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Turistas Babacas e Rios de Mijo: o Dia de São Patrício em Dublin Foi o Inferno na Terra

E é ainda pior do que parece.

Manjamos de extremos aqui na Irlanda, aplicando essa lógica ao nosso mercado imobiliário e ao quanto bebemos no dia de São Patrício. Aproveite agora e se preocupe com as consequências desastrosas depois.

"Comemore Agora", o tema do desfile de São Patrício deste ano em Dublin, fez jus a isso: fora o aspecto vago endossado pelo governo, ele tinha um quê de apocalíptico em si. Comemore agora, porque amanhã vem a ressaca. Comemore agora, porque amanhã as ruas vão estar cobertas de vômito e sangue – e você ainda vai ter de ir trabalhar.

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Mas agora é a Noite de São Patrício, não o Dia de São Patrício, e as ruas estão estranhamente silenciosas. Uma névoa cinza paira sobre elas, e ouço sirenes distantes. É só na Harcourt Street que o primeiro prenúncio de uma noite caótica aparece: uma garota sai dançando de um clube bem na frente de uma Luas (os bondes roxos lentos da cidade), que tem de frear até parar antes que ela perceba e saia da frente. A garota está usando o primeiro dos milhares de chapéus enormes de veludo verde que verei nesta noite. O chapéu é a marca registrada do Dia de São Patrício: feito em tecido brilhante de aparência inflamável, vem geralmente acompanhado de uma barba vermelha falsa.

O chapéu me incomoda, levantando questões de identidade nacional que não podem ser afogadas na cerveja. Isso é feito aqui, na China, em Bangladesh? Os turistas fazem fila para comprar um desses, ou eles são distribuídos quando o avião pousa? Isso não é quente e desconfortável de se usar? E será que alguém, irlandês ou não, percebe que, assim que você coloca um desses na cabeça, você se transforma instantaneamente num babaca aos olhos do espectador?

A autora e seu novo amigo francês.

Perto do shopping Stephen's Green, vejo outro mau presságio: um homem usando a bandeira irlandesa como manto. Ele está mijando pelo portão do parque numa moita. Encontro Sarah, a fotógrafa, no Bruxelles, um bar onde conversamos com um simpático casal bávaro – "Muito incrível, que cultura!", o homem me diz, no mesmo inglês do doge – e com um francês, que achou que essa era a noite perfeita para usar um short de ciclismo bastante explícito.

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No final da rua, cruzamos com um grupo de Gardai (a polícia irlandesa) feliz em sorrir e posar para fotos com os turistas. Esses policiais listam roubo carteiras, bebedeira e desordem como as ofensas mais comuns da noite. "Os taxistas pelo menos recebem um extra para trabalhar hoje", um deles brinca. "A gente ganha o mesmo de sempre."

A noite se fecha. Nossos marcos foram iluminados num tom bilioso de verde em homenagem à ocasião. Dame Lane, a rua cheia de bares aonde vamos depois, é ainda mais verde: os moradores iluminaram o local em massa. Além disso, a marofa é quase mais forte que o cheiro de kebab e cerveja choca.

Converso com dois irmãos de Kingston, Ontário. Eles são todos dentes brancos e bronzeados saudáveis, mais altos e bonitos que a gente: o povo batata. "Comemoramos o Dia de São Patrício em Ontário também, mas não nesse nível", um deles me fala. Ele é interrompido por uma horda de adolescentes risonhas, sentadas em caixas deixadas para fora dos restaurantes próximos e bebendo vodca azul. Uma delas parece ter desmaiado.

Viramos na Dame Street, orbitando o Temple Bar, a maior armadilha de turistas da cidade. Mas, primeiro, temos de cruzar o lago de mijo que vai se formando atrás do Rick's Burgers, um lendário ponto de fim de noite para se matar a larica. As pessoas mijam nas ruas atrás do Rick's em qualquer noite comum, mas nessa noite o volume de urina humana que escorre pela calçada ultrapassa os limites.

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Paramos um pouco em frente ao lago de mijo, relutantemente sentindo seu cheiro. Ao nosso redor, as coisas começam a ficar ainda mais estranhas. Somos ultrapassadas por mais barbas acajus falsas, emaranhadas e grossas como pelos pubianos. Aparentemente, um cara chutou a porta de um banheiro no Abrakebabra e um casal foi encontrado transando no cubículo ao lado. Uma senhora muito bêbada, falando muito alto e com os cílios postiços caindo da cara, tenta arranjar confusão com a Sarah, mas ela consegue acalmar a mulher.

Nossos pés finalmente estão nos paralelepípedos do Temple Bar, onde conhecemos um brasileiro usando um tutu e óculos de brinquedo. "Meu pai era um leprechaun e minha mãe era uma fada", ele afirma. "Sou meio que interespécies."

A multidão está mudando, ficando mais estranha. O mesmo chapéu verde aparece de novo e de novo, tombando de cabeças grogues, obscurecendo os rostos dos usuários que capotam na rua ou esmagam outros contra as paredes. Eles parecem inspirar seus donos a imitarem as piores caricaturas históricas do povo irlandês: bêbados enlouquecidos envolvidos em comportamentos animalescos.

Surpreendentemente, não são só turistas que estão desfrutando dessa breguice étnica. Antes dessa noite, nunca tinha me ocorrido que irlandeses realmente ouviam Dropkick Murphys. Mas encontramos um trio de fãs de Balbriggan que tinha vindo diretamente ao show deles, na Vicar Street. Pergunto aonde eles vão depois e se considerariam uma visita ao infame Copper Face Jacks, um clube da Gardai e de enfermeiras de folga. "Prefiro cagar nas mãos e bater palmas do que ir ao Coppers", um deles responde.

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"A molecada skager está louca hoje", outro cara me diz ("skager" é um termo pejorativo para os dublinenses da classe trabalhadora). "Eles estavam jogando ovos pra todo lado. Perguntei quem era o alvo, e eles disseram: 'Gente rica'."

Esses moleques continuaram aparecendo nas conversas, mencionados com um certo medo por muitas das pessoas com quem falei. Provavelmente, é a perda da inocência que perturba as pessoas, já que o Dia de São Patrício deveria atrair as crianças de um jeito simples, com seu desfile e sua fanfarra. Mas, assim que são velhas o suficiente, as crianças irlandesas largam as mãos dos pais e correm para Smirnoffs Ice, cigarros pedidos e ovos como armas.

Fumaça dos restaurantes de falafel espirala no céu noturno, nos levando a uma rua de pequenos estabelecimentos de comida para viagem. Pai e filho usando pinturas faciais combinando de Yorkshire com sangue irlandês cantam "Grace", dos Dubliners, sobre o mártir Joseph Plunkett. "They'll take me out at dawn and I will die…"

Vidro quebra sob meus pés, e esse lugar começa a parecer o fim da Terra. Há trincheiras de latas e caixas de salgadinho vazias empilhadas na rua, com grupos de turistas sentados na calçada no meio delas. As fantasias parecem uma competição de auto-humilhação: caras de fantasia de lycra e perucas de papel, mulheres fantasiadas de "leprechaun sexy". Há um drag irlandês que é mais Ibiza que Ilha Esmeralda.

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Alguns estão perdidos, zumbis da cerveja seguindo a luz verde. Eles nos levam até a praça do Temple Bar, onde as ruas estão tão lotadas que não conseguimos andar. Somos pegas num grande mosh coletivo.

No inferno, raios de luz verde cruzam o céu. No inferno, eles cantam "Seven Nation Army" como se não houvesse amanhã. No inferno, todo mundo tem uma vuvuzela.

O absurdo dessa noite fica claro: o vazio das ruas em volta, a panela de pressão do Temple Bar. O fato muito claro de que ninguém aqui é realmente irlandês e que essas pessoas – e os próprios irlandeses também – não sabem porra nenhuma sobre a cultura irlandesa que não seja encher a cara.

Qual o objetivo de tudo isso? Ninguém parece estar se divertindo: isso parece mais um exercício de masoquismo via cirrose. Parecia que eles estavam bebendo só para não querer beber amanhã. Para provar a si mesmos que são capazes de corresponder a esse ideal inflado do que é ser irlandês.

E nem foram os irlandeses que inventaram isso: antes de 1961, o dia 17 de março era um dia santo mesmo: bebidas não eram vendidas, exceto, curiosamente, num show canino no centro-sul de Dublin. Os primeiros desfiles aconteceram em Boston e Nova York: foi a imigração que transformou o Dia de São Patrício em "Paddy's Day" e, depois, em "Patty's Day", em que irlandeses-americanos tingem pints de cerveja e os rios de Chicago de verde-clorofila.

E, com certeza, foi um instinto pós-colonial que nos fez abraçar tudo isso aqui na Irlanda, vendo a caricatura nacional de caos alcoólico refletida de volta e decidindo capitalizar em cima disso através do turismo. Trivialize-nos, faça piadas com batatas, tire fotos irreverentes no Memorial da Grande Fome. Vamos cobrar € 7,45 no pint por vingança: você pode beber nossa cultura a um preço inflado.

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Nesse sentido, o Dia de São Patrício é uma ilusão coletiva, tão tosca quanto as barbas sintéticas vermelhas. Estamos nos agarrando a um fac-símile do que é ser irlandês, mas isso nos ajuda a fazer as pazes com todas as coisas absurdas que não podemos mudar. Com o fato de sermos a putinha da Angela Merkel. Com um líder nacional que tira fotos com Hulk Hogan. Com não poder mais deixar a Igreja Católica escrevendo uma carta (em 2010, a Lei Canônica foi mudada). Pelo menos, ainda podemos pegar um dia santo e transformar numa zoeira mundial.

Mas o caos nunca dura muito. Logo depois da meia-noite, tudo, menos o meio do Temple Bar, se esvazia. Amanhã é dia de trabalho: os turistas vão embora, os dublinenses vão voltar e o feriado bancário chega ao fim.

Digo tchau e volto para casa pela névoa que ainda paira sobre Dublin até os subúrbios. No caminho, piso em pedaços de barba falsa vermelha, ensopadas de cerveja e abandonadas pelo caminho.

Elas vão ficar aqui por mais algumas horas até os garis passarem catando latas e garrafas, além de restos descartados de fantasias de irlandês.

@RoisinTheMirror / sarahfuckingmeyler.tumblr.com

Tradução: Marina Schnoor