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Semana da Saúde Mental

O eu-lírico do sertanejo lida muito mal com a própria insegurança

Dois psicanalistas analisam a fragilidade e o poder egocêntrico nas letras do sertanejo contemporâneo.

É sexta-feira e você chamou o pessoal para tomar aquele famoso litrão. O cenário é o de sempre: cadeiras de plástico, mesas engorduradas e filas quilométricas pro banheiro. De trilha sonora, temos a sofrência no talo vinda do canal Top TV ou das caixinhas colocadas do lado de fora. No meio dos goles e das risadas, se você tiver com alguma questão mal resolvida, quando toca aquela da Maiara e Maraísa, o coração aperta, os olhos enchem d'água e vem na cabeça aquela pessoa que te faz esquecer todas as outras.

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Até aí tudo bem. Coisas da vida. Quem nunca teve um amor que se multiplicou ou uma frustração no coraçãozinho? O problema é que, ao botar lupa nas letras cantadas por artistas como Fernando & Sorocaba, Zé Neto e Cristiano, Felipe Araújo e tantos outros desse circuito, percebemos que ali existem alguns pontos que não foram bem trabalhados quando o assunto é lidar com fragilidades. Geralmente essas canções ilustram casos amorosos que não deram certo e sugerem um jeito todo atrapalhado e simplório para tratar as próprias mazelas.

Pensando nisso, conversamos com dois psicanalistas para entender melhor o que acontece em algumas canções que vivem tocando nesse Brasil afora e servem de acompanhamento daqueles momentos em que vamos tentando "apagar fogo com gasolina".

Fernando & Sorocaba - "Terapinga"

O meu olho vermelho não é mais de chorar
E aquela tremedeira eu já consegui tratar

Um clássico dos bares universitários da cidade de São Paulo. Nela, a dupla canta que está superando a dor de um grande amor ter partido "bebendo toda e terça e quinta", ou seja, fazendo a famosa terapinga. Dando certo ou não, tentar afogar as mágoas de situações que estão te afetando no álcool pode acabar ativando alguns gatilhos. "Beber pode ser um ato de socialização tanto quanto de isolamento. O que vai determinar a preocupação é o modo como ela vai se relacionar com a história do sujeito. Vai depender da singularidade de cada um, do momento vivido, da relação criada com a bebida e também de questões químicas, pois o álcool atua no cérebro", afirma a psicanalista Amanda Mont'Alvão.

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O fato do eu-lírico desta música ser um homem também indica porque o cara não buscou ajuda profissional, conta Amanda. "Não há qualquer cultura de saúde mental entre os homens. Desde pequenos há um convite sistemático para parecerem fortes, não demonstrarem fragilidade, não chorarem. A vulnerabilidade é vista como algo feminino, e aí a gente vê os efeitos terríveis do machismo também sobre os homens. Neste contexto, estes homens crescem sem saber que podem pedir ajuda por meio da palavra. Quando se chega à adicção, ao alcoolismo, há um socorro urgente a ser prestado. O ideal é que o desespero apareça na fala, não nos atos".

Felipe Araújo - A mala é Falsa part. Henrique & Juliano

A mala é falsa amor
Engole o choro, embora eu não vou
Agora vê se aprende a dar valor
Mata minha sede de fazer amor

Felipe Araújo, acompanhado de Henrique & Juliano, canta uma história um pouco estranha nessa música. Ele arruma as malas, diz que tudo acabou e quando a ex-parceira dele vem falar que vai tentar melhorar, rola um momento meio pegadinha do Mallandro: a mala é falsa. No fim, tudo não passou de uma chantagem para ele perceber que é amado. "[O que ele faz] pode se tornar uma cilada, uma vez que esta ameaça pode confirmar um vínculo pelo medo do abandono quando o que se esperava era o amor. Talvez uma conversa franca pudesse resolver isso melhor", sugere Amanda. A gente pode interpretar que o eu-lírico dessa canção mostra alguns traços de insegurança ao querer notar que é amado pela moça, inclusive criando toda uma situação que envolve uma espécie de teatro. "Insegurança, decepção, quebra da idealização, frustração com a rotina… tudo isso aparece nas relações amorosas justamente porque envolve a alteridade e, portanto, traz a dolorosa certeza de que as expectativas não serão totalmente correspondidas. Cada pessoa comparece na relação com seu jeito, suas características, seu modo de ver o mundo. A insegurança, em algumas situações, pode mobilizar mecanismos de defesa bastante destrutivos".

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Henrique & Diego - Senha do Celular

Se não deixa pegar o celular
É porque tá traindo
E 'tá mentindo
Alguma coisa tem

A faixa da dupla Henrique & Diego trata claramente sobre invasão de privacidade. Se você não frequentou nenhum lugar com litrão barato e dividiu a fila do banheiro entre jovens universitários sorrindo e discutindo "Caetano ou Chico", a música tem como refrão "Se não deixa pegar o celular / É porque tá traindo / E tá mentindo / Alguma coisa tem", sugerindo que se uma das partes do casal não abre tudo o que faz para o parceiro, só pode ter algo errado. "Ainda que haja permissão para um mexer no celular do outro, não vejo benefícios. A relação amorosa depende da individualidade de cada um, o que faz com que a privacidade seja uma importante premissa de respeito. É ilusão achar que vai se saber absolutamente tudo sobre o(a) parceiro, além de ser sem graça, já que se elimina as possibilidades de ser surpreendido com o novo, o diferente, o fora da rotina", fala a psicanalista. "Todo mundo tem direito à privacidade e a confiança é um pilar fundamental para a existência de um casal. Sem ela, qualquer "não" se torna ameaçador ou suspeito, alimentando ainda mais os pensamentos de que se está sendo enganado. Se há falta de confiança, ou uma suspeita de traição, a conversa é o melhor caminho".

Gusttavo Lima - Apelido Carinhoso

Ainda não me chame de meu nego
Ainda não me chame de bebê
Porque era assim que ela me chamava
E um apelido carinhoso é o mais difícil de esquecer

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Em "Apelido Carinhoso", Gusttavo Lima canta que tem um problema no relacionamento com a nova mulher: ela não pode chamá-lo de "meu nego" e nem de "bebê". Aí a gente fica se perguntando por que o cara entra em uma relação sem sequer ter superado a outra. "Pular o luto é sempre uma receita para patologias. De fato, novos amores curam os antigos, mas a gente esquece que aprende a amar e o amor é uma reedição, por isso nossas relações amorosas são parecidas, cometemos os mesmos erros e não suportamos as mesmas coisas. Essa reedição tem que ser bem feita", aponta o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker. "Substituições muito maníacas e reativas te impedem que você faça o luto e, portanto, vira uma continuação. É como se você trocasse o objeto e não que tenha tido uma perda. O dia que o eu-lírico poder dizer para a companheira que ela pode chamá-lo por esses nomes porque ele vai trazer pro relacionamento os amores passados e que o luto foi resolvido, a relação se torna mais rica".

Se a maioria das faixas revela várias fragilidades, nessa canção temos um ponto interessante. Em um primeiro momento pode soar que ao dizer "aceitar isso é uma forma de amor" o eu-lírico está fazendo chantagem, mas não é bem por aí. Ao falar essa frase, ele está deixando claro pra pessoa que o amor não é algo exclusivista. "Aceitar de que eles não são o único objeto do amor e de desejo um do outro é algo muito importante na vida psíquica de um casal. Quando duas pessoas acreditam que o verdadeiro amor é compulsório e exclusivo, elas estão fadadas ao empobrecimento da vida de fantasia", revela Dunker.

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Zé Neto e Cristiano - Seu Polícia

Os vizinhos tão reclamando do volume do meu som
Mas enquanto ela não voltar
Eu vou continuar
Me afogando no álcool
O som do carro no talo
Manda a multa, que eu vou pagar

Quem nunca terminou um relacionamento, passou no mercado, comprou uma garrafa de qualquer coisa que tinha o teor alcóolico acima dos 30%, chegou em casa e meteu o som altão pra esquecer da pessoa amada. É algo comum de se fazer e é exatamente essa situação que o cara da canção do Zé Neto e Cristiano vive, só que com um agravante: a polícia chega lá pra mandá-lo abaixar o som e possivelmente multá-lo. "O que é a música alta? É um jeito de se criar uma surdez. Ele não quer ouvir mais a voz da pessoa amada e nem a sua própria voz pedindo por ela. O álcool é uma espécie de indutor do esquecimento, a pessoa bebe pra esquecer e se anestesiar, então dói menos. São formas primitivas de tentar não fazer o luto e que não dão muito certo", sugere Dunker, que admite não ser fácil notar se estamos presos nessa fase. "Quando você começa a perceber que a sua reação para aquilo está exagerada, que o luto está demorando muito, vindo com comportamentos autodestrutivos, que ou você está apenas sentindo ódio ou culpa, que são sentimentos que a gente espera vir juntos, é um momento de procurar ajuda".

Zé Neto e Cristiano - Largado às Traças

Ô ô ô, ô ô ô
A falta de você, bebida não ameniza
Ô ô ô, ô ô ô
Tô tentando apagar fogo com gasolina

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Se você tá atento, percebeu que a gente tem falado bastante de bar e quando não sou eu, é a própria canção. Quase sempre o álcool está presente nelas, porque convenhamos, quando algo dá muito ruim, a primeira coisa que vem na nossa mente é pegar uma cerveja, uma dose ou dormir abraçado com uma garrafa de vinho. Aqui, a dupla manda um discurso de que tá bebendo pra tentar esquecer a pessoa amada, mas isso não tá ajudando o jogo virar. "Vai depender de uma mudança de postura dele: ou ele reverte isso lidando de uma outra maneira, com outras "medidas", ou insiste em uma posição de insatisfação e comiseração. Geralmente este último posicionamento tende a piorar as coisas", diz Amanda. Se de um lado o eu-lírico da música sacou que as coisas estão ruins, por outro, há uma sensação de que a felicidade dele depende extremamente da mulher amada. "A pessoa pode estar se sentindo sem saída, como se o mundo tivesse desmoronado sob seus pés quando a moça foi embora. É uma perda vivida com bastante sofrimento. Demanda tempo e cuidado para que ele recupere as forças. A tristeza faz parte da vida, ainda que o momento contemporâneo trate várias manifestações tristes ou apáticas como depressão", ressalta a psicanalista.

Jorge & Mateus - Propaganda

Ela ronca demais
Mancha as minhas camisas
Dá até medo de olhar
Quando ela tá naqueles dias

Quando estamos em um relacionamento, muitas vezes achamos que a outra pessoa é a perfeição. Amamos seus defeitos e falamos dela com os olhos brilhando, cheios de empolgação. O cara desse som é o contrário disso. Ele sai comentando para os outros que tudo o que a companheira faz é errado, que ela é insuportável e, veja você, até ronca de noite. Isso, inclusive, pode causar problemas de autoestima em quem está sendo rebaixado, caso ela tome isso na chave narcísica. Christian Dunker aponta o que isso pode significar. "É um tratamento para o ciúmes. Esse cara é mais esperto do ponto de vista subjetivo. Ele percebeu que o ciúmes dele é perigoso e faz psicologia reversa. Às vezes isso tem relação subterrânea com a ideia de que se eu rebaixo o outro, se eu humilho — e às vezes isso vem com violência — consigo amar melhor essa pessoa. Tem muita gente que só consegue transar com o parceiro quando ele se humaniza e expõe seus defeitos, porque aí está em jogo uma corrente sensual e uma terna entre o amor e o desejo, que não estão naturalmente juntos. Nessa música dá a impressão de que ele está fazendo uma contrapropaganda, mas também aproveitando pra baixar a bola dela pra poder desejá-la", diz.

Henrique & Juliano - Vidinha de Balada

Vai namorar comigo sim
Vai por mim igual nós dois não tem
Se reclamar 'cê vai casar também, com comunhão de bens
Seu coração é meu e o meu é seu também

Sabe aquele cara que mal conhece a garota e quer dizer que ela o ama, mas não sabe ainda? É exatamente esse o personagem da música do Henrique & Juliano. Ao cantar "Vai namorar comigo, sim! / Vai por mim, igual nós dois não tem / Se reclamar, cê vai casar também", ele revela um comportamento de pessoas que sofrem erotomania. "Esse delírio está aqui de uma forma branda. O que ele é? Significa que a pessoa tem uma convicção de que o outro gosta dele, só precisa descobrir e quanto mais você reclamar, mais você confirma. É o cara que troca duas mensagens no Tinder e pede em casamento, acha que porque os dois estão de verde e torcem pro Fluminense são feitos um para o outro. O delírio erotomaníaco é muito perigoso porque pode gerar coisas como stalkers, pessoas que vão pra cima, que oprimem o outro e que não conseguem perceber mensagens de que quem você deseja não está afim", diz Dunker. "O amor do eu-lírico usa a moça como um receptáculo para o amor que ele sente por ele mesmo, para manter a estabilidade dele. O outro não é visto como de fato outro, ele é uma extensão dele, por isso ele pode pegar, levar pra lá, aprisionar, é como se o outro fosse um espelho que ele precisa ter pra garantir que está funcionando de forma estável".

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