GAMES

O universo gamer brasileiro mostrou sua pior face — mais uma vez

A comunidade parece estar mais interessada em criticar quem denuncia misoginia do que de fato combater esse tipo de comportamento.
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O sexismo que permeia o universo dos minigamero sequestrou o papo nas redes sociais brasileiras desde sexta-feira passada (21) quando a streamer do Facebook e influenciadora Gabriela Cattuzzo fez um desabafo na sua conta pessoal do Twitter criticando comentários machistas. Após uma intensa discussão sobre o assunto entre internautas e Gabriela avisar que estava recebendo ataques e ameaças de morte contra ela e sua família por causa dos comentários, a marca Razer, que fabrica periféricos para eSports, anunciou que não renovaria um contrato de patrocínio que tinha com a influenciadora.

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A polêmica começou quando Cattuzzo reclamou de comentários machistas feitos sobre sua aparência. "Sempre vai ter um macho fodido para falar merda e sexualizar mulher até quando a mulher tá fazendo uma piada, né? É por isso que homem é lixo," escreveu a youtuber em resposta a um seguidor. Em outra publicação, ela continuou. "Quando a gente fala esse tipo de coisa vêm os caras 'ai, mas não generaliza, não é todo mundo'. E na primeira oportunidade fica sendo escroto com mina. Homem que não é MERDA é exceção, não [é a] maioria".

Em resposta, um youtuber de direita chamado LiloVlog repercutiu os comentários feitos por Gabriela e marcou a Razer no Twitter, cobrando um posicionamento da empresa. Outra youtuber de direita bastante influente chamada Ayu engrossou o caldo contra Cattuzzo, despertando a fúria de vários seguidores. De imediato, muito usuários passaram a levantar um "dossiê" da influenciadora usando streamings feitos por ela jogando e sendo “agressiva” com espectadores. Nisso, diversos usuários declararam boicote contra a Razer caso a empresa não a tirasse do rol de influenciadores. Na segunda-feira (24) Gabriela pediu desculpas aos seus seguidores pelos seus comentários.

Não muito depois do pedido de desculpas de Cattuzzo, a filial brasileira da empresa publicou um comunicado no Twitter afirmando que não renovaria o contrato com ela e dizendo-se contra "qualquer tipo de discriminação seja ela de sexo, religião, partido político ou qualquer tipo de intolerância e extremismo". Enquanto youtubers de games, neo-templários e alt-rights em geral comemoravam, internautas menos emocionados ficaram surpresos com o fato de a empresa ignorar as ameaças de morte contra Cattuzzo - para muita gente, essa foi uma atitude injusta, que não leva em conta que assédio, agressões verbais e outras formas de sexismo são constantes dentro da comunidade gamer.

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Enquanto muitos homens se dedicaram mais a usar uma pseudo-generalização como desculpa para atacar Gabriela, poucos gamers de fato pararam para discutir o contexto em que o “polêmico” comentário foi feito e a misoginia naturalizada por muitos youtubers, jogos e fãs de video games.

Embora tenha cada vez mais consumidoras, a indústria de video games parece não conseguir resolver (ou simplesmente não se importar) com as constantes denúncias de assédio e agressões cometidas contra o gênero. As mulheres, embora terem participado no desenvolvimento de jogos por algumas décadas, são explicitamente excluídas e discriminadas neste universo. Desde os anos 90, quando companhias gigantes como a Sony passaram a focar seus anúncios em homens, os video games passaram a ser vistos como um universo masculino onde mulheres não são bem-vindas, numa espécie de espelho do que acontece mais amplamente na área de tecnologia, dominada por homens a partir de incentivos ideológicos governamentais.

"Por muito tempo o mercado explorou a ideia de que homens jovens são o único público consumidor dos games, e usou mulheres sexualizadas como estratégia de vendas para esse público," explica Beatriz Blanco, professora universitária e organizadora do livro Videogames, Diversidade e Gênero: Pesquisa Científica e Acadêmica. "Isso se consolidou como padrão para o gamer médio e aí qualquer quebra desse paradigma é vista como um ataque a identidade do grupo, desencadeando reações violentas."

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A desigualdade de gênero na comunidade gamer e nos jogos eletrônicos em si passou a ser mais discutida após o caso GamerGate, que evidenciou para o mundo inteiro a misoginia contra mulheres na indústria. Como foi o caso da desenvolvedora de jogos Zoe Quinn, acusada sem provas de pegar jornalistas da área para garantir boas resenhas sobre seus jogos, que acabou vítima de milhares de ameaças de morte e estupro proferidas pela comunidade gamer. A pesquisadora Anita Sarkeesian, na época, recebeu o mesmo volume de ameaças após gravar um vídeo sobre a representação de mulheres em jogos eletrônicos em seu canal Feminist Frequency.

O GamerGate não só expôs a naturalização da misoginia da indústria e seus consumidores reunidos em comunidades, como também serviu para organizar a extrema-direita norte americana, especialmente através de fóruns e comunidades virtuais centradas em jogos eletrônicos. Após os casos de assédio e ameaças vieram à tona, sites como o 4chan aprofundaram ainda mais a produção de memes e conteúdos reacionários.

No Brasil, o comportamento hostil às mulheres dentro da comunidade gamer pode ser observado desde a criação do tópico Vale Tudo do Fórum UOL Jogos, um espaço onde piadas "politicamente incorretas" eram o mote, além da discussão de jogos. Vale dizer que o VT, à semelhança do 4chan, é responsável pela criação de muitas piadas, memes e termos que até hoje são usados pelos brasileiros nas redes sociais - no entanto, o lado agressivo do fórum deu o tom do que veríamos mais tarde nos chans brasileiros.

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Após o escândalo, a representatividade feminina nos eSports e em personagens de games passou a ser mais discutida, porém pouco se fez ou se propôs para combater o comportamento dos consumidores. Ainda há um apreço muito grande na indústria em manter os mesmos valores e comportamentos que eram reproduzidos nos anos 90. "As marcas que miram no nicho gamer exploram muito uma característica dessa comunidade que é a questão dos insiders vs. outsiders. Os gamers se colocam sempre em oposição aos não gamers, e dos memes compartilhados ao consumo, essa repetida validação da identidade é uma constante", explica Beatriz.

Com grandes empresas patrocinando eventos, jogadores, youtubers e influenciadores no universo, parece que há um receio de discutir até que ponto a postura destas empresas influencia na discriminação de gênero nesse nicho. No caso de Cattuzzo, mesmo gerando muita atenção e comentários nas redes sociais entre insiders e outsiders dos games, ainda pouco foi falado na mídia especializada. "O jornalismo de games é difícil de separar do mercado porque é basicamente um jornalismo de consumo e o acesso às pautas depende de uma boa relação com as assessorias, e pouca gente está disposta a arriscar isso," analisa a professora universitária.

Para João Varella, que é jornalista, dono da editora Lote 42 e autor do livro Videogame, a evolução da arte, a ser lançado em breve, mesmo com um número expressivo de mulheres consumindo jogos eletrônicos, há ainda a predominância masculina em muitas comunidades gamers mais fanáticas e até nos campeonatos de eSports. "Esse eventos que colocam times e equipes completamente compostos por homens, embora no eSport não ter nenhuma diferenciação física. Você não ganhar nada por clicar mais forte no mouse", diz.

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Varella também atenta para a diminuição de representação feminina nos títulos apresentados na E3, uma feira internacional dedicada a jogos eletrônicos. O levantamento feito pelo Feminist Frequency em parceria com a Wired mostra que apenas 9% dos jogos apresentaram uma protagonista mulher.

Claro que a nova geração nos jogos eletrônicos ajudou no lobby por personagens femininas que fogem de estereótipo ultrassexualizado, no entanto, mulheres ainda reclamam do assédio sofrido ao usarem seus nomes ou apelidos que revelam seu gênero em jogos online e de youtubers com patrocínio e muitos seguidores que se sentem no direito em espalhar misoginia à guisa de “piadas”. Muito disso nasce e se desenvolve dentro das comunidades gamers, sejam boards de chans, canais do Discord ou chats do Twitch.

O combate ao machismo no universo gamer não vai ser resolvido apenas com o aumento da representação ficcional feminina nos jogos. Não é uma questão de revanchismo, mas sim de reinserir sadiamente as mulheres num ambiente que não tem nenhuma razão para ser tão hostil a elas. Muitos homens que assumidamente consideram o fato de ser gamer como um traço de personalidade parecem avessos a qualquer pequena mudança na indústria, mesmo que seja só para inserir mais personagens femininas ou para levar mais em consideração a opinião de mulheres sobre o mercado. "Isso acontece porque nessa lógica de insiders e outsiders da comunidade gamer, a mulher quase sempre vai estar na posição de outsider a ser atacada, e essa questão de reforço identitário mobiliza muito esses grupos," explica Blanco.

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Ataques virtuais como o que rolou no GamerGate ainda são comuns contra qualquer mulher gamer que ousa em denunciar o comportamento abusivo de homens na comunidade. No livro sobre assédio virtual Haters, a autora Bailey Poland descreve ataques na internet como uma forma de lembrar as mulheres que os homens são dominantes, que elas podem ser subjugadas e atacadas caso um homem queira fazer isso e que elas devem permanecer em silêncio e obedientes.

Em streamings, não é incomum ouvir youtubers com seguidores e influência fazerem piadas misóginas com naturalidade, sob a desculpa que se trata apenas de uma brincadeira e que quem achou ruim é porque não entendeu. "Criticar feminismo e questões relacionadas gera muita audiência e está mais que claro que a intenção [no caso de Cattuzzo] foi pinçar um comentário que pudesse ser usado de pretexto para iniciar essa polêmica e explorar o buzz gerado.", finaliza Blanco.

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No dia após o pronunciamento da Razer, muitas contas no Twitter de gamers homens continuaram a fazer piadas misóginas, celebrando a vitória contra os comentários que julgavam misândricos de Cattuzzo. Canais de gamers como o Xbox Mil Grau, com mais de 157 mil assinantes, crescem nas redes sociais postando memes misóginos sobre a polêmica da influenciadora e a marca. Nos streamings, o youtuber faz livremente piadas sexistas e parece se divertir em estendê-las ao lado de seus amigos que administram a sua página do Twitter. Não muito tempo atrás, a conta gerou revolta ao publicar um meme ironizando a acusação de estupro contra Neymar e celebrando o goleiro Bruno, responsável pelo assassinato de Eliza Samúdio em 2010.

Analisando isoladamente o comportamento de Gabriela, sim, ela pode ter passado dos limites, se é que existe alguma forma de discriminar homens na sociedade. Mas se a colocarmos em um contexto onde o assédio constante e desrespeito às mulheres dá o tom da comunidade gamer, seria tão absurdo o que a streamer falou?

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