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Nós avançamos em alguma coisa no debate sobre aborto em 2016?

Perguntamos a especialistas, militantes e estudiosas o que avançou durante o ano em um dos debates mais espinhosos do país.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

*Essa reportagem foi atualizada no dia 9 de novembro de 2017.

Não existe assunto polêmico que tenha passado incólume em 2016, e não seria a legalização do aborto que ficaria de fora. No meio da crise econômica e política que envolve o fim do ano do governo de Michel Temer, o assuntou voltou à baila com uma decisão de uma turma do STF, ancorada em um voto do ministro Luiz Barroso, criando um precedente que pode representar um tímido passo a caminho da legalização.

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Quando se trata de aborto é difícil distanciar os números das mulheres de carne e osso como muitas vezes fazemos confortavelmente. Não se tratam de histórias distantes de nós, visto que a cada cinco mulheres uma já interrompeu uma gravidez até seus 40 anos de idade. Por lei, apenas três hipóteses permitem a realização de um aborto no Brasil. A gravidez decorrente de estupro, casos de anencefalia do feto e risco de vida para a mãe. Tirando essas situações, a interrupção da gravidez é descrita como crime contra a vida no Código Penal, que pode ser punida com pena de detenção de um a três anos.

Entretanto, nem o aborto permitido por lei é assegurado na prática pelo sistema brasileiro de saúde. De acordo com médicas, pesquisadoras e militantes consultadas pela VICE, o número de abortos legais feitos no SUS são poucos e muito disso se deve à falta de informação da sociedade e dos próprios profissionais da saúde no sistema público, além da precariedade estrutural.

"Muita gente diz que a mulher pode inventar um estupro para fazer um aborto pelo SUS, mas nós sabemos que é ao contrário. Várias mulheres sequer sabem que têm esse direito e não chegam a um serviço de saúde", explica Melânia Amorim, obstetra e ginecologista da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.

Leia mais: Mulheres falam por que o aborto deveria ser descriminalizado no Brasil

Em uma pesquisa realizada pela ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, 48% da população não sabe que a mulher pode fazer o procedimento pelo SUS nos casos previstos por lei. Durante a gestão Dilma Rousseff, em 2014, foi promulgada uma portaria que obriga todos os estabelecimentos do SUS a realizarem o procedimento de aborto legal. Entretanto, após muitas polêmicas e a frente parlamentar "Brasil Sem Aborto" bater o pé, o Ministério da Saúde decidiu revogar a portaria.

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O que deveria ser básico nos estabelecimentos de saúde, se torna exceção. Em um levantamento feito pela ONG Artigo 19 para a cartilha Acesso à informação e direito das mulheres, apenas 71 hospitais oferecem esse procedimento no país. Em estados onde a incidência de violência sexual é altíssima, como Roraima, por exemplo, não há nenhum lugar para a mulher recorrer. Bárbara Paes, autora da cartilha e assistente de projetos na Artigo 19, explicou à VICE que recorreu à Lei de Acesso à Informações para conseguir os dados, visto que não há nenhuma lista oficial disponível facilmente pelo Ministério da Saúde para a população.

"Mesmo os próprios servidores na área da saúde desconhecem que o aborto é legalizado em certos casos no Brasil. Muitas vezes eles se recusam a atender as pacientes. Não existe divulgação suficiente sobre o tema. Quando ela existe, é falada em um cantinho escondido", diz Bárbara.

Segundo Paes, em 2015 menos de 300 estabelecimentos de saúde realizaram abortos legais. Um número baixo, considerando que a marca de abortos estimada para o país em 2015 foi de 500 mil. Pela falta de informação da população e dos profissionais de saúde, cria-se a fatalidade da mulher colocar sua vida em risco ao recorrer a clínicas clandestinas, especialmente as que não têm condições para arcar com os custos altíssimos para fazer o procedimento em uma clínica particular, que costuma funcionar como uma clínica ginecológica comum. O que reforça o pensamento de que o aborto já é possível para mulheres com mais condições sociais e financeiras. Para as pobres, só resta a clandestinidade e o alto risco de sair com sequelas ou perder a própria vida.

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O cerceamento moral e religioso sobre o tema também se torna um grande pivô na dificuldade de discutir no meio político os direitos reprodutivos das mulheres. Ano após ano, o assunto costuma ser sequestrado por parlamentares ferrenhamente contra o direito de escolha perante comissões e projetos de lei a fim de acabar até com as poucas possibilidades do aborto legal, como o Estatuto do Nascituro.

"Eu não acho que [esse grupos] sejam 'pró-vida', mas são sim 'pró-morte', porque eles sabem que defender a criminalização coloca a vida da mulher em risco." - Melânia Amorim

Com um dos congressos mais conservadores desde a ditadura militar e a formação da chamada bancada evangélica, mais projetos além do Estatuto do Nascituro tiveram andamentos legislativos preocupantes. Um deles, é o PL nº 5069/2013, autoria do ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que criminaliza quem ajuda a mulher a abortar, dificulta o acesso ao aborto legal e proíbe também medicamentos considerados abortivos. O projeto despertou a chamada Primavera Feminista em 2015, quando milhares de mulheres ocuparam as ruas em várias cidades do país contra Eduardo Cunha.

Leia mais: Como o zika vírus pode mudar a legislação sobre o aborto no Brasil

Em 2016, além do debate sobre o zika vírus (ainda na espera para o julgamento da ADPF que pede a legalização do aborto em casos de fetos com a síndrome de microcefalia), o Senado Federal também chegou a discutir publicamente a Sugestão nº 15/2014 que pede a regulamentação do aborto nos primeiros três meses de gestação. "A relatora original desse projeto era a Marta Suplicy (PMDB-SP), que por algum motivo se afastou, e assim assumiu Magno Malta (PR-ES)", conta a obstetra Melânia Amorim, que esteve presente na audiência pública que contou também como militantes religiosos contra o aborto como Sara Winter e a jornalista Patrícia Lélis. Malta, por sua vez, é conhecido por condenar a pílula do dia seguinte por considera-la "abortiva".

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"Na audiência pública que discutiu a Sugestão nº 15/2014 uma pessoa me entregou um folheto com informações completamente equivocadas. Primeiro falando de métodos de aborto que não existem e dizendo que a pílula anticoncepcional comum, a do dia seguinte e que o DIU seriam abortivos. Então você observa que esses grupos 'pró-vida', (entre aspas porque eu não acho que eles sejam 'pró-vida', mas sim 'pró-morte', porque eles sabem que defender a criminalização coloca a vida da mulher em risco) também são contra opções legais do amplo acesso a métodos anticoncepcionais. Então é um paradoxo, esses grupos, que são hegemônicos, são contra também às estratégias para diminuir a gravidez indesejada e contra a educação sexual nas escolas", relembra Amorim, que foi uma das convidadas para apresentar dados sobre o aborto clandestino no Brasil.

"Há quem diga que é contra o aborto por causa dos riscos que a mulher corre no procedimento, mas o risco de um aborto seguro feito no primeiro trimestre da gravidez é bem menor do que um parto sem complicações", explica Melânia sobre as desinformações disseminadas por grupos contra o direito de abortar.

Leia mais: O show de horrores na audiência pública que discutiu a regulamentação do aborto voluntário

A militância contra o aborto não aumentou em 2016, mas ganhou força graças à bancada fundamentalista, que acabou dominando a pauta na política. Somado com as táticas de passar projetos de lei para dificultar o acesso ao direito reprodutivo das mulheres e a grande campanha contra aborto cheia de informações incorretas, são essas militâncias que se colocam como um dos maiores inimigos dos direitos das mulheres no Brasil. Nem Sara Winter e sua greve de fome mais falsa de que a de Anthony Garotinho fez tanto estrago para as mulheres como a militância cristã.

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"A gente entende que é impossível querer legislar sobre o corpo das mulheres com um parlamento cheio de homens. E as mulheres continuarão abortando, católicas inclusive. - Rosângela Talib

"Nossa cultura ainda é permeada pelos valores cristãos gerando essa concepção cristã da maternidade sendo vista algo coisa inexorável — como a Virgem Maria que abdicou da sua vida para ter um filho", explica Rosângela Talib, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir. "Há também uma dificuldade da religião em dialogar com os avanços tecnológicos que são os métodos contraceptivos e entender que as mulheres precisam ter autonomia sobre os próprios corpos."

O grupo Católicas Pelo Direito de Decidir é uma das organizações centrais no Brasil que trazem o debate saudável sobre o aborto e o direito de escolha da mulher de optar ou não pela maternidade. Além de defender o direito de decidir, e levantar bandeiras para que o Brasil respeite o preceito constitucional de ser um estado laico, a organização também defende a inserção feminina no meio parlamentar. "A gente entende que é impossível querer legislar sobre o corpo das mulheres com um parlamento cheio de homens. E as mulheres continuarão abortando, católicas inclusive." Para Talib, a criminalização no texto legal e a interdição religiosa não interfere nos números altos de abortamentos no Brasil. Inclusive, acaba piorando a situação, já que a morte em decorrência de abortamentos clandestinos é uma das principais causas de mortes maternas no país.

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Com a promulgação da PEC 55, que prevê um teto de gastos para setores públicos da sociedade como a saúde e educação, a preocupação geral da militância pró-escolha é que haja uma piora aguda na área de saúde da mulher, especialmente nos abortamentos legais feitos pelo SUS. Para a socióloga Guacira Cesar de Oliveira, que é membro da Articulação de Mulheres Brasileiras, há riscos de essa área da saúde ser a primeira a perder recursos e financiamentos. "A saúde da mulher, de uma maneira geral, é uma luta de décadas do movimento de mulheres para ganhar uma atenção integral no sistema público. O que vimos nesse meio tempo foi a redução de recursos nessa área e a perspectiva de que os direitos sexuais e reprodutivos nesse governo serão totalmente combatidos", argumenta a socióloga. "Mas cabe lembrar que os governos municipais e estaduais têm um papel muito importante na garantia dos serviços públicos de maneira geral e do próprio aborto legal, não devemos focar só no âmbito federal. Pra você ter uma ideia, o primeiro serviço de atendimento de aborto legal foi em um hospital de São Paulo durante a gestão da Luíza Erundina."

"Nós do movimento feminista precisamos ter ações voltadas para a sociedade no sentido de elucidar as atrocidades que estão sendo cometidas em relação aos nossos direitos e desfazer o que foi colocado sobre mulheres que abortam que são taxadas de assassinas, irresponsáveis, imorais e devassas. - Guacira Cesar de Oliveira

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Aos 45 do segundo tempo de 2016, no dia 29 de novembro, a 1ª Turma do STF, numa decisão que pedia a revogação da prisão temporária de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica de aborto em Duque de Caxias (RJ), absolveu os acusados. Em um voto histórico, o ministro Luís Roberto Barroso disse que os próprios artigos do Código Penal que criminalizam a escolha da mulher de abortar são inconstitucionais. Dois ministros acompanharam o voto, Rosa Weber e Edson Fachin. "Foi um passo corajoso e importante que teve uma resposta aguda e desproporcional decorrente dessas instituições retrógradas no Congresso", avalia Guacira sobre o acórdão.

A decisão do STF abre um precedente para instâncias inferiores poderem repensar a criminalização do aborto e darem decisões mais progressistas em relação aos direitos reprodutivos da mulher. Como previsto, tal atitude do STF não foi deixada barato pela bancada fundamentalista. No dia 30 de novembro, o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia convocou uma comissão para discutir a PEC nº 58/2011 sobre licença maternidade em caso de partos prematuros e inseriu no meio da discussão da PEC a proposta de endurecer as leis anti-aborto no país — o que a socióloga chama de "cavalo de Troia". Dos 28 parlamentares convocados (dos quais apenas três são mulheres) para participar da Comissão, 24 são contra a interrupção da gravidez.

Atualização: A PEC nº 58/2011, apelidada de "Cavalo de Troia", foi aprovada no dia 8 de novembro de 2017 em uma comissão especial da Câmara dos Deputados. No texto final foi incluído o conceito de proteção da vida a partir da concepção, o que pode inviabilizar e retroceder as leis que permitem o aborto legal em casos de estupro, risco da mãe e anencefalia. Todos os votos favoráveis ao texto foram de parlamentares homens.

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"Hoje a maioria do Congresso Nacional são forças reacionárias que não estão lá para dialogar com as mulheres e sobre os direitos humanos delas. Por isso nós nos apresentamos como resistência. Porque efetivar direitos ali é impossível", critica Guacira. "Nós do movimento feminista precisamos ter ações voltadas para a sociedade no sentido de elucidar as atrocidades que estão sendo cometidas em relação aos nossos direitos e desfazer o que foi colocado sobre mulheres que abortam que são taxadas de assassinas, irresponsáveis, imorais e devassas. O nosso trabalho da gente é debater na sociedade para reivindicar a autonomia das mulheres."

Mesmo com pouca possibilidade de compreensão dos parlamentares conservadores, as mulheres com quem conversamos veem 2016 como um ano importante na discussão. Especialmente a militância feminista que conseguiu se articular conjuntamente para militar a favor do direito de optar em interromper uma gravidez.

"(…) Forçar mulheres a carregar uma gravidez indesejada pode ser um tipo de tortura também." - Vanessa Dios

"Eu, por incrível que pareça, estou otimista depois dessa decisão do Barroso", disse Vanessa Dios, diretora da Anis — Instituo de Bioética, psicóloga e doutora em saúde coletiva pela UnB. "A gente precisa discutir de uma maneira muito honesta, a partir da ciência, de dados e do estado laico. Os direitos reprodutivos devem ser discutidos a partir desses pontos e não com base em argumentos morais e religiosos, pois quando a gente for fazer políticas públicas, precisamos partir desse ponto objetivo para pensar nessas mulheres que enfrentam esse sofrimento mental que é a gravidez indesejada."

Dios diz que a ONU emitiu um parecer dizendo é comparável a tortura exigir que mulheres infectadas pelo zika vírus se mantenham grávidas contra a sua vontade. "Eu até ampliaria isso, dizendo que forçar mulheres a carregar uma gravidez indesejada pode ser um tipo de tortura também. A mulher que quer interromper [a gravidez] vai dar um jeito de fazer isso. Só que ela vai passar por um sofrimento atroz nesse processo clandestino."

O Instituto de Bioética foi destaque no segundo semestre de 2016 graças a Pesquisa Nacional de Aborto que revelou que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto no Brasil. O Instituto também apoiou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) movida pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), perante o STF para exigir que mulheres grávidas afetadas pela síndrome da zika e com graves problemas psicológicos possam interromper a gravidez até o primeiro trimestre.

A ADPF deverá ser julgada em 2017 pelos ministros, que estão divididos sobre a questão e inclinados a atrasar o máximo possível o julgamento para o ano que vem. Os projetos de lei que visam restringir ainda mais os poucos direitos reprodutivos garantidos por lei ainda continuam no trâmite para votação no plenário.

"Se as mulheres que passam pelo grande sofrimento mental de estarem grávidas e contaminadas pelo vírus da zika possam abortar, isso abrirá brecha para discutir amplamente sobre a autonomia em decidir se poderá interromper uma gravidez," diz Amorim sobre o debate do zika. "Por isso acredito que nesse momento convém estabelecer uma aliança com toda a sociedade na luta dos direitos reprodutivos das mulheres. Além da militância feminista, precisamos nos aproximar de aliados importantes como entidades médicas, organizações de saúde, conselhos de sociedade, organizações de defesa dos direitos humanos nessa luta.

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