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Tequila, Pérolas Pintadas e Prada: Como a CIA Ajudou a Produzir 'A Hora Mais Escura'

A VICE teve acesso exclusivo aos documentos que detalham como os funcionários da CIA trabalharam diretamente com o roteirista Mark Boal e a diretora Kathryn Bigelow na realização do filme da morte de Osama bin Laden.

No dia 21 de abril de 2011, Mark Boal ligou para a CIA a fim de contar que estava indo ao Afeganistão. No ano anterior, o roteirista estava num jantar quando o diretor da CIA, Leon Panetta, pediu que ele alertasse a agência se algum dia viajasse até o país. Na época, Boal estava trabalhando num projeto de filme chamado Tora Bora sobre o fracasso da CIA em capturar Osama bin Laden logo depois dos ataques de 11 de setembro. O título era uma referência a uma região do leste do Afeganistão onde os EUA tinham deixado bin Laden escapar durante uma batalha em dezembro de 2001.

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Porém, menos de duas semanas depois da ligação de Boal, uma equipe de SEALs atacou o esconderijo do líder da Al-Qaeda no Paquistão e o matou. Boal acabaria não indo ao Afeganistão no final das contas.

Em vez disso, ele parou de escrever o roteiro de Tora Bora e começou um trabalho diferente, que falava sobre o que um congressista americano chamou de "a missão mais secreta da história" – o assassinato de bin Laden. Aquele filme, no qual Boal iria trabalhar com a diretora Kathryn Bigelow, se tornaria A Hora Mais Escura, que chegou a ser indicado ao Oscar de 2012. E a CIA teria um papel enorme na criação do roteiro.

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O telefonema de Boal foi incluído em mais de 100 páginas de documentos internos da CIA obtidos com exclusividade pela VICE em resposta a um processo de Liberdade de Informação (FOIA, em inglês). Os documentos contêm a informação mais detalhada até agora sobre o controverso papel da agência na produção de A Hora Mais Escura (AHME).

Incluídos no acervo de registros editados da agência, estão dois relatórios: um de 2014 do inspetor-geral da CIA intitulado "Suposta Divulgação de Informação por Ex-D/CIA" – D/CIA se refere ao diretor da Agência de Inteligência Central, Leon Panetta – e outro de 2013 intitulado "Violações Éticas em Potencial Envolvendo Produtores de Cinema".

O relatório de ética contém detalhes de como Bigelow e Boal deram presentes e pagaram refeições aos agentes da CIA em hotéis e restaurantes de Los Angeles e Washington, DC – muitos não registrados inicialmente pelos agentes da CIA –, obtendo, assim, um acesso sem precedentes a detalhes secretos da operação bin Laden e conseguindo que oficiais da agência revisassem e criticassem o roteiro de AHME.

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Peter King, congressista republicano de Nova York e ex-presidente do Comitê da Segurança Interna, tinha pressionado os inspetores-gerais da CIA e do Departamento de Defesa em agosto de 2011, um mês depois de Panetta deixar a CIA para atuar como secretário da Defesa, para investigar as supostas revelações a Boal e Bigelow. Isso veio depois de a imprensa afirmar que oficiais de alto escalão da administração Obama tinham concedido aos produtores do filme acesso extraordinário a detalhes secretos da operação bin Laden e que essas revelações levaram à prisão de paquistaneses que ajudaram a CIA na operação. As objeções de King estavam ligadas ao fato de que a película deveria ser lançada originalmente um mês antes da eleição presidencial americana de 2012 – mas acabou estreando em dezembro – e que isso seria usado na campanha de reeleição de Obama.

A CIA trabalhou com Bigelow e Boal na época em que o programa de interrogatório melhorado da agência estava sob escrutínio dos democratas no Comitê de Inteligência do Senado.

Eles estavam trabalhando no que ficou conhecido como o relatório de tortura do Senado sobre a eficácia das técnicas aos quais os capturados pela CIA estavam sujeitos. O relatório concluía que essas técnicas não rendiam inteligência única ou incontestável e não tinham nada a ver com o rastreamento de bin Laden. AHME, no entanto, sugere que o uso de tortura levou a agência a bin Laden, uma narrativa que oficiais atuais e antigos da CIA promoveram em vários artigos de opinião e entrevistas depois que o então líder da Al-Qaeda foi morto. Que essa narrativa fosse de AHME enfureceu a senadora Dianne Feinstein, a presidente democrata do Comitê de Inteligência do Senado, que divulgou uma carta ao presidente da Sony Pictures contra o que ela chamou de "falsa narrativa".

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Até hoje, a CIA defende o uso do chamado "interrogatório melhorado". Nesta semana, vários ex-oficiais da agência, incluindo um que se encontrou com Bigelow e Boal, estão lançando um livro chamado Rebuttal, defendendo o programa de interrogatório melhorado da agência e criticando duramente o relatório do Comitê de Inteligência do Senado.

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Os relatórios atestam que a relação de trabalho da CIA com os produtores do filme começou em 2010, um ano antes de bin Laden ser morto.

"Baseado na revisão dos documentos e das entrevistas, o escritório do inspetor-geral determinou que a cooperação da CIA com os cineastas Mark Boal e Kathryn Bigelow começou em 2010, quando Panetta e Bigelow se encontraram num evento onde Bigelow discutiu seu projeto de filme Tora Bora, envolvendo o fracasso da CIA em capturar [bin Laden], e Panetta ofereceu a assistência da agência."

Dias depois da morte de bin Laden, Boal conseguiu entrevistas com oficiais da CIA e de contraterrorismo. Segundo o relatório do inspetor-geral sobre possíveis violações éticas por parte dos oficiais da agência, Boal também enviou uma carta para George Little, então diretor do Escritório de Relações Públicas (ERP) da CIA, logo depois das primeiras notícias sobre a morte do terrorista. Ele queria discutir um novo plano: esquecer o roteiro de Tora Bora e contar a história de como a CIA conseguiu encontrar e matar bin Laden. Menos de três semanas depois da morte do então líder da Al-Qaeda, Boal e Michael Feldman, o relações-públicas de Tora Bora , se encontraram com oficiais da CIA para discutir o novo projeto.

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"O inspetor-geral da CIA disse que os investigadores tinham 'informações conflitantes se Panetta sabia que Boal estava no público durante seu discurso'."

O roteirista descobriu pelos oficiais de contraterrorismo que a CIA ia realizar uma cerimônia de premiação secreta no dia 24 de junho de 2011 em honra aos membros da equipe que caçou bin Laden.

"Boal mostrou interesse em participar da cerimônia e passou seu pedido para [uma mulher da agência]", informa o relatório.

O relatório acrescenta que a CIA deu a Boal acesso ao seu pessoal e às instalações menos de um mês depois da morte de bin Laden a fim de que ele pudesse "aprofundar sua pesquisa" para o roteiro de AHME. Para ajudá-lo na pesquisa e "capturar a atmosfera", uma "continuação de seus primeiros encontros que foram 'abençoados' pelos oficiais da CIA", o roteirista foi convidado para participar da cerimônia de premiação secreta da agência, "realizada dentro de uma grande tenda" em frente à principal entrada do quartel-general na CIA em Langley, Virgínia. A cerimônia contou com cerca de 1.300 pessoas.

"O público era uma mistura de pessoal oficial e secreto da Comunidade de Inteligência, além de pessoas do Departamento de Defesa e do Congresso americano. [SEALs da Marinha] que conduziram a operação [que matou bin Laden] também estavam presentes", diz o relatório.

Não se sabe exatamente quem da CIA fez o convite formal a Boal. O relatório do inspetor-geral frisa que o ERP, que faz a ponte entre a agência e a indústria do entretenimento, arranjou para que ele estivesse presente na cerimônia de premiação, destacando que isso ficaria fora dos registros. Mas o relatório também aponta que o escritório do Diretor da Inteligência Central "aprovou o convite de Boal".

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"Enquanto [o escritório do Inspetor-Geral da CIA] determinou que vários oficiais sêniores estavam conscientes de que Boal estaria na Cerimônia de Premiação da Operação [bin Laden], não pudemos certificar quem especificamente autorizou o convite de Boal", continua o relatório.

Quando confrontado pelo inspetor-geral da CIA, o diretor da CIA respondeu que não fazia ideia de que o roteirista estava presente na cerimônia. No entanto, o inspetor-geral disse que os investigadores tinham 'informações conflitantes se Panetta sabia que Boal estava no público durante seu discurso'. Pelo menos um empregado da CIA falou ao inspetor-geral que Panetta "sabia que Boal estaria na cerimônia".

Panetta contou aos investigadores que não tinha conseguido identificar Boal na cerimônia porque nunca tinha encontrado o roteirista pessoalmente. Mesmo assim, a história do diretor da CIA não batia. Junto com o e-mail que Boal mandou a Panetta em abril de 2011, era possível determinar que ele já tinha se encontrado pessoalmente com o roteirista em maio de 2010 no Jantar de Correspondentes da Casa Branca. Na verdade, Panetta se sentou à mesma mesa que Boal e Bigelow e, como o outro relatório sobre possíveis violações de ética deixa claro, instruiu ambos a contatá-lo quando estivessem prontos para trabalhar no filme original sobre bin Laden, Tora Bora.

Na mesa de Boal, Bigelow e Panetta, também estava o ex-senador americano Evan Bayh, que já tinha sido membro do Comitê de Inteligência do Senado; além disso, quatro anos antes, ele tinha liderado o "conselho de revisão de responsabilidade" sobre acusações de que a CIA tinha espionado funcionários do Senado e invadido seus computadores, nos quais eles estavam pesquisando e compilando o relatório de tortura. O inspetor-geral da agência tinha considerado os oficias da CIA culpados; o conselho de revisão de Bayh, por sua vez, preferiu exonerar todos os envolvidos.

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Além disso, o inspetor-geral da CIA comentou: "Panetta conheceu Kathryn Bigelow, coprodutora de Boal, por volta de abril de 2010, num jantar em Washington… segundo [editado], Bigelow informou Panetta de que estava trabalhando num projeto de filme sobre a batalha de Tora Bora".

Uma linha do tempo detalhada sobre a interação da CIA com Bigelow e Boal identificou a última comunicação em 3 de maio de 2012, quando o ERP recebeu "uma chamada dos produtores do filme indicando que eles precisariam adiar a filmagem no quartel-general [da CIA] para mais tarde naquele ano".

O diretor da CIA não respondeu aos pedidos da VICE para comentar a história.

A linha do tempo detalhando a interação da CIA com Bigelow e Boal, incluída no relatório do inspetor-geral.

O relatório destaca que parte do pessoal da CIA não achava uma boa ideia que Boal estivesse presente na cerimônia, já que isso podia expor informações sigilosas contidas no discurso de Panetta; assim, eles pediram "ajuda para alertar o diretor". No entanto, outro empregado da CIA disse ao inspetor-geral que "nunca ocorreu a ele que a presença de Boal na cerimônia pudesse gerar problemas de segurança".

(Alguns detalhes sobre as revelações de Panetta a Boal tinham sido relatados anteriormente, depois que o relatório do próprio Departamento de Defesa sobre a questão vazou anos atrás. No entanto, o DdD liberou documentos que revelam que oficiais militares de alto escalão envolvidos na operação bin Laden também liberaram informação para Bigelow e Boal.)

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O discurso preparado de Panetta era classificado como "SECRET/NOFORN", que significa "não divulgável para qualquer nação estrangeira", e coordenado pelo ERP da CIA, "com exceção de vários comentários escritos à mão" pelo diretor da agência nas margens do documento. Mas o inspetor-geral determinou que o discurso de Panetta deveria ter sido classificado como "TOP SECRET", porque continha informação secreta derivada do NSA e DdD. O inspetor-geral descobriu que "discrepâncias na classificação do discurso se deram porque [editado] não coordenou as informações no discurso com agências de fora antes".

"Em sua entrevista com o [Escritório do Inspetor-Geral, o funcionário da CIA que escreveu partes do discurso de Panetta] declarou que ele classificava o discurso como sigiloso, baseado na informação que ele recebeu do Centro de Contraterrorismo (CCT)", atesta o relatório. "[Editado] disse [ao Escritório do Inspetor-Geral] que o CCT o notificou da necessidade de coordenar informação com a NSA e o DdD. No entanto, [editado] disse que decidiu não coordenar informação devido a questões urgentes naquele momento e que não havia um requerimento [do Escritório de Relações Públicas] de que discursos tinham de ser coordenados com outras agências".

O diretor da CIA falou ao inspetor-geral que não sabia que seu discurso continha informação sigilosa, apesar de mais tarde reconhecer que isso continha informação num nível "secreto". Ainda assim, ele minimizou a gravidade do erro na classificação e o fato de que detalhes secretos tinham sido revelados a Boal, que não tinha sido verificado formalmente pela segurança da agência, afirmando que partes de seus comentários já tinham sido liberados pelo presidente Obama e por outros oficiais do governo depois da morte de bin Laden.

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"Paneta afirmou que a presença de informação dessa maneira contribuía para uma situação de confusão com respeito a que informação estava sendo liberada oficialmente ou não", diz o relatório do inspetor-geral.

Depois da cerimônia, Boal, que não foi entrevistado pelos investigadores, foi apresentado ao almirante William McRaven, que liderou o time SEAL na missão que matou bin Laden. Funcionários da CIA entrevistados pelos investigadores contaram não lembrar se Boal conversou com Panetta depois da cerimônia.

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Esse foi o começo da relação de um ano da CIA com Boal e Bigelow. Segundo o relatório de ética, pelo menos 10 oficiais do National Clandestine Service (NCS) "identificados como envolvidos na caçada" por bin Laden e outros oficiais da CIA se encontraram com Bigelow e Boal, trabalhando no roteiro de AHME.

"A equipe da operação [bin Laden] forneceu aos cineastas as origens das porções de inteligência da caçada [a bin Laden]", informa o relatório de ética da CIA. Um oficial da agência de inteligência contou que "forneceu a Boal uma visão geral do caso da inteligência [editado] para o lançamento público do plano sobre o ataque a bin Laden… [Editado] aconselhou Boal e Bigelow a visitar os escritórios do CCT para conhecer a atmosfera das condições de trabalho e as interações pessoais da equipe que viveu a operação [bin Laden]. [Editado] comentou que Boal e Bigelow estavam interessados no elemento humano para o filme A Hora Mais Escura".

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Em certo ponto, uma funcionária admitiu aos investigadores do inspetor-geral que "cobriu informação secreta de sua mesa quando Boal e Bigelow vieram visitar o escritório".

Logo depois que os cineastas disseram à agência que seu projeto se concentraria na descoberta e no assassinato de bin Laden pela CIA em 2011, ele se encontraram e falaram regularmente com oficiais da agência no quartel-general da CIA em Langley, além de ter havido reuniões em Washington e Los Angeles. Um oficial disse que o roteirista do filme "precisava falar com oficiais da agência como parte do projeto de sentir como tinha sido caçar [bin Laden]".

Bigelow e Boal frequentemente levavam pessoal da CIA para drinques e refeições, com contas chegando a US$ 1.000. Foi essa a revelação de um oficial da agência entrevistado pelo escritório do inspetor-geral, em 16 de maio de 2012, que iniciou uma sondagem maior, envolvendo entrevistas com seis oficiais da CIA para descobrir se aqueles que trabalharam em AHME "cometeram qualquer violação do regulamento aceitando meios e presentes" dos cineastas.

De acordo com o relatório de ética, uma oficial da CIA que se encontrou com Boal no Jefferson Hotel, em Washington, DC, decidiu realocar as reuniões do quartel-general da CIA para a suíte de hotel do roteirista no final de junho de 2011 para "minimizar a fofoca e evitar inveja" no centro de contraterrorismo. As reuniões duravam de duas a quatro horas, e a oficial se lembra de ter pedido um sanduíche de queijo, batata frita e refrigerante enquanto trabalhava.

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"Inveja no CCT sobre quem encontrava 'cara a cara' com os cineastas levou o [Escritório de Relações Públicas] a tirar algumas reuniões da sede", explica o relatório.

A oficial informou que as reuniões "fora da sede" eram mais calmas e que o propósito delas era "obter informações sobre o desenvolvimento da personagem feminina e falar sobre outras questões". Ela falou ao inspetor-geral que "as conversas que compartilhamos com Boal e Bigelow durante as reuniões incluíam como a equipe da operação [bin Laden] foi do ponto A ao ponto B".

Quando as reuniões se encerravam para o jantar, eles comiam no restaurante do hotel ou no agora fechado restaurante francês Citronelle. O roteirista sempre pagava, relatou a funcionária para o inspetor-geral.

"Enquanto faziam compras, a oficial 'viu algo da marca Prada e comentou que gostava do estilista. Boal disse que conhecia o estilista pessoalmente e ofereceu a ela ingressos para um desfile da Prada'."

A primeira introdução da oficial a Bigelow foi pelo telefone da suíte de hotel de Boal, o Jefferson. Na época, a diretora estava no Taiti filmando um comercial para a Chanel. Mais tarde, em julho de 2011, ela encontrou Boal e Bigelow no Ritz-Carlton em Georgetown; na ocasião, a diretora deu à oficial um par de "brincos de pérolas negras taitianas" como agradecimento por ajudar no projeto do filme.

Durante a investigação do inspetor-geral, ela entregou voluntariamente os brincos aos investigadores para que fossem avaliados.

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"O joalheiro ofereceu sua opinião profissional de que os brincos não valiam uma avaliação formal, citando que as pérolas eram pintadas, não pérolas negras verdadeiras, e que a parte de metal não era de platina", detalha o relatório. "O joalheiro disse que a avaliação custaria mais que os brincos. Ele também disse que estimava que o valor dos brincos não seria 'mais de US$ 200,' mas 'que pediria US$ 60 ou US$ 70 se estivesse vendendo as joias no eBay".

Depois da não avaliação, os brincos foram devolvidos à oficial.

Essa mulher, segundo um oficial da CIA da divisão de contraterrorismo da agência que revisou os documentos obtidos pela VICE, é uma das pessoas em quem Maya, a personagem principal de AHME, foi baseada. No filme, é o trabalho incansável de Maya, além de inteligência obtida de detidos torturados, o responsável por descobrir o mensageiro de bin Laden, que por sua vez levou a CIA ao terrorista.

A oficial em que Maya foi parcialmente baseada disse aos investigadores que teve mais três "contatos sociais" com Boal e/ou Bigelow sem membros do Escritório de Relações Públicas presentes, já que "desenvolveu uma amizade com [os cineastas] com o tempo". Isso incluiu um jantar no clube social (aberto apenas para sócios) Soho House, em Los Angeles, quando a oficial estava de férias em agosto de 2011. No jantar, a oficial deu à diretora uma "miniburca e um cartaz do FBI com a foto de bin Laden e a palavra 'Falecido' escrita por cima". Bigelow se ofereceu para arranjar uma exibição particular de AHMS no Soho House para a oficial e sua família quando o filme saísse. No entanto, quando a oficial foi checar isso com o ERP, eles comentaram que ela não deveria aceitar a oferta.

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Em novembro de 2011, a oficial "passou cerca de oito horas fazendo compras e jantando" com Boal um dia depois de rever o roteiro. Enquanto eles faziam compras, a oficial 'viu algo da marca Prada e comentou que gostava do estilista. Boal disse que conhecia o estilista pessoalmente e ofereceu a ela ingressos para um desfile da Prada'". A oficial recusou, acreditando que não teria permissão para aceitar.

Ela, então, foi aconselhada pela CIA a cortar contato com o roteirista do filme. Sua última conversa com ele foi em maio de 2012, "quando ela contou que não podia mais manter contato com ele". "Boal disse que entendia, mas mandou três vídeos do set do filme e disse que ela podia mandar isso para a caixa de spam ou apagá-los", diz o relatório de ética do inspetor-geral.

A oficial da CIA contou aos investigadores que Boal tentou fazer com que ela assinasse um formulário de liberação em uma das reuniões. Ele explicou que "uma pessoa que não tinha gostado de como foi retratada em Guerra ao Terror o tinha processado". (Boal e Bigelow tinham escrito e dirigido Guerra ao Terror anos antes.) Mas a oficial da agência de inteligência não assinou o documento.

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A oficial "Maya" não foi a única funcionária da CIA a se encontrar com Bigelow e Boal enquanto estava de férias em Los Angeles no período de produção do filme. Um oficial que fez diversas refeições com os produtores em Washington, DC encontrou o roteirista em Hollywood para uma refeição; depois, ele foi até uma casa de praia em Malibu, onde encontrou Bigelow, "relaxou e conversou". O oficial contou aos investigadores ter pagado por todos os custos da viagem e que outros na CIA sabiam sobre seus planos de viagem. Ele falou ainda que mantinha contato com Boal através de e-mail pessoal, mas a correspondência acabou em fevereiro de 2012.

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O oficial relatou aos investigadores que, "na reunião com Boal, forneceu as origens da história da pista, descreveu períodos de tempo, experiências em campo típicas, o impacto do ataque Khost no pessoal da CIA no Afeganistão em termos de moral e esforços seguintes, a visão estratégica da caçada a [bin Laden], esforços seguintes para desmantelar a Al-Qaeda e a relação com os militares americanos nas operações. Quanto à reunião onde Bigelow estava presente, [o oficial] disse que ela parecia mais interessada em 'como era a vida em campo'".

O "ataque Khost" se referia a um atentado suicida de 2009 ao Camp Chapman, no Afeganistão, que foi dramatizado em AHME. O ataque matou nove pessoas, incluindo uma oficial da CIA chamada Jennifer Matthews, que trabalhava no caso de bin Laden desde os anos 90. Matthews foi outra agente da CIA em quem Maya foi baseada.

"'Achei a tequila sobre a qual discutimos online', escreveu o funcionário da CIA. 'O preço é US$ 169,99 (o mais alto que vi por garrafa)'."

O oficial admitiu que não tinha informado à CIA sobre um presente que recebeu de Boal: uma garrafa de tequila que o roteirista disse "custar várias centenas de dólares". Segundo um e-mail incluído nos documentos obtidos pela VICE, alguém na CIA tentou descobrir quanto a tequila realmente custava.

"Achei a tequila sobre a qual discutimos online", escreveu o funcionário da CIA, cujo nome foi editado. "O preço é US$ 169,99 (o mais alto que vi por garrafa)."

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Se o oficial sabia ou não que precisava informar sobre o presente, não fica claro. Ele indicou ao inspetor-geral que "nem o ERP nem o Conselho Geral forneceram diretrizes sobre o que podia ou não ser discutido – tampouco diretrizes para informar sobre reuniões com os produtores do filme". Em vez disso, frisou, ele e outros membros do Centro de Contraterrorismo da CIA "desenvolveram seus próprios tópicos 'linha vermelha', que não discutiriam ou elaborariam mais".

Boal se encontrou com outro oficial da CIA apenas 30 minutos depois da reunião no Ritz-Carlton em Georgetown. O oficial contou que deu ao roteirista uma cópia do livro Kill Bin Laden com uma dedicatória pedindo desculpas, já que Boal tinha escrito um roteiro baseado no livro que se tornou inválido depois que o terrorista foi morto".

Com o subtítulo "O relato de um comandante da Força Delta sobre a caçada ao homem mais procurado do mundo", o livro, escrito por Dalton Fury, é descrito como "um testemunho em primeira mão da Batalha de Tora Bora".

Boal ofereceu ao oficial da CIA ingressos para a estreia de AHME, embora o oficial "não achasse a oferta genuína".

Uma pessoa que parece ser um oficial do ERP relatou aos investigadores que "a autorização para apoiar o projeto do filme veio do diretor da Inteligência Central… o papel do ERP era estar presente nas reuniões entre os produtores do filme e oficiais da agência… Boal precisava falar com os oficiais da agência como parte do projeto, e esses oficiais não deviam interagir com os produtores sem o ERP estar presente".

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Boal tinha examinado seu roteiro com oficiais da CIA várias vezes, tanto pessoalmente como por telefone. A linha do tempo inclui o cache de documentos dizendo que o roteirista também "leu seu roteiro pelo telefone" para oficiais de relações públicas em 26 de outubro, 1º de novembro, 18 de novembro e 5 de dezembro "para que [o ERP] pudesse determinar se o roteiro inadvertidamente expunha informações sensíveis".

Um oficial da CIA contou aos investigadores que Boal leu o roteiro de AHME "durante quatro ou cinco telefonemas em setembro e outubro de 2011". O oficial, cujo nome está editado, "disse que conferiu os nomes no roteiro para garantir que não estivessem próximos dos nomes reais".

O oficial e outra pessoa, cujo nome também está editado, revisaram o roteiro para marcar "erros flagrantes, como ter cães na cena de interrogatório". O oficial comentou com Boal que isso não era correto, porque "a CIA nunca usa cães em salas de interrogatório".

Ele também disse ao roteirista que uma cena que mostrava "oficiais da agência festejando e disparando armas" era incorreta, porque "oficiais da CIA não fariam isso". Outra preocupação foi levantada sobre cenas de esclarecimento com detidos que retratavam os presos sendo "socados e chutados". Em certo ponto, um oficial da agência de inteligência "proibiu oficiais da CCT de ter mais contato com a mídia".

O Escritório do Inspetor-Geral concluiu que todos os oficiais da CIA entrevistados "aceitaram presentes, incluindo refeições, de Boal e/ou Bigelow". No entanto, o inspetor-geral "não descobriu nenhuma evidência" de que os oficias "receberam diretrizes de como lidar com oferecimentos de refeições e presentes por parte dos cineastas". Uma oficial da agência enviou para a empresa de produção de Boal e Bigelow um cheque de US$ 500 pelas refeições depois da investigação do inspetor-geral.

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Além disso, o inspetor-geral "não descobriu nenhuma evidência" de que o Escritório de Relações Públicas da CIA "ou qualquer outro escritório da CIA forneceram diretrizes claras" para os oficiais do National Clandestine Service "que se encontraram com os cineastas sem saber o que podia ou não ser discutido ou quaisquer regras de conduta sobre as interações, com exceção de que [um dos oficiais da CIA] eventualmente recebeu ordens para submeter [um formulário de declaração de conformidade] sobre seu contato social com os cineastas e depois para parar suas interações com eles".

O responsável pela investigação "também não descobriu nenhuma evidência de que os oficias do NCS que se encontraram com os cineastas liberaram alguma informação secreta" a eles.

Ainda assim, as interações de Bigelow e Boal com a CIA resultaram num filme cuja narrativa foi discutida por legisladores, jornalistas e oficiais da inteligência que trabalharam na película, que fez mais de US$ 130 milhões em bilheteria no mundo. ( A Hora Mais Escura perdeu o Oscar de Melhor Filme de 2013 para outro filme sobre a CIA, Argo.)

Apesar de o filme deixar claro na abertura que se "baseia em relatos em primeira mão de eventos reais", a senadora Dianne Feinstein, presidente do Comitê de Inteligência do Senado que liderou a investigação sobre o programa de tortura da CIA enquanto AHME ainda estava em produção, escreveu uma carta ao presidente da Sony Pictures, que distribuiu a película.

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Aquela carta, datada de 19 de dezembro de 2012, dia em que AHME estreou, alerta: "acreditamos que você tem a obrigação de declarar que o papel da tortura na caçada de Osama bin Laden não se baseia em fatos, mas é parte de uma narrativa fictícia".

Michael Morrell, ex-diretor de ação da CIA identificado nos relatórios do inspetor-geral como tendo encontrado Bigelow e Boal para discutir o filme, ratificou numa declaração disseminada para empregados da CIA uma semana depois da estreia do filme que isso era "um retrato não realista dos fatos", constituindo, portanto, uma "dramatização".

Em certo momento, o Comitê de inteligência do Senado investigou os contatos da CIA com Bigelow e Boal, além dos funcionários da agência de inteligência responsáveis pelo retrato da tortura no filme e sua eficácia em fazer um mensageiro entregar informação que levasse à localização de bin Laden; no entanto, pouco saiu dessa investigação. Peter King, no entanto, continuou a exigir uma resposta pública da administração Obama sobre as revelações.

Nem Bigelow nem um porta-voz de Boal responderam aos pedidos da VICE para comentar a história. Os dois cineastas têm sido discretos sobre sua relação de trabalho com a CIA e afirmaram que as críticas ao filme eram "políticas". Numa entrevista para a revista Empire, o roteirista comentou que não queria discutir sua pesquisa por temer que isso "voltasse a me assombrar numa audiência do Senado, o que é uma possibilidade real".

Bigelow, numa matéria publicada no Los Angeles Times em 15 de janeiro de 2013, respondeu às críticas sobre o retrato da tortura no filme e o papel que isso teve para levar a CIA a bin Laden.

"Confundir retratar com aprovar é o primeiro passo para esfriar a habilidade e o direito de todo artista americano de iluminar maus feitos, especialmente quando esses feitos estão encobertos por camadas de segredo governamental", escreveu Bigelow. "Num nível político e prático, me parece ilógico fazer um caso contra a tortura ignorando ou negando o papel que isso teve nas políticas e práticas contraterroristas nos EUA."

***

O inspetor-geral identificou várias possíveis violações de leis federais: a revelação não autorizada de Panetta de informação secreta para Boal e uma violação separada por transmitir ou perder informação de defesa.

Além disso, o inspetor-geral identificou uma violação em potencial da lei criminal federal de suborno de oficiais públicos e testemunhas por Bigelow e Boal. O caso foi levado ao Departamento de Justiça para processo criminal, embora o departamento recusasse o processo em favor de "medidas administrativas" pela CIA.

Numa declaração fornecida à VICE, o porta-voz da CIA Ryan Trapani reiterou que a agência tomou tais medidas administrativas. Em resposta ao relatório de possíveis violações éticas, o Escritório de Relações Públicas da CIA "implementou um treinamento obrigatório de ética anual para todos os empregados do ERP, detalhando as circunstâncias que eles podem encontrar. A agência também tomou medidas administrativas visando a reforçar os deveres éticos e exigências de relatórios.

"Na esteira de A Hora Mais Escura , a CIA reformulou completamente seus procedimentos para interagir com a indústria do entretenimento . Entre outras coisas, a agência criou um sistema de registro centralizado para pedidos da indústria do entretenimento e, em 2012, divulgou diretrizes claras e abrangentes para contato e apoio à indústria do entretenimento."

As diretrizes do Escritório de Relações Públicas, "Management Guidance on Contact with the Entertainment Industry and Support to Entertainment Industry Projects", foram divulgadas em dezembro de 2012. A VICE pediu uma cópia baseada nas premissas da Lei de Liberdade de Informação.

Trapani continuou:

"O ERP também fortaleceu políticas e procedimentos para garantir a proteção de informação secreta e para salvaguardar contra liberações não autorizadas. Em ligação com o relatório [do inspetor-geral] de março de 2014 [sobre Panetta], o ERP expandiu sua equipe para incluir um Escritório de Gerenciamento de Informação, responsável pela revisão de classificação de discursos e outros materiais liberados ao público. O ERP também criou novos procedimentos e políticas para vetar discursos e garantir que toda visita relacionada ao ERP seja coordenada apropriadamente pelo pessoal de segurança."

Mark Zaid, um advogado de Washington que representa empregados da comunidade de inteligência em casos de vazamento de informação sigilosa, falou à VICE que as circunstâncias cercando a aparente "revelação inadvertida de Panetta de informação sigilosa para um produtor de Hollywood são uma comédia de erros e fracassos de coordenação dentro da CIA".

"Na pior das hipóteses, a disciplina administrativa deveria ter sido aplicada a vários oficiais, embora, francamente, pareça que nenhum dano real ocorreu", comentou Zaid. "A verdadeira lição aqui é que a CIA faz o que quer com informação sigilosa se isso serve para seus interesses e pune apenas aqueles que discordem de suas políticas ou gestão."

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Tradução: Marina Schnoor

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