​Como Remédios Chineses Antigos e Pesquisas Secretas Renderam um Prêmio Nobel
Crédito: Judy Gallagher/ Flickr

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​Como Remédios Chineses Antigos e Pesquisas Secretas Renderam um Prêmio Nobel

A exótica descoberta da chinesa Youyou Tu salvou milhares de vidas da malária.

Um projeto ultrassecreto, textos chineses antigões e uma guerra violenta. Parecem elementos de um filme de espionagem, mas, na realidade, são os fundamentos que levaram a uma das descobertas mais influentes na medicina moderna: um tratamento para a malária coordenado por Youyou Tu, a cientista que se tornou, nesta semana, a ganhadora do Nobel de ciência – a primeira mulher da China a ganhar, vale ressaltar.

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Na segunda-feira, a Assembleia do Prêmio Nobel anunciou os ganhadores do prêmio deste ano em fisiologia e medicina, um dos quais foi concedido a Tu, uma farmacologista chinesa de 86 anos. Nos anos 1970, Tu descobriu que um remédio chinês antigo para a malária, a artemísia, poderia ser utilizado para criar um tratamento moderno bastante eficaz.

Ao estudar esses textos centenários, Tu descobriu um processo para extrair a artemisina – um composto orgânico – da artemísia de modo a criar um medicamento para combater a malária que já salvou milhões de pessoas ao redor do mundo.

"Os medicamentos vêm de muitas fontes interessantes. Eles não são todos descobertos por meio de microrganismos", afirmou o Dr. Peter Agre, diretor do Instituto de Pesquisa Sobre a Malária da Johns Hopkins, e prêmio Nobel de química em 2003. "E a história por trás da descoberta da artemisina é fascinante."

Nascida em Ningbo, China, em 1930, Tu obteve o grau de farmacologia em 1955, de acordo com um perfil no Journal of Clinical Investigation de 2011. Após a graduação, ela foi designada para trabalhar na Academia Chinesa de Pesquisa da Medicina Chinesa, onde trabalharia por toda sua carreira.

Youyou Tu, à direita, e os dois outros cientistas que receberam um prêmio compartilhado em fisiologia e medicina deste ano. Crédito: Foto de Jonathan Nackstrang/Getty Images

Quando Tu se formou, um medicamento chamado cloroquina era o tratamento predominante para a malária. Era bastante eficaz, porém, mesmo nos anos 1950, havia sinais de que os parasitas causadores da malária começavam a desenvolver resistência ao medicamento. Era preciso descobrir uma nova alternativa.

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"Durante a Guerra do Vietnã, os vietnamitas do norte solicitaram ajuda à China quando soldados infectados com a malária ao longo da trilha do Ho Chi Minh pararam de reagir à cloroquinina", explicou o Dr. Christopher Plowe, especialista em malária na Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland. "Isso aconteceu durante a Revolução Cultural, quando a maioria dos intelectuais chineses foram levados a campos de reeducação. Malariologistas como Youyou Tu foram poupados e incumbidos de trabalhar com o objetivo de encontrar um medicamento novo para tratar a malária resistente à cloroquina."

Essa missão secreta foi chamada de Projeto 523. Tu e sua equipe estudaram cerca de 2.000 registros de remédios da medicina tradicional chinesa em busca de algo que tivesse propriedades antimalária. Após anos de estudos e testes de preparações possíveis em laboratório, Tu e sua equipe descobriram o tratamento eficaz com artemisina. Por causa de restrições governamentais durante a Revolução Cultural, os testes de medicamentos não eram possíveis; Tu e seus colegas então foram cobaias dos próprios experimentos ao participar dos primeiros testes do medicamento em seres humanos.

"Estávamos com medo de ficar sem medicamentos eficazes."

Eles continuaram a desenvolver o medicamento ao longo dos anos seguintes; o círculo de cientistas, doutores e pesquisadores do assunto aumentou gradativamente até 1979, quando os resultados foram publicados em inglês pela primeira vez. Nas décadas subsequentes, terapias de combinação de artemisina (uma combinação de medicamento com base na artemisina e outros medicamentos antimalária) se tornariam o tratamento mais utilizado para a malária no planeta. A estimativa é que tenha evitado seis milhões de mortes em decorrência da doença.

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"Esses medicamentos tiveram impacto enorme. Estávamos com medo de ficar sem medicamentos eficazes no sudeste da Ásia – as artemisinas salvaram muitas vidas lá", afirmou o Dr. Terrie Taylor, especialista em malária e pesquisador na Universidade Estadual de Michigan. "Na África Subsaariana, as terapias de combinação de artemisina são acessíveis e seguras e, quando utilizadas em combinação com testes rápidos de diagnóstico para a malária, fazem com que o diagnóstico seja rápido, eficaz e ainda mais acessível do que antes."

O que faz da artemisina tão eficaz é a forma como ataca a doença. Ela pode ser utilizada para tratar a malária severa ou sem grandes complicações, pode matar o parasita mais rapidamente do que outros medicamentos e ainda impede que a doença se espalhe. A forma exata como ela mata o parasita ainda é desconhecida, de acordo com Agre.

"Ainda não está claro como o medicamento funciona, e a artemisina é um bom exemplo disso", Agre afirmou. "Entretanto, ela funciona definitivamente e de forma diferente de como a cloroquina funcionava."

Infelizmente, já existem alguns sinais de malária resistente à artemisina no sudeste da Ásia, e o risco de se espalhar para a África é bastante alto. No momento, os pesquisadores estão preocupados na busca de outro tratamento ou método de prevenção eficaz o suficiente para substituir a artemisina – o que não é nada fácil.

"Não temos a nova linha de medicamentos ainda, e o espectro da resistência de artemisina se espalhando a oeste e indo para a África é um pensamento aterrorizante se considerarmos que há três bilhões de pessoas em risco de contrair a malária a cada ano", me disse Josh Blumenfeld, diretor executivo para políticas e advocacia do grupo sem fins lucrativos Malaria No More.

Entretanto, Blumenfeld disse que, com a atenção dada ao Prêmio Nobel, muitas pessoas perceberão que é possível encontrar soluções, mesmo nos locais mais inesperados, e que se trata de uma doença que tem cura.

"Nos Estados Unidos, ninguém se preocupa se, ao mandar seus filhos ao quintal de casa, eles possam morrer por causa de uma picada de mosquito", afirmou Blumenfeld. "Entretanto, para metade da população do planeta, quando as crianças brincam na rua ou voltam da escola, essa picada de mosquito pode significar a morte."

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri