​‘Deus Ex: Mankind Divided’ se sai melhor quando não força a barra
Dois colaboradores debatem por que curtiram o jogo e por que seria ainda melhor se ele não tentasse contar uma história muito complexa. Crédito: Square Enix

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Tecnologia

​‘Deus Ex: Mankind Divided’ se sai melhor quando não força a barra

Dois colaboradores debatem por que curtiram o jogo e por que seria ainda melhor se ele não tentasse contar uma história muito complexa.

Não tem muito game na praça fazendo o mesmo que Deus Ex: Mankind Divided.

Warren Spector, criador do Deus Ex original (o de 2000, saibam) se refere ao título como "simulador imersivo", o que basicamente significa que eu, no papel de jogador, sou capaz de criar minhas próprias soluções para um problema e executá-las como bem entender.

Claro que os limites da simulação não me permitem executar qualquer doideira que me vier à mente, mas o level design, as escolhas individuais e a inteligência artificial abrangentes devem permitir que cada um jogue o game de forma diferente, bem particular.

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É quase parecido com design básico de quests de Fallout 4, mas, em vez de enfatizar a quantidade de coisas que o jogador pode fazer dentro de um universo gigantesco, Deus Ex: Mankind Divided e demais simuladores imersivos optam por mundos menores e mais detalhados que – em minha opinião – fazem com que cada caminho rumo ao objetivo pareçam ainda mais especiais.

Crédito: Square Enix

Mas o Mankind Divided transcende isso aí também. É talvez o único que se revela um game sobre algo. Há uma narrativa que – ainda que meio abobalhada em vários momentos – toca em questões emergenciais do futuro, a exemplo de hackers, inteligência artificial, empresas abusivas, governos controladores, política do temo, enfim, tudo que tratamos aqui no Motherboard.

Para aprofundar alguns destes temas, troquei emails com outro repórter-colaborador, o Leif Johson, que também está jogando o game e é um nerdão de ficção científica ainda mais nerdão do que eu. Abaixo seguem nossas conversas sobre Deus: Mankind Divided.

12:52 20/08/2016

De: Emanuel Maiberg

Para: Leif Johnson

Ei Leif,

A ficção científica em Deus Ex: Mankind Divided é bastante densa e intricada, de forma que quem não jogou o game anterior, Deus Ex: Human Revolution, ou esqueceu seus detalhes (eu, por exemplo) pode assistir a um vídeo de 12 minutos que recapitula tudo que aconteceu até agora antes de mergulharem nessa.

É a colagem mais abobalhada e exagerada de clichês cyberpunk que já vi na vida e, meu deus, como amei aquilo. Estamos falando de pessoas ligando seus cérebros a computadores e sendo hackeadas, uma emissora de televisão administrada por uma IA que também é sua principal estrela, uma cidade chinesa construída em cima de outra cidade – e não para por aí. Digo, os vilões deste jogo são, literalmente, os illuminati. Descrevi para outro editor do Motherboard o jogo da seguinte forma ontem: "São as melhores manchetes do Motherboard dos próximos 100 anos enfiadas em um só game".

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Isso tudo me surpreendeu quando comecei o jogo. Eu sei que não deveria porque os games da série Deus Ex sempre foram assim, mas todo o marketing me fez esquecer disso. Estou me referindo mais especificamente, e tenho certeza que você sabe disso, ao uso da frase "Augs Lives Matter".

Crédito: Square Enix.

Mankind Divided, como seu título sugere, é a história de uma sociedade dividida entre seres humanos melhorados [augmented no original], algo do qual tratamos com frequência, e aqueles que os temem. O marketing do jogo tentou estabelecer uma relação entre isso e as questões raciais dos EUA no mundo real com o movimento Black Lives Matter.

Os resultados, como já apontamos, tem sido desastrados, no melhor dos casos, e possivelmente ofensivos. Até o momento não vi muito disso no jogo, mas quando rola, não dá muito certo.

Me peguei aqui pensando se você está gostando dessa pegada cyberpunk em especial e se esbarrou em alguma referência ao Black Lives Matter e como isso te fez sentir.

15:07 PM 20/08/2016

De: Leif Johnson

Para: Emanuel Maiberg

Dentro do contexto do game, a divisão e toda a suspeita faz algum sentido. Da última vez que vimos Adam Jensen, em 2011, o homem que inventou a técnica que permite as melhorias dentro do jogo fez com que todos que possuíssem estes dispositivos instalados surtassem, matando 50 milhões de pessoas. É quase toda a população da Costa Oeste dos EUA morta por pessoas com melhorias, algumas das quais só queriam voltar a andar depois de um acidente e não virar um robô-fodão como Jensen.

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Considerando algumas das doideiras que vemos nas manchetes de hoje, é claro que as pessoas suspeitarão e temerão algo após um evento como esse. Nesse sentido, há alguma verdade na história contada por Mankind Divided.

Crédito: Square Enix.

É um excelente pano de fundo, ainda mais quando começa e termina a humanidade assim que começamos a incorporar (literalmente) máquinas às nossas vidas. Ninguém menos que Arthur C. Clarke disse que a ficção científica especula o porquê de querermos desenvolver novas tecnologias e "como suas consequências podem afetar nossas vidas e nosso planeta". E é isso que Mankind Divided faz. Mas a maneira como o game compara isso com o racismo parece simplificar demais o tema e torná-lo risível.

Em vez de imaginar maneiras únicas em que tal situação poderia se desenrolar fazendo jus ao melhor da ficção científica, Mankind Divided parece se contentar com as comparações ao racismo que a coisa toda poderia chegar ao ponto de só trocar nomes e situações. É claro que temos termos preconceituosos como "clank" [referência ao ruído metálico de máquinas] pichados nas paredes, as filas divididas entre humanos comuns e melhorados, e por aí vai.

Felizmente a frase "Augs Lives Matter" é usada bem pouco no decorrer do game em si, mas seu uso nas artes promocionais já fala muito dessa abordagem simplista. O movimento Black Lives Matter provavelmente não era lá grandes coisas quando o desenvolvimento de Deus Ex: Mankind Divided teve início, por mais que as artes certamente tenham sido feitas comparativamente com ele, por mais que o pessoal da comunicação negue.

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É um tema importante e com uma semelhança bem tênue com a sua narrativa. Deus Ex busca ter uma importância. É um game sobre máquinas, humanidade e o futuro; é o game mais Motherboard de todos. Ele quer nos lembrar que a ficção científica deveria ir além de dar aquela nostalgiazinha gostosa pra fãs de Jornada nas Estrelas e Guerra Nas Estrelas.

Crédito: Square Enix

Ainda assim, ao se apoiar tanto no racismo e de forma tão cômica, o jogo acaba tirando de si qualquer significado a longo prazo que poderia ter, fica sem identidade própria, não nos faz refletir. Eu gosto do jogo, mas esperava mais dele. Os detalhes são fantásticos – os cenários de Dubai e Praga são incríveis, os problemas de Jensen com suas melhorias, a pegada cyberpunk perfeita – mas ao terminar o jogo tudo parece meio que um cosplay.

Creio que, se Mankind Divided abordasse alguns temas reais dos dias de hoje, ficaria ainda mais bobo. Levando em conta acontecimentos recentes aqui nos EUA e fora, sua insistência de que o mundo é governado por um grupo de pessoas hiper-inteligentes é quase charmoso.

Ao passo em que Deus Ex cumpre um bom trabalho ao falar da política do medo, ele muitas vezes não leva em conta a ignorância teimosa que caracteriza muito do que vemos rolando hoje. Você encontrou algum elemento da cultura moderna no game que gostaria que fosse explorado mais a fundo?

17:25 20/08/2016

De: Emanuel Maiberg

Para: Leif Johnson

Acho que você acertou em cheio quando disse que é óbvio que o lance do "Augs Lives Matter" entrou no game aos 45 do segundo tempo. Alguém argumentará que partes do enredo podem entrar quando o desenvolvimento já está bem avançado, mas não muda o fato de que foi algo pensado depois, o que é o mais ofensivo nisso tudo.

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Quanto à sua pergunta, porém, minha resposta é não. Penso que quanto menos Mankind Divided tenta abordar "questões reais", melhor fica. Não que eu não queira que games lidem com temáticas difíceis. Normalmente eu argumentaria em prol do contrário, mas como a equipe da Eidos Montreal não tem as manhas, pô, é melhor não fazer nada do que fazer algo porcamente. Além disso – e fico meio mal em falar isso – eu meio que curto como o game pode ser superficial.

Crédito: Square Enix

Também é divertido especular o futuro de forma simplista: qual será o papel dos hackers em um mundo cada vez mais conectado? O que acontecerá com o Oriente Médio? Veremos a ascensão de uma religião de culto às máquinas? Em seus melhores momentos Mankind Divided se parece com uma conversa bem imbecil sobre o futuro. E eu gosto disso.

O infortúnio, como você disse, é quando o game aplica esta mesma mentalidade aos problemas bastante dolorosos e reais com os quais lidamos hoje.

Acho que já discutimos o bastante este aspecto de Deus Ex, então gostaria de finalizar com seus pensamentos sobre o game em si. Você é um puta fã de RPGs. Este jogo te satisfaz nesse sentido? Gosta dele como simulação?

07:10 21/08/2016

De: Leif Johnson

Para: Emanuel Maiberg

Na maior parte do tempo, funciona. Em Praga, a cidade está cheia de vida (por mais deprimente que seja). A Eidos captura bem a tensão. Os primeiros momentos do game começam com uma estação de metrô cheia de gente que talvez eu tenha visto em minha viagens diárias em Chicago, com policiais de armadura preenchendo o espaço desconfortável entre elas. Na República Tcheca, pedem por meus documentos com uma insistência que sugere que vai dar ruim não importa o que você fizer. Você sobrevive à próxima situação do mesmo tipo, passando por checkpoints para "augs" e "naturais", e aí mais alguns policiais pedem seus documentos.

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Na rua, os prédios dão sinais do tempo e por vezes seus interiores surpreendem com detalhes individualizados também. Em alguns momentos, a história muda o cenário para a noite e as ruas ganham novo tom de ameaça. Missões paralelas surgem quase que organicamente a partir dos transeuntes. A pichação que diz "clank" pode parecer meio tosca, mas não há dúvidas de que ela foi colocada no local apropriado, como se houvesse um picho ofensivo em Praga que este substituiu. E enquanto a polícia seguia sua patrulha, com suas luzes piscando e gritando com alguém, sempre parava para pensar se não era eu mesmo.

Crédito: Square Enix.

A coisa toda funciona tão bem de fato que fiquei com um pouco de medo. Não como num pesadelo, mas a polícia batia tão forte que me vi investindo no stealth do jogo não por querer um desafio, mas porque botava fé que a polícia cairia com tudo em cima de mim se tentasse algo mais agressivo. Mais uma vez, independentemente das deficiências no enredo, a Eidos Montreal não poupou ao trazer o mundo ao seu redor à vida.

Infelizmente a ilusão se vai logo e aí fica claro que estamos num game. Sofri um pouquinho pra descobrir como passar de uns capangas pra encontrar um cara que poderia consertar minhas melhorias quando, finalmente, frustrado, decidi nocautear um deles. Seu amigo sacou e o matei. Meti um tiro ali no beco mesmo e problema resolvido. Daí que os tiras ali na esquina não deram a mínima prum tiroteio rolando em uma livraria logo depois. (Mas me atacaram posteriormente por outras razões.).

Passando disso, é só diversão. Mankind Divided traz algumas novas melhorias para Jensen que o permitem dar uma avançada para frente, parar o tempo (*cof* acelerar seus movimentos *cof*) e acertar inimigos e paredes com armas de pulso que derrubam tudo. Claro que tem uma pegadinha: Jensen superaquece ao usar estas novas melhorias com as antigas, então é preciso desabilitar uma velha para usar uma nova. Mas, com o tempo, ele acaba se tornando quase que um deus, o que combina com o título do game.

Logo, sim, admiro como RPG, especialmente quando estou lá como Jensen, tomando decisões como agente da Interpol ou como humano modificado ajudando outros humanos modificados. Estou convencido ainda de que há um game maior aqui com mais a dizer, ao menos se fosse possível deixar de lado esse lance dos Illuminati (que sempre parece forçado), mas o que joguei é sem dúvida um dos melhores RPGs recém-lançados em meses.

Tradução: Thiago "Índio" Silva