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10 perguntas para uma mulher que lembra todos os momentos de sua vida

“Minha primeira memória é estar num lugar escuro, com uma luz meio avermelhada e a cabeça entre as pernas.”
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
MS
Traduzido por Marina Schnoor
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Todas as imagens cortesia de Rebecca Sharrock.

Se você pegar qualquer livro da série Harry Potter, abrir numa página aleatória e começar a ler, Rebecca Sharrock, 29 anos, vai continuar o trecho de cor. “Há todo tipo de coragem”, começo, lendo do a Pedra Filosofal e sem hesitação, Rebecca responde: “é preciso muita bravura para se levantar contra seus inimigos…”

Rebecca consegue fazer isso porque se lembra de todos os momentos de sua vida, em ordem cronológica, com um nível bizarro de detalhes. No caso dela em particular, ela tem memórias como flashbacks hiper-realistas que incluem cheiros, palavra por palavra das conversas, e às vezes até dor física. Essa habilidade rara é conhecida como Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM na sigla em inglês) e Rebecca é uma entre apenas 80 indivíduos no mundo diagnosticados com a condição.

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Naturalmente, eu queria saber tudo sobre as memórias de Rebecca, seu cérebro, e como viver com um conhecimento enciclopédico da sua linha do tempo afeta o mundo dela. Então liguei pra ela em sua casa em Brisbane.

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Rebecca no dia em que nasceu, que ela lembra, claro.

VICE: Oi, Rebecca. Qual a primeira coisa que você lembra?

Rebecca Sharrock: Lembro de estar num lugar escuro, com uma luz avermelhada e a cabeça entre as pernas, então acredito que isso foi quando eu estava no útero, mas não sei quanto tempo eu tinha na época. É o mais cedo que consigo voltar, já que minhas memórias sempre são em ordem cronológica.

OK, caramba, vou te testar mais algumas vezes. O que você lembra do seu aniversário de dois anos?

Foi antes da minha irmã Jessica nascer, mas eu não sabia que minha mãe estava grávida na época. Lembro de sentar numa mesa com um bolo decorado com trens de plástico, mas eu estava mais interessada nos trens que nas velas. Depois que comemos o bolo, que tinha um papel brilhante em volta, tirei os trenzinhos e eles foram meus brinquedos favoritos por alguns meses. Naquela época, eu não sabia que estava mudando de idade, só sabia que tinha algo diferente.

Qual sua memória mais vívida?

Quanto mais antigas as memórias, mais vívidas elas são. Minhas memórias mais recentes não são tão profundas ou intensas pra mim. Mas se tenho que escolher uma, lembro de ter três anos e estar sentada na minha cama na casa dos meus avós. Perguntei pra minha mãe o que comemos no jantar algumas semanas antes. E ela sempre respondia dizendo “Não sei, Becky, foi muito tempo atrás”, e eu sempre dizia “mas algum dia, agora vai ser muito tempo atrás também”. E ela dizia “mas aí você não vai mais lembrar”.

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Quão intensas suas memórias podem ser?

Lembro de tudo. Tenho uma coisa particular com cheiros como algo sempre muito vívido das minhas memórias. Se vou pra algum lugar e quero me sentir de um certo jeito antes de sair, coloco o cheiro em particular de uma memória feliz.

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Rebecca hoje trabalha como educadora sobre autismo, dando palestras e seminários para organizações e escolas locais.

Como a HSAM é testada e provada? Como é o teste pra isso?

É um processo muito longo. Meus pais começaram entrando em contato com o laboratório McGaugh/Stark da Universidade da Califórnia Irvine. Esse é o laboratório onde a HSAM foi descoberta em 2006 e o único lugar onde você pode ser oficialmente diagnosticado. O processo levou anos. Fiz vários testes, vários eletroencefalogramas. Eles me perguntavam coisas no começo do teste, gravando, aí, dois anos depois, me perguntavam o que exatamente eu tinha dito. Fiquei muito nervosa com os testes no começo, porque eles disseram que a maioria das pessoas errava quando perguntavam o dia da semana em que aconteceu certos eventos, ou que evento aconteceu em tal dia, mas passei.

Era importante pra você ser diagnosticada oficialmente?

Com certeza. Antes de ouvir falar em HSAM, minha autoestima era muito baixa porque eu achava que tinha algo errado comigo. Foi muito bom ter uma resposta. Foi a mesma coisa quando fui diagnosticada com autismo, porque antes disso, essa era outra pergunta sem resposta que eu tinha sobre mim.

Só ouvi falar em HSAM quando tinha uns 21 anos, mas percebi que tinha algo um pouco diferente quando comecei a socializar mais na adolescência. Descobri que ficava fixada em coisas mais do que meus amigos conseguiam. Antes de ser diagnosticada, eu achava que isso era parte do TOC, que também tenho.

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Você diria que a HSAM é uma benção ou uma maldição?

Uma mistura dos dois. Maldição porque não consigo esquecer experiências ruins e revivo todas as emoções, o que muitas vezes acaba com meu dia. Mas é uma coisa boa poder reviver experiências felizes, como hoje onde estou revivendo minhas memórias de infância.

Você tem que evitar certos eventos ou cenários, sabendo que vai relembrar vividamente deles pra sempre?

Tenho que tomar muito cuidado. Tenho que acompanhar os temas atuais para futuros testes de memória, então prefiro ler o jornal. Se vejo algo perturbador num noticiário, isso pode ficar na minha mente pra sempre. Tomo remédios para controlar minha ansiedade, então se é um dia que pode me causar stress, como sair para fazer compras de Natal, tomo um Valium como precaução. Meu terapeuta me deu algumas estratégias para tentar evitar certas situações, mas sim, às vezes é inevitável passar por algo ruim.

Como você se sente quando as pessoas te pedem pra provar sua condição, ou querem testar seu conhecimento?

Quando as pessoas me pedem para provar coisas, às vezes me sinto um pouco constrangida e tímida, como se fosse um pônei treinado. E às vezes as pessoas me pedem para provar minha HSAM de um jeito muito cético. Já me mandaram mensagens dizendo que eu era mentirosa.

Se houvesse uma cura para sua condição, você tomaria?

Tomaria sem pensar duas vezes para me livrar das memórias ruins, mas quero manter todas as memórias felizes. Eles ainda estão descobrindo que partes do cérebro controlam memórias de curto e de longo prazo, então eles estão procurando jeitos seguros de ligar e desligar memórias diferentes.

Entrevista por Laura Woods.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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