FYI.

This story is over 5 years old.

Fotos

Fotografias da Era Nazista e a Banalidade do Mal

Entrevistamos Daniel Lenchner, um senhor de 68 anos que acumulou mais de 500 fotos de nazistas tiradas por nazistas. São imagens que documentam a vida cotidiana deles: suas famílias, amigos e atividades de lazer.

Nenhum lakota (também chamados de dacotas) na foto. (Todas as fotos cortesia de Daniel Lenchner.)

“Você já ouviu falar dos índios lakota?” perguntou Daniel Lenchner, entregando-me uma foto ligeiramente apagada do começo do século 20. Era uma foto escolar com o local escrito logo abaixo: Lakota, Dakota do Norte.

“Agora”, desafiou Lenchner, “você consegue encontrar algum índio nessa foto?”

Vasculhei as fileiras de rostos caucasianos.

Publicidade

“Nem adianta”, ele continuou. “Nós nos livramos deles, sabe. Não há mais nenhum lakota em Lakota. Parece um retrato de escola, mas também é possível dizer que essa é a foto de um genocídio.”

Esse tema de ausência implícita domina a coleção de fotos de Lenchner. Procurando em mercados de pulgas, leilões do estado e na internet, Lenchener acumulou mais de 500 fotos de nazistas tiradas por nazistas, imagens que documentam a vida cotidiana deles: suas famílias, amigos e atividades de lazer.

Como um judeu com ancestrais que pereceram no Holocausto, esses vislumbres íntimos da vida diária daqueles que perseguiram sua família o levaram a confrontar o que a filósofa política Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”.

Eu me encontrei com Lenchner, um senhor de 68 anos, mês passado, em seu espaçoso apartamento em Nova York, para ver sua coleção e discutir suas implicações.

VICE: O que me impressionou em muitas dessas imagens é que, sem os uniformes, você não consegue dizer que essas pessoas são nazistas, certo?
Daniel Lenchner: Sim, minha tese é realmente sobre isso: Essas pessoas parecem normais, mas as aparências enganam. Há um fenômeno moderno no jornalismo, no qual as pessoas são entrevistadas nas ruas depois de descobrir que seu vizinho é um assassino em massa. Elas sempre expressam surpresa, pois elas não perceberam, que elas deviam saber. O pressuposto subjacente é que elas poderiam saber. Mas, se a verdade é que não há como saber, então você não deveria se surpreender.

Publicidade

Uma vez entrevistei a sobrinha-neta do líder nazista Herman Göring, e os álbuns de família dela eram cheios de imagens como essas. Ela falou sobre perceber o amor evidente em muitas das cenas: pais carregando os filhos, esposas abraçando os maridos, amigos rindo. Como você confronta a presença desse tipo de emoção?
Sim, esses caras iam para casa encontrar suas esposas e filhos, e talvez cantassem belas canções de ninar alemãs, mas isso não é uma exoneração. Quer dizer, Hitler amava cachorros e era vegetariano. Ótimo. Mas é tudo meio irrelevante. No final das contas, essas coisas são conciliáveis. Não, não exatamente conciliáveis, elas coexistem. O mal e o não mal coexistem numa pessoa. Mas em Nuremberg, não surgiu a questão de que eles eram bons com suas esposas, porque isso não importava.

Parece que o homem nessa foto não era tão bom marido assim. Tem uma carta tipo Querido John escrita atrás?
Mais “Querido Johann”, por assim dizer.

Você pode descrever o que há nessa foto?
Bom, esse é um retrato de estúdio muito bonito de um oficial alemão, e atrás temos a mensagem de uma mulher, aparentemente, sua amante. Ela escreveu que estava devolvendo a foto porque ela trazia má sorte. Ele é um playboy. Ela se refere aos “passeios em Weimar” dele e faz referência à esposa.

O que você gosta nessa foto?
Ela é normal, banal, apenas um cara traindo a esposa – nada de novo aqui. Ele é um canalha comum, mas é só colocá-lo num uniforme nazista e de repente você tem um tipo especial de canalha.

Publicidade

Nesse caso, a história está aqui na própria imagem, mas a maioria dessas fotos tem muito pouco contexto. Quanto do que você vê vem das próprias fotos e quanto disso é sua própria projeção?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não? Deixa eu mostrar a você uma coisa que aborda isso. Essa é uma das fotos mais impressionantes que já comprei, e não há nada escrito atrás. Dê uma olhada e me diga o que você vê.

Vejo um massacre.
Sim, um pequeno massacre, com o que acredito ser um estupro. Isso com certeza é uma mulher com um lenço na cabeça. Ela está deitada na mesa com as pernas abertas, e alguém colocou um pouco de palha embaixo da cabeça dela. Acho que todos estão mortos aqui: corpos, corpos, corpos. E os alemães terminaram – eles estão partindo para o que parece ser uma pequena estação de trem. Eles deram as costas para isso. “Fizemos nosso trabalho e agora vamos embora.”

O mais perturbador de tudo é o detalhe da palha embaixo da cabeça da mulher. Parece uma tentativa de deixá-la mais confortável enquanto eles a estupravam e matavam. Parece ser um reconhecimento da humanidade dela.
Também parece que esse homem morto tinha abraçado essa pessoa aqui, numa pose protetiva.

Como se ele pudesse protegê-la das balas.
Como eu disse, não há nada escrito atrás da fotografia, mas a história é muito clara aqui. Acho que não precisamos ler muito além disso.

E ainda assim, é difícil não projetar, certo? Não é tão diferente do tipo de foto de guerra com que estamos acostumados…
Sim, essa podia ser uma foto tirada pelo Robert Capa.

Publicidade

A composição é excelente e o foco é nítido.
Isso mesmo. Algo que se pode dizer com certeza sobre os nazistas é que eles foram para a guerra com boas câmeras. Eles não saíram de casa com máquinas porcarias. Eles foram para a guerra com Leicas: câmeras boas com lentes boas. Você consegue ver o número no trem. Consegue ver as folhas da grama. Você consegue ver os olhos do homem morto.

É similar a algo do Robert Capa, como você disse, mas – e isso volta à projeção – saber quem tirou essa foto dá a isso uma intimidade que vai além do fotojornalismo. O fotógrafo é parte da fotografia. Isso tem praticamente a qualidade de uma foto de família, mas em vez de todo mundo parado e sorrindo, todos estão mortos.
E então vem a pergunta que você nunca vai responder: por que eles tiraram essa foto?

Por que você acha?
Às vezes você se pergunta, eles estavam orgulhosos? Quem sabe. Não há resposta para isso.

Bom, eles não tiraram essa foto para você. Há uma coisa profundamente subversiva sobre isso ter acabado em suas mãos. Quer dizer, o fotógrafo nunca poderia ter sequer imaginado sua existência.
Não. Mas para quem ele tirou essa foto? Seus superiores, seus amigos, sua esposa, seus filhos?

É chocante ver essa foto na mesma coleção que essa outra aqui. Essa foto parece divertida até: uma multidão rindo de alguma coisa fora do foco.
Exceto que, olha aqui. Está vendo a suástica? De repente, ela se torna sinistra. Do que eles estavam rindo? Nunca vamos saber. E eles estão gargalhando mesmo. É incrível. Você tem um exemplo de todas as maneiras diferentes de como as pessoas riem. Algumas cobrem o rosto e outras se curvam, algumas seguram a barriga; esse aqui está se curvando para trás, ela está cobrindo a boca e a outra está apontando para chamar a atenção da amiga.

Publicidade

Tem que estar treinado para ver a suástica. Eu não tinha percebido.
Sim, é verdade. Sou tão sensível que às vezes vejo suásticas onde não tem.

Com esse tipo de preparo, o que você vê quando olha para o povo alemão hoje?
Bom, morei na Alemanha por cinco anos como instrutor universitário para os militares americanos. Eu ensinava literatura comparada aos soldados. Isso foi no meio dos anos 1970, muitas das pessoas pelas quais eu passava na rua tinham vivido durante a era nazista. Era um pouco estranho, para dizer o mínimo. Você pegava um trem alemão e não conseguia deixar de pensar em vagões de gado cheios de pessoas. Mas você também ficava impressionado com as coisas boas. O lugar é muito limpo, os trens estão sempre no horário e as pessoas são muito honestas.

De que maneira elas são honestas?
Na autobahn, por exemplo, os banheiros têm pratos, nos quais você deixa uma gorjeta para a pessoa da limpeza. Então você entra no banheiro e tem um prato cheio de dinheiro. Agora, você coloca um desses num banheiro da estrada de Nova Jersey e ele some em três minutos. Mas na Alemanha, eles não só não roubam como também colocam mais dinheiro ali. Você vê isso e pensa: “Essas são as mesmas pessoas responsáveis pelo Holocausto? Como pode?” Bom, algumas dessas pessoas deviam ser honestas. Elas deviam ser honestas nesse sentido estrito – colocar dinheiro no prato do pessoal da limpeza no caminho para construir um campo de concentração.

A família Lenchner em Łódź, Polônia, 1935. Só o pai de Daniel Lenchner (fileira de trás, segundo à direita) sobreviveu à guerra.

O Roc lançou recentemente o livro And. Saiba mais no site dele.

Tradução: Marina Schnoor