Como piratas da Wikipédia de Angola expõem os problemas do colonialismo digital
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Como piratas da Wikipédia de Angola expõem os problemas do colonialismo digital

Angolanos encontraram meios criativos de compartilhar músicas, filmes e séries pelos limitadíssimos programas de taxa zero da Wikipédia e do Facebook. As empresas agora não sabem muito bem o que fazer.

Angolanos encontraram meios criativos de compartilhar músicas, filmes e séries pelos limitadíssimos programas de taxa zero da Wikipédia e do Facebook. Preocupadas com direitos autorais, as empresas agora não sabem muito bem o que fazer.

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Não faz muito tempo que a Wikimedia e o Facebook deram acesso gratuito aos seus respectivos sites para os angolanos — mas não ao resto da internet. Nada mais natural, então, que os usuários do país escondessem filmes e músicas piratas em artigos da Wikipedia, publicassem links para eles em grupos fechados no Facebook e, assim, criassem uma rede de compartilhamento de arquivos grátis e clandestina num país em que os planos de dados para celular são extremamente caros.

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É um uso criativo de dois serviços criados para que pessoas de países em desenvolvimento tenham algum acesso à internet. Nesse processo, porém, os editores da da Wikipédia e da Wikimedia Foundation enfrentam dores de cabeça com direitos autorais e, pelo que expõem nos fóruns, ninguém tem ideia do que fazer.

A história começou em 2014, quando a Wikimedia iniciou uma parceria com a operadora de telecomunicações angolana Unitel para oferecer o Wikipedia Zero a seus clientes. Um tanto quanto controverso, o programa cobra "taxa zero" para o acesso à Wikipédia e a outros sites de propriedade da Wikimedia (como o banco de imagens e vídeos Wikimedia Commons) em telefones celulares em países em desenvolvimento, o que significa que os clientes não precisam pagar nada pelo uso de dados na rede da Unitel quando dados estejam associados a domínios wikimedianos.

O argumento a favor da taxa zero é que ela permite o acesso a informações por pessoas que não tem como pagar por isso (a Unitel cobra US$ 2,50 por 50 MB de dados para celular; o salário médio de um angolano é US$ 720 por ano, de acordo com a Freedom House). O raciocínio contra a taxa zero é que, ao oferecer acesso a um ecossistema fechado, cria-se um sistema de internet elitizado – pessoas que têm dinheiro podem acessar a "internet de verdade" enquanto quem não pode pagar por isso tem de se contentar com o Facebook, a Wikipedia e alguns outros serviços, e talvez nunca tenham a chance de ser promovidos à internet inteira e aberta.

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O programa do gênero do Facebook, chamado de "Free Basics", foi criticado – e banido na Índia – porque alguns o veem como uma técnica da empresa de Zuckerberg para atrair usuários; o Wikipedia Zero, por sua vez, foi menos atacado porque a Wikimedia é uma organização sem fins lucrativos e seus sites costumam se posicionar como puramente informativos.

Se os países em desenvolvimento querem usar nossa internet, eles precisam jogar segundo nossas regras – esse é o pensamento

Quase ninguém pensa no que aconteceria se pessoas criativas encontrassem brechas nesses serviços com taxa zero. Angolanos espertos usaram esses dois serviços grátis – Facebook Free Basics e Wikipedia Zero – para compartilhar filmes piratas, música, séries de televisão, anime e jogos na Wikipédia.

Como os dados são gratuitos, angolanos escondem arquivos grandes em artigos da Wikipedia em português – à vezes disfarçando filmes como arquivos JPEG ou PDF. Eles então usam grupos no Facebook para direcionar pessoas às mídias. Em um dos grupos com 2.700 membros há a seguinte descrição: "criado com o objetivo de compartilhar música, filmes, fotos e animes via Wikimedia." (Não fui aceito e nenhum dos administradores respondeu às minhas mensagens pedindo entrevistas.)

A velha guarda da Wikipédia está preocupada com esse desdobramento. A Wikipedia tem um regulamento de direitos autorais muito rigoroso, e alguns editores do site dizem estar cansados de brincar de pique-esconde.

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"Estou denunciando um possível mau uso de projetos da Wikimedia e da Wikipedia Zero para violar direitos autorais", escreveu um editor num fórum de discussão da Wikipédia. "Não sei se usuários estão fazendo isso por má-fé, mas foram advertidos e continuam. Não acho que o Wikipedia Zero deveria deixar de existir ali, claro, mas talvez algo possa ser feito, como impedir que eles façam upload de arquivos grandes ou dar instruções prévias em seu idioma local sobre o que eles podem e não podem fazer."

Em muitos casos, grandes quantidades de endereços de IP suspeitos de pertencer a angolanos usuários do Wikipedia Zero foram proibidos de editar artigos da Wikipédia. O efeito colateral foi impedir que usuários angolanos do Wikipedia Zero colaborem com a Wikipédia de maneira mais tradicional. (Houve um caso em que IPs foram desbloqueados porque um editor da Wikipédia em português decidiu que as fotos amadoras de fotógrafos angolanos eram "de imenso valor.")

Numa discussão por e-mail na lista Wikimedia-L e nas páginas de discussão da Wikipedia, usuários de países desenvolvidos tentam encontrar uma solução intermediária.

Captura de tela do Facebook

Pouca gente parece concordar que proibir angolanos de editar artigos da Wikipédia seja uma boa solução, mas alguns editores dizem que já não aguentam deletar manualmente o conteúdo pirata. Eles sugerem que usuários do Wikipedia Zero deveriam poder somente ler a enciclopédia, sem poder editá-la nem fazer upload de arquivos.

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Adele Vrana, chefe do programa Wikipedia Zero, me disse numa entrevista por telefone que a fundação tem conhecimento da situação desde o meio do ano passado e afirmou que proibições em massa ou alterações no programa Wikipedia Zero "estão fora de questão". Ela escreveu um e-mail para lista de discussão para afirmar que a Wikimedia Foundation está tão incomodada quanto seus editores.

"Preferiríamos descobrir isso muito antes ou simplesmente evitar por completo (sem criar limites significativos para editores de boa fé). Na última primavera, tivemos discussões internas sobre como encontrar soluções técnicas para esse problema", ela escreveu. "Entendemos que, para nossa comunidade de editores, é um desafio lidar com a chegada súbita de muitos novos editores. Essa parece ser uma conversa crucial e importante na qual o movimento como um todo deve se envolver. Espero que consigamos transformar esse momento em Angola numa oportunidade para aprender como lidar com novos leitores e editores."

Benoit Rousseau/Wikimedia Commons

Conversei com especialistas de três diferentes grupos de estudo do direito digital que já se haviam manifestado contra ou a favor da tarifa zero. Nenhum deles quis dar uma opinião oficial. Não sabem dizer se o que estava acontecendo em Angola com a Wikipedia Zero era bom ou ruim. Ainda que não tenha havido respostas certeira, essas conversas deram uma linha de raciocínio que tem muito sentido: de certa forma, esse é um debate sobre o que a Wikimedia – uma comunidade e organização que se orgulha de disseminar informações livremente – fundamentalmente quer ser.

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Vrana me disse que a Wikimedia está "analisando os aspectos legais e estudando a legislação local para entender como as leis de direito autoral funcionam na Angola", mas Juliet Barbara, porta-voz da Wikimedia Foundation, disse que por enquanto a fundação vai usar seu sistema de desenvolvimento colaborativo para remover o material que viola direitos autorais.

"Com o sistema atual, o que temos são regras desenvolvidas por voluntários e que dizem respeito ao conteúdo que aparece na Wikipédia", disse Barbara. "Essas regras são muito específicas quando dizem que esse conteúdo deve ser conteúdo orientado ao conhecimento, e não conteúdo de interesse pessoal. Não estou dizendo que sempre vai ser assim, mas é com essa restrição que estamos trabalhando."

Muitos na lista de discussão estão descrevendo os piratas da Wikipédia de Angola como maus elementos que precisam ser detidos de alguma maneira para que editores mais responsáveis não sejam punidos por suas ações. Essa linha de raciocínio parte do pressuposto de que o que os piratas angolanos estar fazendo é ruim para a Wikipédia e que eles precisam ser assimilados para seguir às regras já determinadas pela comunidade da enciclopédia. Se os países em desenvolvimento querem usar nossa internet, eles precisam jogar segundo nossas regras – esse é o pensamento.

Mas a população de países em desenvolvimento sempre teve de ser mais criativa do que quem vive em países onde o acesso à informação é algo comum. Em Cuba, por exemplo, filmes, música, notícias e jogos são contrabandeados em pen-drives que entram despercebidos no país toda semana. Um programador paraguaio de 20 anos encontrou uma vulnerabilidade no Facebook Messenger que permitia que o público usasse o pacote Free Basics como um túnel para a "internet de verdade". Questões legais à parte (Angola tem leis de direitos autorais menos rigorosas do que a maior parte do mundo), os piratas de Angola estão levando adiante de uma maneira real e considerável a missão da Wikipédia de disseminar a informação

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"Em geral, é melhor dar mais abertura e liberdade às pessoas no uso de ferramentas na internet porque você nunca sabe o que pode acabar sendo útil."

"Quando usuários têm a possibilidade de acessar parcialmente a serviços da internet, mas não a internet como um todo, eles podem inventar maneiras criativas de usar essa internet parcial de uma maneira que pode afetar negativamente a entidade que oferece acesso a eles", me contou Josh Levy, diretor de advocacia na ONG Access Now. (O Access Now é um dos poucos grupos que disse que o Wikipedia Zero era uma má ideia porque criaria uma internet dividida em castas.)

Embora o "mau uso" de sistemas de tarifa zero seja um problema recente, ele é muito parecido com algo que tem acontecido na internet como um todo há décadas. A melhor aposta é permitir que a efervescente comunidade da internet de Angola se desenvolva sem a nossa interferência, mesmo que isso signifique um processo doloroso para a Wikipédia. Muita gente acreditava que projetos de leis de proteção do direito autoral como o Stop Online Piracy Act, que censuraria sites que armazenam conteúdo pirata, teria arruinado a internet; limitar a maneira como angolanos (ou qualquer outro usuário da Wikimedia Zero) acessa o site poderia ter efeitos negativos.

A Wikimedia Foundation, de sua parte, parece bem intencionada com sua proposta de esperar para ver. A fundação não dá dinheiro à Unitel como parte do programa; uma boa solução aqui, provavelmente, seria oferecer acesso barato ou grátis a toda a internet. Enquanto editores da Wikipedia em Portugal podem ir a outro website para baixar ou compartilhar arquivos piratas, essa não é uma opção realista para os angolanos.

"Esse é o tipo de coisa que reflete batalhas maiores que estão em andamento e envolvem a internet como um todo", disse Charles Duan, um especialista em direitos autorais na Public Knowledge. "Em geral, é melhor dar mais abertura e liberdade às pessoas no uso de ferramentas na internet porque você nunca sabe o que pode acabar sendo útil."

Os piratas angolanos estão aprendendo como se organizar online, estão aprendendo a apagar suas pistas, estão aprendendo como direcionar as pessoas até a informação e como esconder e compartilhar arquivos. Muitas dessas habilidades são as mesmas que seriam úteis para um dissidente, manifestante ou ativista. Ao considerar que Angola tem um líder autocrático no poder há mais de 35 anos, essas habilidades podem ser úteis um dia.

Tradução: Danilo Venticinque