu a pelo menos um clipe norte-americano de trap, deve ter notado a presença quase obrigatória de copos de plástico com líquido roxo. Aquela substância é, na verdade, uma mistura de refrigerante com composto que tenha codeína, um derivado do ópio usado como anestésico contra dores moderadas e fortes em tratamentos oncológicos. Os nomes variam: lean, purple drink, purple drank, sizzurp. Na forma mais famosa da bebida, usa-se um xarope que mistura também a prometazina, um anti-alérgico que teria a capacidade de intensificar o efeito de sedação.

No Brasil, a moda chegou forte em 2015 e, com a ascensão do trap influenciado pelos norte-americanos, vem ganhando mais adeptos. Não há números que contem com precisão o consumo do opiáceo, mas especialistas consultados pelo Motherboard confirmam que houve bom crescimento de procura pela substância.

Leia também: Elas amam o Thug, mas desprezam o Raffa Moreira

Hoje são muitos os jovens rappers brasileiros — e seus entusiastas — que compartilham nas redes sociais seus feitos com a bebida. A mais célebres postagens vem de Predella, membro do Costa Gold, grupo que é sucesso entre os mais novos, com mais de 500 mil seguidores no Instagram e 1,7 milhões no YouTube. Entre imagens com maconha e outras drogas, o rapper publicou, no ano passado, uma foto em que faz careta sobre uma mesa com Sprite e o lean.

Pelo YouTube não faltam tutoriais. Há uma série de vídeos, principalmente em espanhol, que mostram diferentes receitas e formas de consumo. Os conteúdos brasileiros, embora em menor quantidade, também existem — inclusive de médicos que pedem para o pessoal se informar antes de tomar como se fosse água. Por aqui, porém, o controle da moderação parece maior. Na semana em que apurávamos o número de vídeos sobre lean, havia mais de cinco tutoriais em português sobre o tema. Todos foram apagados dias depois. (Procurado pelo Motherboard, o YouTube disse que não comenta assuntos específicos. É provável que os conteúdos tenham sido denunciados por usuários e removidos pela equipe do site.)

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Uma das razões do maior controle é que, por aqui, a venda da codeína é controlada pela Anvisa que classifica a substância como “entorpecente” e pode ser apenas vendida com receita médica especial. Conforme aponta a psiquiatra Lilian Ratto, coordenadora do setor de álcool e droga do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo, “infelizmente, mesmo com esse controle da vigilância sanitária, com receituário especial e numerado, quantidade máxima de medicamento por receita e outros controles, sabemos que não é difícil o acesso a receitas falsas”. Recentemente dois jovens foram presos em Florianópolis traficando xarope com a substância, segundo informações do Diário Catarinense. Os remédios eram vendidos via redes sociais.

"É como se você sentisse a morte no seu estômago quando para de usar"

Como explicou a psiquiatra, o uso de medicamentos como a codeína e outros opióides foi bastante forte durante a década de 1970, quando o consumo de drogas ilegais era pouco comum. Depois de considerável diminuição durante as duas décadas seguintes, a partir dos 2000 o uso dessas substâncias voltam a ser consumidas de forma recreativa em grande escala no Brasil.

O aumento no Brasil acompanhou um cenário semelhante visto nos EUA a partir do final da década de 1980 na cena hip hop. Segundo o levantamento feito pela ONG americana, Project Know, a terceira droga mais citada nas letras de rap entre 1988 e 2013 foram as bebidas a base do xarope de codeína. Grande parte do aumento das menções aconteceu entre os anos 1999 e 2004.

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Leia também: O tráfico de codeína no Instagram

A seriedade da situação nos EUA chegou a chamar a atenção do governo pelo alto número de mortes por overdose. Segundo o relatório oficial da comissão presidencial, formada por membros dos partidos Democrata e Republicano, são cerca de 142 mortes por dia causadas por opioides. Um cálculo que se igualaria ao número de mortos nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 a cada três semanas.

No Brasil, apesar da situação não ter chegado ao mesmo ponto crítico, ainda assim é preocupante pela falta de informação, conforme comentou a psiquiatra Lilian Ratto. “Um dos relatos mais comuns entre os pacientes é o total desconhecimento do que está sendo consumido em festas. informações como dose, composição e outras são totalmente desconhecidas por quem consome a droga”, observou.

Segundo a diretora de assistência farmacêutica da Santa Casa de São Paulo, Eliane Figueiredo, mesmo sendo utilizado de forma correta e em doses seguras, os opióides — entre eles a codeína — podem ter efeitos negativos no corpo. Entre eles náuseas, vômitos, agitação, tontura, crises convulsivas, confusão mental, insônia, queda de pressão e diminuição do ritmo respiratório. “Esses efeitos negativos podem ser potencializados caso a pessoa misturar o opióide com álcool”, comentou.

O próprio Raffa Moreira, um dos assíduos comentaristas da droga no Twitter, sabe dos efeitos adversos que sente na pele. Numa madrugada recente, tuitou: “Falando sério, depois da sexta dei um breck no lean. Não sei como eu conseguir pegar o avião, ñ sei como eu acertei o portão do aeroporto… Trombei o contratante e não consegui falar com ele. não é legal ficar assim.”

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Abandonar o purple drink não é tão fácil, porém. Figueiredo afirma que, além de um alto risco de gerar dependência química, não se deve suspender abruptamente o uso de um opióide. “Há possibilidade do paciente desenvolver Síndrome de Abstinência”, afirma.

As dificuldades em parar o uso da droga foram relatadas pelo rapper Lil Wayne, um dos usuários mais famosos do opiáceo. Ele descreveu que não é fácil parar o uso da substância, e relatou que “é como se você sentisse a morte no seu estômago quando você para de usar”.

O doutor em Ciências Fisiológicas, Thiago Pereira, aponta que no caso da codeína o controle da dose pode ser complicado pois a substância é um pró-fármaco. “Ela não produz efeito no corpo diretamente, apenas depois de ser metabolizada no fígado pelo complexo enzimático chamado ‘citocromo p450’, a substância é transformada em morfina”. Tal transformação depende da produção dessa enzima, o que torna pessoas mais ou menos sensíveis à codeina. Pereira também aponta que isso aliado ao fato de um dos possíveis efeitos ser a diminuição da respiração pode levar a pessoa ao coma ou até a morte.

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