A photo illustration of businesspeople surrounded by weed plants.
Ilustração por Seth Laupus.
Drogas

Nos EUA, o 'velho oeste' da maconha está acabando. Mas o que vai substituí-lo?

Trabalhar com cannabis era crime nos EUA, mas agora parece uma boa carreira que vem com seus próprios benefícios.

Alicia Ashley trabalha no que é basicamente uma fábrica de maconha. O trabalho dela é bolar becks à mão, usar a impressora de rótulos e colocar os rótulos nos potes de flores de cannabis, tudo isso enquanto garante que os produtos pareçam e cheirem de maneira atraente. Ashley trabalha na Flow Kana, uma empresa de processamento e distribuição de cannabis em Mendocino, Califórnia, basicamente um armazém que junta as colheitas de várias fazendas menores de maconha da área. Pelos padrões modernos, é um trabalho muito bom: ela tem um horário regular, plano de saúde, recebe hora extra e tem a paz de espírito que vem de trabalhar no lado legal da indústria.

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O emprego de Ashley é um dos muitos criados pela indústria legal de cannabis. Embora tenha seus vencedores e perdedores, a legalização da maconha tornou possível para pessoas como Ashley trocar um trabalho em empreendimentos mais ou menos legais para negócios legítimos. No processo, trabalhar com cannabis foi de uma aventura praticamente fora da lei para um bom plano de carreira.

Mas nem sempre foi assim. Ashley passou pelos mercados negro e cinza, cultivando e processando maconha “no morro”, como muitos do Triângulo Esmeralda do norte da Califórnia se referem a centenas de pequenas fazendas que pontuam as elevações da região. Naquela época, ela passava dias seguidos fazendo a colheita – ou seja, podando galhos e folhas estragadas de cada botão à mão e transformando maconha crua num produto que as pessoas queriam comprar. Era um trabalho demorado e tedioso, e tinha seus riscos.

Quando não era época da colheita, ela irrigava e cuidava das plantas, além de ajudar com as tarefas da fazenda. Ashley acredita que parte do que ela ajudou a cultivar foi para dispensários de maconha medicinal da Califórnia, e outra parte para o mercado recreativo underground. “Eu não fazia muitas perguntas”, ela disse. Havia pouca ou nenhuma comunicação entre os fazendeiros e trabalhadores dos morros. Mesmo os motoristas, que levavam quilos e mais quilos de maconha das fazendas para a cidade, não interagiam muito com os trabalhadores – quando você está numa indústria ilegal, é melhor não saber o que acontece nos outros pontos da cadeia de fornecimento.

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Poda e cultivo era um trabalho de tempo integral para Ashley, mas um em que ela muitas vezes podia definir suas próprias horas e trabalhar de pijama se quisesse. Durante os longos dias com as tesouras de poda e brotos nas mãos, os trabalhadores socializavam nos sofás das casas das fazendas ou ouvindo podcasts. Mas o que o trabalho tinha no caráter relaxado, faltava em confiabilidade. As fazendas podiam fechar ou trocar de dono a qualquer momento. E apesar de Ashley nunca ter sido pega numa batida da polícia, elas aconteciam com frequência no Triângulo Esmeralda. “Você ficava preocupada sempre que ouvia um helicóptero”, ela disse.

Mas as trabalhadoras podem se tornar alvos numa indústria dominada principalmente por homens. Apesar de Ashley ter tido sorte de só ter boas experiências durante seus anos no mercado irregular, e não passou por coisas como assédio sexual, não receber ou temer por sua segurança, situações bem documentadas antes, ela também sentia a necessidade de manter suas opiniões só pra ela. “Conhecer as pessoas, usar a cabeça, ser clara sobre no que você está se envolvendo, confiar no seu instinto” – era assim que ela se mantinha segura.

“Quando você tem um comportamento proibido ou underground, isso se torna inerentemente mais perigoso para todo mundo envolvido”, disse Amanda Reiman, uma especialista em cannabis e pesquisadora de saúde pública que agora atua como vice-presidente de relações-públicas da Flow Kana. “A indústria da cannabis antes da legalização era só outro exemplo do que acontece quando ninguém está cuidando do bem-estar das pessoas com menos poder.” No mercado legal, ela disse, os trabalhadores têm proteções que não estão disponíveis no mercado informal, além de acesso a coisas desejáveis, como plano de saúde pago pelo empregador.

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E não é pouca gente trabalhando no mercado regulamentado que antes era parte do mundo ilegal. Mesmo com automação, ou automação parcial, substituindo alguns dos métodos de poda e pesagem, ainda há muitas posições na indústria. Nos EUA, estima-se que de 200 a 250 mil pessoas trabalhavam na indústria de cannabis legal de US$ 10,4 bilhões em 2018. Em 2021, a previsão é que haverá um trabalho envolvido em cannabis para cada mil pessoas nos EUA – quase 325.700 empregos em todo o país.

Ainda apaixonada por cannabis, Ashley, que tem 30 anos e é mãe de uma menina de nove, está fazendo administração para tentar ascender nos escalões da Flow Kana. Ela gostaria de trabalhar como supervisora e contato com as fazendas um dia, e está entusiasmada com o futuro da indústria e seu lugar nele.


Mas nem todo mundo está feliz com como a legalização está se desenrolando. Na Califórnia, negócios reclamam sobre regulamentação intrusiva, e alguns continuam atuando pelo menos parcialmente no mercado negro. Mas a história de Ashley mostra o melhor cenário possível de como a legalização pode funcionar, e muitos outros estão fazendo a transição do lado informal para a indústria de cannabis legal. “Estou no mercado legal há oito meses”, diz Ashley, “e só de pensar em voltar para o mercado negro agora – de jeito nenhum!”

Ter sido preso por drogas pode acabar com as suas chances na indústria em alguns lugares, o que críticos dizem que só prejudica ainda mais as minorias afetadas desproporcionalmente pela guerra às drogas. E muitos defensores da legalização estão decepcionados com as centenas de milhares de pessoas, muitas delas não-brancas, que ainda são presas todo ano com maconha. Mas reformas estão tentando abordar essas desigualdades: na Califórnia, certas pessoas que desobedeceram as leis de cannabis ainda podem trabalhar na indústria, e em algumas cidades ter sido condenado por algo envolvendo maconha te dá mais chances de conseguir licença para operar legalmente. Para muita gente tentando passar para o lado legítimo, o crescimento rápido da indústria legal e muito benéfico.

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Jennifer Mehta é uma dessas pessoas. A mulher de 47 anos trabalhou por trinta com maconha em várias posições, poda, cultivo, clonagem, fazendo comestíveis, Bubble Hash e óleo de haxixe. Nos dias de proibição, Mehta era paga em produtos e ganhava dinheiro vendendo maconha e haxixe depois da temporada de colheita. Hoje, ela é uma empreendedora de cannabis trabalhando exclusivamente com cânhamo legal através de suas duas empresas, Cannalina e Shine.



A transição dela para o mercado legal foi através do mercado cinza nos primeiros dias da implementação da maconha medicinal – o que Mehta chama de “o velho oeste da maconha”. Trabalhar no sul do Oregon, depois que a lei de maconha medicinal entrou em vigor, deu a ela a oportunidade de aprimorar as habilidades que ela usa em seus negócios de cannabis hoje. Na época, os dispensários aceitavam os produtos desde que o vendedor tivesse uma licença medicinal, e o empreendedorismo das pessoas que trabalhavam há anos com cannabis era inacreditável.

“Todo mundo estava ganhando dinheiro”, diz Mehta. “Eu estava fazendo fudge e açúcar medicinal na minha cozinha, sem certificado – mas fui lá e vendi tudo para os dispensários.” Ela aprendeu clonagem – um método de cultivo alternativo com sementes – e começou a vender seus clones para os dispensários também. Ela lembra desse tempo como um tipo de era dourada do seu trabalho. “Recebi sinal verde da indústria”, ela disse, “quando antes eu trabalhava nas sombras”.

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Criada no extremo sul dos EUA, filha de dois imigrantes de primeira geração – um da Irlanda e outro de Gujarate, Índia – “Eu parecia com todo mundo que as pessoas odiavam depois do 11 de Setembro”, ela disse. Ela acredita que a cor de sua pele ainda afeta suas oportunidades na indústria de cannabis. “Algumas lojas [agora em seu novo lar, a Carolina do Norte]”, ela disse, “não aceitam meus produtos. Mas quando mando outra pessoa para me representar – um cara branco, por exemplo – as transações fluem muito melhor”.

O maior obstáculo é trabalhar de maneira totalmente legal, disse Mehta, já que as restrições para preparação de comestíveis e envio atrapalham os negócios. Seguro – para quem consegue um – é caro. Mas apesar das dificuldades, Mehta está comprometida com a indústria. “Se eu desistir, e todo mundo como eu desistir, quem sobra? Você não pode tirar todo o açúcar da receita”, ela disse, se referindo a pessoas como ela que arriscaram sua liberdade nos dias da proibição para levar cannabis medicinal para quem precisava. Essa é uma conexão metafísica para Mehta. “Essa planta e eu somos simbióticas”, ela disse. “Paro de existir sem ela.” E é uma questão de orgulho, além de consideração prática, continuar na indústria que ela conhece melhor. “Vou desistir e deixar esses caras se apoderarem das minhas plantas e da minha indústria?”, ela pergunta. “Claro que não!”

Customers at a marijuana dispensary.

Clientes num dispensário de maconha medicinal em Los Angeles, 2014. Foto por Frederic J. Brown/AFP/Getty.

Muito do trabalho no mercado legal hoje, como cultivo, poda, processamento, transporte e vendas, existiam sob a proibição, mas, como Reiman da Flow Kana aponta, “o foco agora é em obedecer as regras, não em manter o anonimato”. Isso significa acompanhar as mudanças nas regulamentações estaduais além de lidar com muita burocracia e consultores jurídicos.

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Isso também significa profissionalização, em todos os níveis. Pessoas que nunca consideraram trabalhar com maconha antes, como cientistas e empreendedores, estão pegando o bonde. E enquanto a cannabis ganha legitimidade – e o dinheiro entra – várias posições em indústrias de apoio estão surgindo. Uma indústria legal “sempre vai trazer uma variedade de outras coisas” disse Ekaterina Sedia, professora de biologia e coordenadora de estudos de cannabis da Stockton University de Nova Jersey.

Pessoas especializadas em legislação de cannabis, TI e segurança, além de coisas mais comuns como administração, estão em alta demanda enquanto a indústria amadurece, acrescenta Sedia. Um número pequeno de universidades americanas, como a Stockton e a Universidade de Denver, também estão começando a oferecer cursos relacionados a cannabis para jovens que querem começar na indústria.

Anjanique Kent é uma estudante da Stockton que planeja fazer cursos de estudos de cannabis, e agora trabalha com desenvolvimento de redes sociais como estagiária na Hudson Hemp. Ela diz que seu interesse por cannabis começou ficando chapada e “rindo sobre hambúrgueres” com os amigos. Mas depois que ela ficou sabendo que o sobrinho epilético da melhor amiga era tratado com sucesso usando CBD, a paixão de Kent pela indústria só cresceu. Como uma mulher jovem não-branca, ela está excitada com a perspectiva de trabalhar num espaço onde as regras ainda não estão definidas, e onde há uma oportunidade de consertar os erros da história. “Há essa ideia de que podemos fazer alguma coisa e temos a oportunidade de fazer como achamos que deveria ser feito. Precisamos agarrar essa chance”, ela disse.

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Kent quer trabalhar com comunicação e marketing para uma empresa de bens de cannabis para cuidado pessoal e doméstico, fazendo desde xampu até contêineres reutilizáveis. E o tipo de negócio que ela gosta de imaginar como a “P&G da maconha”, se referindo a Procter and Gamble, uma multinacional dona de marcas como Gillette, Pampers e Tide.

Mas a normalização e profissionalização da indústria da cannabis são complicadas por leis federais que continuam criminalizando a planta, além de percepções negativas que ainda a cercam. Emily Burns, uma advogada de Baltimore especializada em legislação de cannabis, disse que universidades que recebem financiamento federal para pesquisa e manutenção não podem permitir oficialmente consumo de cannabis no campus, mas podem oferecer cursos relacionados com cannabis. Mas muitas dessas instituições ainda temem o estigma associado com a maconha.

Burns disse que para alguns jovens esperando entrar na indústria, um diploma universitário, mais todo o tempo comprometido e (possivelmente) uma dívida estudantil pode não ser a melhor preparação. Escolas de comércio, ela acredita, podem ajudar a colocar as pessoas no caminho para uma carreira “que de outra maneira estaria fechado para a indústria de cannabis devido a considerações financeiras em vez de interesse, desejo ou paixão pelo trabalho”. A Oaksterdam em Oakland, Califórnia, é um desses lugares. Muitos programas serão necessários nos próximos anos para atender as necessidades crescentes da indústria.

Enquanto a indústria amadurece, muitos como Reiman esperam que esse não se torne apenas outro setor da economia dominado por corporações sem preocupações ambientais e sociais. “Há tempo para evitar os erros do passado”, disse Reiman. “O cimento ainda está fresco no espaço da cannabis. As decisões que tomamos, e valores que abraçamos hoje, se tornarão as tradições da nossa indústria nos próximos anos.”

Para jovens como Kent, a aceitação cada vez maior da cannabis significa a chance de embarcar numa indústria em crescimento que vem sendo percebida não só como normal, mas profissional. E para pessoas como Ashley e Mehta, isso significa uma chance de sair das sombras e seguir um caminho de vida mais convencional enquanto fazem o que sempre gostaram de fazer. “Muita gente como eu”, disse Ashley, “está procurando estabilidade na indústria em mutação da cannabis. Queremos ser legítimos, e ser parte de algo maior e melhor”.

Danielle Simone Branc escreve sobre cannabis e maternidade – e suas sobreposições ocasionais – de San Diego, onde ela mora com a família.

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