Crime

Os fatos por trás da morte de Jeffrey Epstein são piores que as teorias da conspiração

Na verdade, entender o que realmente aconteceu com o financista depravado é fácil se você tentar.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Jeffrey Epstein's death has invited lots of conspiracy theories. They are tempting, but not the real story.
Imagem por Lia Kantrowitz. Foto: New York State Sex Offender Registry via AP.

Mesmo antes de Jeffrey Epstein ser preso por novas acusações de tráfico sexual mês passado, ele tinha se tornado um símbolo de um sistema que não está apenas quebrado, mas num estado surreal de disfunção. A história do financista vem sendo descrita basicamente como “O Verdadeiro Pizzagate”: um amálgama de tudo que se suspeitava das elites depravadas, decadentes e corruptas em tempos de grande desconfiança contra o governo dos EUA. Então não foi surpresa que os teóricos da conspiração enlouqueceram no final de semana com as notícias da morte dele por suposto suicídio numa cadeia em Manhattan. O homem implicado num suposto esquema horrível de tráfico sexual de dezenas ou centenas de meninas – e com laços com pelo menos um membro da família real britânica, presidentes americanos do passado e presente, e muita gente rica e poderosa – ia finalmente encarar a justiça depois de sua prisão. Agora ele (e aqueles de seu círculo, segundo as pessoas estão pensando) mais uma vez escaparam do escrutínio.

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Quando relatos de que Epstein tinha sido encontrado inconsciente em sua cela começaram a circular na manhã de sábado, não levou muito tempo para o próprio presidente Trump retuitar uma conspiração sugerindo que os Clintons (Bill Clinton conhecia Epstein) o tinham silenciado. Enquanto isso, sobreviventes dos supostos crimes de Epstein estariam retraumatizadas, por ter a oportunidade de vê-lo ser julgado negada, já que tinham esperança de processar seus supostos facilitadores e com ações civis prontas para serem lançadas contra a propriedade dele.

Mas os fatores que ajudaram a tornar esse pesadelo possível na verdade estão bem estabelecidos, o quanto podem nesse primeiro estágio (a autópsia deu resultados bem estranhos sim). Em outras palavras, toda essa saga não precisa ser tão confusa ou fantástica quanto o pessoal conspiracionista do Twitter quer que você acredite. Há até soluções em potencial pairando para alguns dos problemas sistêmicos que permitiram que Epstein e outros como ele agissem, além de sua morte.

Então, antes de você jogar a toalha, vamos mergulhar nas conspirações sobre Epstein – ou se você já deu o pulo e está tentando voltar pra superfície pra respirar – há um consolo: não importa como ele morreu, há políticas reais e maleáveis que tiveram um papel em sua ascensão, seus crimes e sua morte.

Cadeias problemáticas

Suicídio nas prisões americanas é assustadoramente comum. Então se de fato foi assim que Epstein morreu – o New York Times disse que os legistas estavam “confiantes” de que esse era o caso, citando um oficial municipal – isso seria consistente com a tradição longa e brutal de desespero e negligência atrás das grades. Como Andrew Cohen apontou para o New Republic no final de semana, suicídio é a principal causa de morte de detentos nos EUA, e as tendências estão indo na direção errada; ou seja, oficiais são cada vez menos capazes de evitar suicídio de detentos. E como Catherine Linaweaver, que já trabalhou como carcereira na instalação de detenção federal onde Epstein morreu e já tinha sido tirado da vigilância de suicídio, disse a Associated Press: “Se alguém realmente quer cometer suicídio [na cadeia], a pessoa vai cometer”.

Também tem o fato que a Departamento Federal de Prisões (BOP em inglês) em particular sofre com uma escassez extrema de pessoal – um problema há anos, muito antes de Epstein se tornar um novo alvo para os teóricos da conspiração. O colunista do Washington Post Joe Davidson escreveu todo um relatório sobre isso em 2017, lamentando sobre “serviços de saúde mental sem funcionários suficientes para detentos particularmente vulneráveis”. Uma manchete no Times ano passado resume bem o estado precário da questão: Preocupações de Segurança Crescem Enquanto Detentos São Vigiados por Professores e Secretários, citando a insistência da administração Trump em cortar a mão de obra federal como parte do problema. Um subproduto disso é que mais trabalhadores estão fazendo hora extra, obrigatória ou não, e segundo a AP, foi exatamente isso que aconteceu no caso de Epstein: os guardas de serviço estavam em hora extra “extrema” e podem não ter conseguido verificar a situação dele a cada 30 minutos, como exigido sob o status pós-vigilância de suicídio dele, como resultado.

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Um sistema legal corrupto

Ninguém precisava de um caso como o de Jeffrey Epstein para saber que o sistema criminal fora das prisões é uma grande zona nos EUA, mas a história dele tem esclarecido profundamente essa frente também. Afinal de contas, tinha o agora notório acordo de não-acusação criado pelo ex-promotor americano Alexander Acosta, que ajudou Epstein a formalizar seu absurdo acordo judicial em 2008, rotineiramente oferecendo saídas de 12 horas por dia para trabalhar num escritório. O fato de uma pessoa rica conseguir um acordo “sweetheart” (como ele é geralmente chamado) desses é um velho tropo da vida americana. Que Epstein tenha conseguido fazer isso diante do que parece ser um monte de provas coletadas pela polícia local e o FBI, leva a questão a outro nível.

Novamente, promotores passando entre o governo e firmas chiques de direito para representar clientes duvidosos é rotina nos EUA. Essa tendência foi ilustrada por alguns dos nomes-chave no centro da investigação da Rússia de Robert Mueller, que acabou com o promotor geral William Barr basicamente dizendo pra todo mundo “circulando”. E os superastros legais – como o ex-promotor especial de Whitewater Kenneth Starr e o ex-promotor federal Guy Lewis – que ajudaram Epstein uma década atrás, tinham sua própria experiência ou experiência adjacente ao Departamento de Justiça. Até certo ponto, dizem especialistas, num país que viu a investigação de Mueller acabar com um sussurro, e apresenta pessoas não brancas encarando mais discriminação que nunca em Ferguson, Missouri, depois de uma investigação federal lá, era sensato pelo menos flertar com uma ou duas teorias da conspiração.

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“É razoável ser cético com o Departamento de Justiça”, disse Kathleen Clark, professora de direito da Universidade de Washington em St. Louis. Mas, como ela acrescentou: “Ser cético com o Departamento de Justiça não significa se agarrar a teorias da conspiração; devemos olhar para os fatos e evidência que realmente temos”.

Claro, é teoricamente possível que Epstein tivesse algum tipo de informação privilegiada ou tenha chantageado alguns oficiais-chave para conseguir seu acordo inicial tão generoso, ou que alguém que tinha medo que ele desse com a língua nos dentes tenha acabado com essas chances no final de semana. Mas uma explicação muito mais provável é que ele se aproveitou de um sistema que tem poucos defensores públicos para pessoas pobres, mas muitos buracos na lei para gente rica que tem amigos com os contatos certos. Na verdade, um relatório do Wall Street Journal do domingo, sugeria que foi a equipe de advogados muito bem pagos mais recente de Epstein que o ajudou a ganhar sua liberação bizarra da vigilância de suicídio antes de sua morte.

Um oceano de dinheiro suspeito

Talvez a coisa que mais dê raiva da saga de Epstein, fora seus supostos crimes, é que o homem implicado foi tão rico por tanto tempo sem ninguém saber realmente como e por quê. Um grupo de pessoas dentro do mundo financeiro já deu detalhes que podem ajudar a explicar a fonte precisa da riqueza de Epstein além de que ele era favorecido por Leslie Wexner, o homem por trás da L Brands, a empresa pública que inclui a Victoria's Secret. O que sabemos é que Epstein trabalhou por um tempo em Wall Street antes de se tornar um jogador mítico no mundo de gestão de patrimônios, supostamente recusando clientes com menos de um bilhão em ativos, mas só contando com Wexner – que desde então negou conhecimento sobre seus crimes – e um punhado de clientes bona fide.

Também sabemos que, como relatou o Times, os fundos de Epstein fluíam através de contas em paraísos fiscais e veículos duvidosos de caridade, os mesmos tipos de instrumentos financeiros que ficaram sob escrutínio intenso na era do Panama e Paradise Papers, além de um presidente que mente sobre seus impostos. As transações de Epstein também foram sinalizadas por funcionários de dois bancos – Deutsche Bank e JP Morgan Chase – segundo o jornal, só para que gerentes passassem por cima deles e insistissem em continuar fazendo negócio com um ricaço que significava lucro, pelo menos por um longo tempo.

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Talvez mais que qualquer outro problema – de instalações federais sem funcionários suficientes até um sistema legal onde apenas uma fração das alegações de violência sexual são julgadas, e onde abundam conflitos de interesse – essa questão é algo que especialistas acreditam que pode realmente ser consertada, ou pelo menos melhorada.

“Há uma grande parte do setor financeiro onde simplesmente não sabemos o que acontece”, disse Brad Miller, ex-congressista do Partido Democrata da Carolina do Norte, que trabalhou com regulamentação financeira depois do Crash de 2008, numa entrevista sobre Epstein antes de sua morte. “São dez ou 15 mil fundos de cobertura [por exemplo]. E cada um deles é gerenciado por alguém que acha que deveria ser bilionário. Essa é uma fórmula para má conduta.”

“Temos uma economia inteira construída sob segredo”, concordou Jeff Hauser, diretor executivo do Revolving Door Project anticorrupção do Center for Economic and Policy Research. Ele acrescentou que “Só recentemente o Deutsche Bank o largou, porque ninguém sabia que o Deutsche Bank fazia negócio com ele.”

Tem muitos motivos para estar puto da sua cara agora. O procurador-geral Barr aparentemente estava quando condenou as “sérias irregularidades” que pareciam cruciais na morte de Epstein na segunda-feira. Cabeças podem rolar, por assim dizer, dentro do BOP, e é possível que Epstein tenha de fato usado sua riqueza para conseguir tratamento especial, seja de detentos ou guardas, antes de sua morte.

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Mas novamente, contadores e advogados próximos de Epstein estariam contratando seus próprios advogados de defesa criminal, aumentando as esperanças de que o fracasso mais amplo e sistêmico onde eles podem estar seja exposto. Também nunca é tarde para impor mais salvaguardas para o sistema financeiro, como exigir que produtos de investimentos sejam mais transparente sobre suas contas e transferência de dinheiro. Enquanto isso, casos de pessoas ricas comprando tratamento especial de um governo que falha em fornecer serviços básicos em todos os níveis, no final das contas conseguindo fugir da justiça, não exigem uma teoria da conspiração para serem confirmados. É só como as coisas tendem a funcionar.

E no contexto do sistema prisional federal onde ele pode ter sido tratado como um “chomo” – ou molestador de crianças – em vez de um detento com amigos em altas posições, Epstein estava contra a parede.

“Isso é trágico e horrível para as vítimas dele”, disse Noah Feldman, historiador legal de Harvard, “e não é preciso uma conspiração para explicar por que isso aconteceu”.

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Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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