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Claudia Mamede, líder comunitária, observa uma fotografia de senhores de escravos, outrora proprietários do local onde a foto foi tirada. A cena é parte da fotoinstalação "Filha Natural" da artista visual Aline Motta. Foto: Divulgação.
Identidade

Artista de Niterói mergulha em registros da escravidão para resgatar a história familiar

O apagamento das pessoas trazidas como escravas no Brasil, ancestralidade e racismo são alguns dos temas abordados no livro "Jogo da Memória" de Aline Motta.

Escravos do Açúcar

A artista visual, fotógrafa e cineasta nascida em Niterói (RJ) Aline Motta passou anos debruçada em documentos e fotografias antigas para descobrir quem são, afinal, as mulheres de sua família cuja história foi perdida por conta da época da escravidão no Brasil, quando milhões de pessoas foram tiradas de seus terras de origem e trazidas como escravas ao país. O mergulho foi tema de algumas de suas obras, inclusive Jogo da Memória, projeto selecionado pela Bolsa da Fotografia ZUM/IMS para um livro de duas partes com experimentos literários contando histórias inspiradas na sua família e um ensaio fotográfico abordando os temas que entrou em contato na produção da obra.

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Com um extenso trabalho no cinema como continuísta em grandes longas nacionais, Aline começou a expressar sua vontade de abordar sobre suas origens familiares a partir de 2015 após participar do programa AfroTranscendence. Na sua primeira exposição individual, a fotoinstalação Filha Natural, a artista visual foi até uma fazenda onde outrora sua tataravó Francisca trabalhou como escravizada. Junto à história, a líder comunitária de Vassouras (RJ), Claudia Mamede, aparece perante as câmeras de Aline olhando para a varanda colonial onde os donos da fazenda e senhores de escravos outrora sentavam para tomar café, servidos por pessoas escravizadas. Com sobreposições de tecidos com fotos antigas projetadas, os antigos donos parecem fantasmas de um passado nada distante.

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Claudia Mamede posa para Aline em Filha Natural. Foto: Divulgação.

Aline encontrou apenas vestígios de sua tataravó Francisca. Uma certidão de óbito de alguém com o mesmo nome e idade aproximada que morreu no local, a “fazenda de Ubá”. “Acho importante frisar que esta busca por uma perspectiva mais pessoal e íntima a partir de histórias da minha família não vem de uma motivação narcisista de olhar para o próprio umbigo, e sim, como consequência de um processo muito profundo de entender, por exemplo, a historicidade de certas relações de mando e subalternidade presentes desde 1500 e que até hoje se perpetuam em nossa sociedade,” disse Motta.

Apesar das dificuldades, a artista conta que não é impossível buscar informações sobre antepassados submetidos à escravidão no país. “Existe ampla documentação sobre escravidão no Brasil. A maioria dos documentos não foi queimada, como costuma-se pensar (…),” explica. “Talvez eles não estejam nos lugares mais óbvios, mas fazer uma pesquisa online na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional e no site Family Search já é um bom começo. Às vezes, só ter a intenção de iniciar esta busca, desencadeia um processo muito transformador de autoconhecimento. Mesmo que uma pessoa não encontre um documento específico sobre sua família, irá encontrar de outras em situação semelhante, e poderá entrar em contato com todo um contexto histórico e político, a partir de uma perspectiva mais pessoal e sem tantas generalizações, como normalmente se fala sobre esse assunto na escola.”

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Pontes sobre Abismos, projeto selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016, realizado pela artista após ouvir um segredo de sua avó antes de morrer. Foto: Divulgação.

A pesquisa de Aline não revela só quem foram suas antepassadas como invoca uma memória coletiva de um Brasil recente, cujo período de escravidão foi interrompido apenas oficialmente e cujas consequências persistem na atualidade. Também revela uma necessidade da sociedade em se debruçar mais nesses registros para resgatar o que foi apagado pela promessa de “democracia racial” e embranquecimento do povo brasileiro. “Certamente o apagamento de nossas origens africanas e ameríndias é proposital. Além de uma ideia perniciosa de que não houve lutas e insurgências de todos os tipos, faz parecer que os africanos escravizados no Brasil, por exemplo, são sujeitos sem identidade, sem história, culminando no grande caldeirão da “mistura das raças”, ideia que até hoje é baliza para se referir a nossa tal identidade nacional”.

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Uma das fotos do projeto Jogo da Memória. Foto: Divulgação.

Aline participará do Festival ZUM no dia 3 de novembro, onde contará mais sobre seu trabalho Jogo da Memória que dá continuidade a sua pesquisa.

Festival ZUM
Data: 1, 2 e 3 de novembro
Local: IMS Paulista
Endereço: Avenida Paulista, 2424
Entrada gratuita
Programação e horários disponíveis aqui.

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