As visões do cineasta que instalou uma câmera no globo ocular direito

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As visões do cineasta que instalou uma câmera no globo ocular direito

Um acidente com arma cegou Rob Spence quando era criança. Aí ele resolveu colocar uma câmera no globo ocular.

Em maio, o cineasta Rob Spence estava em um restaurante em Toronto, no Canadá, com seu cunhado e sua mulher. Uma atendente se virou para anotar o pedido do dele e o que viu foi um homem com uma luz vermelha no olho, quase como o Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro.

Com as bochechas vermelhas, assustada, a atendente se esforçava para não olhar diretamente ou dizer qualquer coisa sobre seu olho ciborgue. Sem encará-lo, perguntou: "O que gostaria de pedir, senhor?".

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O cineasta chama a si mesmo de "Eyeborg". Crédito: Rob Spence.

O olho equipado com a câmera gravou essa breve interação com a atendente enquanto Spence mostrava o funcionamento do olho ciborgue para os companheiros de mesa. Ele me mostrou a interação em uma entrevista em Toronto, dias antes de sua participação na FutureWorld, uma conferência sobre robótica e próteses high-tech ocorrida na Universidade OCAD em junho.

"Aqui nesta cidade as pessoas são bastante educadas e não ficam chamando atenção para o meu olho. Mas no Brasil, por exemplo, elas queriam muito se aproximar de mim", contou.

Questões de privacidade giram em torno dos dispositivos usados como parte do vestuário que registram o que seu portador vê, como o Google Glass. Spence afirmou que seu projeto não se compara a ele, já que não é possível utilizar sua câmera por muito tempo seguido e que uma luz vermelha de LED alerta as outras pessoas quando está gravando. Ainda assim, ficou na defensiva quando perguntei a respeito dos limites éticos de gravar as pessoas sem a permissão delas.

"Existe uma rivalidade entre meu direito de substituir o olho que perdi versus o direito de privacidade das outras pessoas", afirmou. "Ou será que não posso colocar uma câmera em meu próprio corpo?".

A câmera ocular. Crédito: Rob Spence.

Spence, que vive em Coburg, Ontário, chama a si mesmo de "Eyeborg", e não é só isso: cego desde que atirou em si mesmo quando criança, ele teve a ideia de construir uma câmera minúscula que caberia no globo ocular e gravar tudo o que visse.

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Ele não usa a câmera o tempo todo. Ela somente consegue gravar um máximo de 30 minutos até ficar sem bateria. Durante nossa entrevista, ele usou um tapa-olho, o mesmo acessório utilizado durante sua palestra na conferência futurista de Toronto.

Perto do fim da palestra, ele tirou o tapa-olho, colocou a câmera especial no olho e gravou o público por alguns instantes, enquanto a imagem aparecia em uma tela no palco. O público de cerca de 120 pessoas foi ao delírio e aplaudiu.

A câmera minúscula que cabe dentro do dispositivo. Crédito: Rob Spence.

A câmera ocular de Spence utiliza um sinal análogo em vez de um digital graças a seu minúsculo transmissor. O que ele grava pode ser passado para outra tela, como um monitor para bebês ou uma televisão.

"Funciona muito bem para andar por aí em conferências ciborgues", disse Spence, rindo. Ele demonstrou ter um senso de humor peculiar, tanto em nossa entrevista quando no palco da FutureWorld. Ele me contou que não leva sua deficiência tão a sério.

Essas conferências podem "parecer como um circo, no qual eu sou a aberração", contou. "Mas não me sinto como a mulher barbada ou algo do tipo. Eu viajo pelo mundo."

Spence quase sempre usa um tapa-olho. Crédito: David Silverberg.

A trajetória de Spence começou aos 9 anos, quando visitou seu avô na Irlanda. Ele andava de cavalo segurando uma arma, mirando para uma pilha de estrume de vaca.

"Por um momento, a arma estava contra mim, como eu já vi acontecer em filmes de cowboys, ou como Ralphie em Uma História de Natal, quando literalmente atirei no meu olho", conta Spence. "A arma atirou contra mim, contra meu rosto, mas eu ainda não tinha perdido meu olho. Fiquei traumatizado e me declarei cego, apesar de ainda restar um pouco de visão no olho direito."(Seu olho esquerdo é saudável.)

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"Me disseram para substituir meu olho, e foi aí que comecei a pesquisar sobre câmeras oculares"

Sem as visões de profundidade e periférica, ele precisou se adaptar à falta de jeito com as coisas, como bater em cartazes no supermercado. Ele não se importou em usar o tapa-olho enquanto produzia um de seus primeiros documentários, Let's All Hate Toronto ( Vamos todos odiar Toronto, em tradução livre), em 2007, com o cineasta Albert Nerenberg.

Naquela época, seu olho lesado começou a inflamar, e a córnea se deteriorou. "Me disseram para substituir meu olho, e foi aí que comecei a pesquisar sobre câmeras oculares", contou. "Por que não colocar algo diferente em vez de um olho de vidro?".

Foi aí que começou a entrar em contato com vários produtores de câmeras e engenheiros e logo percebeu que havia interesse na ideia. Seus colegas de tecnologia se empolgaram com o desenvolvimento de uma câmera minúscula que coubesse dentro do globo ocular.

Em 2008, a primeira câmera ocular de Spence ficou pronta. Embutido com uma câmera equipada com um microtransmissor de rádio frequência, o dispositivo ainda não estava conectado no nervo óptico. Spence não podia ver através dela, mas podia usá-la para gravar os outros.

A câmera ocular aberta. Crédito: Rob Spence.

Os engenheiros utilizaram um molde de cera quente de seu globo ocular para garantir que a câmera coubesse com segurança na pálpebra. Um interruptor magnetizado – interruptor elétrico operado por um campo magnético aplicado – o permitia ligar e desligar a câmera.

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Como Spence não insere a câmera ocular no rosto o tempo todo, ele a utilizou quando a Square Enix, produtora de videogames japonesa, o contratou para gravar um documentário sobre ciborgues da vida real, antes do lançamento do jogo Deus Ex: Human Evolution, de 2011. Spence intercalou o documentário de 12 minutos com gravações de sua câmera ocular, de entrevistas feitas com outras pessoas para discutir suas próteses high-tech.

A tecnologia embutida de Spence deu vida ao potencial da The Singularity, a ideia de homens e máquinas se fundindo para criar uma nova era tecnológica. Spence me contou, empolgado, sobre a ideia de Elon Musk de desenvolver interface neural, com o objetivo de transformar a IA em nuvem em uma extensão do cérebro humano.

"Vivemos em uma época de transmissões e câmeras GoPro, que podem filmar pessoas sem permissão ou conhecimento explícitos", diz. "O Livestreaming do Facebook, do Twitter ou do Instagram tornou-se comum. E em breve viveremos em um mundo em que próteses cada vez mais avançadas poderão interagir com o livestreaming das mídias sociais, alterando os limites do direito de um indivíduo em gravar o que ele e o direito à privacidade das outras pessoas."

Spence reforçou que não está interessado em registrar todos os seus movimentos; ele quer guardar sua câmera para projetos especiais em vez de gravar tipo o que ele está almoçando.

Na FutureWorld em Toronto, quando ele terminou sua apresentação, eu rapidamente tirei algumas fotos de seu olho com o LED vermelho brilhando antes de ser rodeado pelos fãs do Eyeborg. Nenhum outro apresentador causou uma reação tão forte do público.

"Posso tirar uma foto com você?," perguntou uma participante, me empurrando para chegar perto de Spence. Percebi que ele estava sorrindo. Ele é uma celebridade aqui, e posso afirmar que ele aproveita sua fama geek enquanto nos faz repensar no que é ser humano.

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