Fomos ao Comício em que o PT Voltou às Raízes

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Fomos ao Comício em que o PT Voltou às Raízes

Enquanto Lula, Dilma e artistas VIPs desfilavam no teatro, milhares de militantes forçavam a entrada do lado de fora, obrigando os marqueteiros a rever suas crenças nas eleições 2014.

Os militantes do PT deram ontem um golpe branco na própria campanha. Enquanto, do lado de dentro do Tuca, o tradicional teatro da PUC de São Paulo, os marketeiros de Dilma Rousseff comandavam uma festa sob medida para render belas imagens na propaganda eleitoral, milhares de pessoas se amontoavam do lado de fora, espremendo-se contra grades de ferro, discutindo com seguranças, pulando, cantando, se abraçando, rindo e tomando chuva num enorme comício que reatou o partido atual com a velha forma de mobilização política, indicando que a salvação para o nível terrível das eleições de 2014 pode estar onde mais se espera: na rua.

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Não era para ser tão assim. O evento pretendia marcar o apoio de artistas, intelectuais e acadêmicos à campanha de Dilma. O teatro impecável, iluminado por canhões de luz e refletores, converteu-se, do lado de dentro, numa passarela VIP para VIPs credenciados serem vistos, retratados e filmados. Toda a atenção do marqueteiro João Santana estava posta no palco. Alheia a isso, a massa - impedida de entrar no teatro de apenas 672 lugares por seguranças privados, soldados da Polícia do Exército e agentes da Polícia Federal - fazia a festa, atravancando as ruas do bairro conservador de Perdizes.

"Que porra é essa? Que história é essa de me impedir de entrar no comício do meu próprio partido?", gritava uma senhora que possuía apenas os dois caninos na arcada dentária superior, repleta de adesivos na camisa, segurando uma bandeira. Ela lançava mil perdigotos por segundo na cara de um segurança de terno preto, indignada por ser barrada no que deveria ser sua própria festa.

A velha senhora não sabia, mas encarnava naquele momento o choque entre o antigo e o novo PT. Do lado de dentro, bombava a campanha marqueteira na qual as estrelas brilham e o militante é apenas um coadjuvante, um figurante da própria trajetória. Do lado de fora, 34 anos de militância e história forçavam a entrada, fazendo da rua um palco ignorado.

Foi nesse palco da rua que apareceu o diretor de teatro Zé Celso Martinez Corrêa, de 77 anos. Ele estava espremido contra uma das grades de segurança, na frente da porta central do Tuca. Sozinho, sem assessores, ajudantes ou seguranças, esperava ser reconhecido e chamado para dentro. Zé Celso era aguardado no palco, mas os homens que protegiam o portal não sabiam disso.

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"Esse velho é importante, você devia deixar ele entrar", falei para um dos seguranças. "Ele não está com credencial, não posso fazer nada", respondeu o jovem moreno de terno negro. Fiquei trocando uma ideia com Zé Celso enquanto tentava pôr ele pra dentro de uma festa que havia sido criada para pessoas como ele.

"Na situação estratégica de agora, com a direita aglutinada e com um monte de vira-casaca debandando, Dilma ficou como a alternativa viável à esquerda", me explicou o diretor. "Ela é a candidata que dará força à cultura e aos direitos humanos para desconstruir tabus, lutar contra a homofobia e pela discriminalização do aborto, é a candidata que vai tratar a questão das drogas como uma questão de saúde pública, contribuindo para o esvaziamento das nossas cadeias superlotadas."

Tirando proveito do fato de ele estar esmagado entre grades de ferro e uma massa de milhares de jovens, provoquei, perguntando o que ele achava do evento realizado por artistas em apoio ao candidato Aécio Neves, na semana anterior. Bem menos concorrido, o ato havia reunido do músico Lobão ao deputado recém-eleito Coronel Telhada, ex-membro da Rota. "Dizer que o Coronel Telhada é da cultura só porque foi segurança do Chitãozinho e Xororó só pode ser piada", retrucou, ajeitando o colar indígena de penas verdes e amarelas que pendia do pescoço, adornando um figurino composto por camisa branca e terno branco.

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O evento teve início às 19h, como programado, mas Dilma demorava a chegar. Em busca de sinal de celular, pus a cara para fora da sacada do segundo piso do teatro. Talvez por trazer um crachá vermelho de imprensa, com a estrela do PT desenhada nele, talvez por ter o nariz muito grande, acho que a multidão me confundiu com o vice de Dilma, o pemedebista Michel Temer, e começou a gritar e pular, pedindo que a presidente também aparecesse na janela.

Minutos depois, um comboio de carros negros, com vidros filmados e batedores militares, encostou ao lado da multidão. O Justin Bieber não teria chamado mais atenção que o senhor de barba grisalha que saiu do automóvel e caminhou na direção de uma entrada lateral do teatro. Dezenas de pessoas correram desenfreadas na direção de Lula, que acenava e caminhava sem se deter.

Do lado de dentro, o mestre de cerimônias, o ator Sérgio Mamberti, anunciou a presença de Dilma e Lula no teatro. A multidão veio abaixo. Os dois entraram no palco, ladeados pela figura sinistra de Temer, que parecia flutuar a um palmo do chão. Um sanfoneiro puxava a musiquinha da campanha do PT enquanto o vice-presidente da República batia palmas no compasso e bailava o forró, mimetizado entre os petistas, aplaudido pela plateia. Ao vê-lo dançando, num terno impecável, percebi finalmente que eu não era ele.

"Somos favoráveis à alternância de poder. Eles ficaram 500 anos. Os próximos 500, portanto, devem ser nossos", havia dito minutos antes o candidato derrotado ao governo de São Paulo pelo Psol, Gilberto Maringoni.

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Agora, sobre o palco, os arquitetos dos planos do PT para os próximos 500 anos se abraçavam. De dentro do teatro era possível ouvir a massa gritando do lado de fora. Um telão transmitia para a rua tudo o que se passava no interior do Tuca. Outro mostrava para os que estavam dentro tudo o que acontecia na rua.

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O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, poupou a plateia dos sofríveis acordes de guitarra tocados dias antes num evento da Prefeitura. Em retribuição, o candidato derrotado ao Senado pelo PT, Eduardo Suplicy, não cantou nenhuma canção de Bob Dylan. Ambos foram imensamente aplaudidos, creio que justamente por isso. (Para registro: Haddad não chegou nem saiu de bicicleta do teatro, embora o bairro esteja repleto de ciclovias novinhas).

Lula valeu o ingresso. Comparou política com feijão tropeiro e com a zaga do Corinthians. Dilma não parecia estar nervosa como nos debates na TV, fez as pazes com as vírgulas e repetiu, de propósito, a palavra "estarrecida" várias vezes. Sempre que a vejo pessoalmente tenho a impressão de estar diante de algum humorista ruim que se faz passar por ela. É como se eu esperasse outra pessoa, como se ela estivesse rindo por dentro por eu cair no conto de que ela é ela mesma.

Na sacada do Tuca, ninguém teve dúvida de que a gerenta era real e estava ali. Dilma acenou para a multidão e deve ter saído com a impressão de que fez as pazes com São Paulo, onde o desempenho no primeiro turno foi fracão. Até chover, choveu, embora ainda não se possa dizer que Lula tenha a ver com isso.

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Terminada a festa, a parte economicamente bem resolvida do petismo foi comer no Hobby Burguer, numa esquina discreta do bairro, onde o consumidor só pode pagar em dinheiro vivo. Pisei no recinto e logo vi sobre as mesas um vasto material de campanha, em vários tons de vermelho, com estrelas de todos os tamanhos. "Achamos o pico da esquerda caviar", eu disse, olhando nos olhos de um casal de moças sentadas logo nos primeiros lugares. A cena foi tão improvável que ninguém retrucou. Tive a impressão de que a tensão existente no Facebook é menor na vida real, quando as pessoas se olham nos olhos e se veem como gente.

Depois de ter ouvido Marina Silva se anunciar como "a pororoca do Brasil" e de Aécio Neves ter nos prometido se "desnundar da campanha", fomos numa coletiva chata pra cacete da Dilma. Mas ontem foi diferente destas três ocasiões anteriores. Parecia que o PT tinha saído do túnel do tempo, com a militância ainda perplexa pelo efeito espontâneo que uma noite dessas pode causar em si mesma.