Passado a vergonhosa votação da admissão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, na manhã da segunda-feira (18), dia de ressaca braba para quem perdeu e para quem comemorou a vitória de Michel Temer, começou a circular pelas redes sociais o link de uma matéria da Câmara (agora alterada) que dizia que apenas 36 deputados foram "eleitos com seus próprios votos".A matéria, longe de ser a primeira nesse gênero – a gente mesmo já caiu duas vezes nessa falácia –, vinha acompanhada do crescente sentimento anti-política que faz coro com a classe média revoltada brasileira desde o quinto ato do MPL nas Jornadas de Junho de 2013. Muitas vezes, "não é minha culpa um Congresso assim, a regra política é viciada e o cidadão que votou não tem nenhuma responsabilidade nisso", é o discurso que parece subtendido. É de se esperar, afinal o show de horrores da Câmara é de deixar todo mundo pasmo mesmo, mas na verdade existe uma distorção tremenda, e uma ignorância especial sobre como funciona o sistema de eleições parlamentares no Brasil, quando se fala que nem 10% dos parlamentares se elegeram pelos "próprios votos".A primeira coisa que todo eleitor precisa saber é que nunca se vota apenas em um deputado – se vota primeiro no partido dele (por isso que os primeiros números digitados quando se vota para deputado são os do partido), e depois nele. No sistema de coeficiente quociente eleitoral, quem conquista a vaga é o partido, ou melhor, a coligação de partidos que está concorrendo naquele pleito, e não o deputado. A escolha do deputado só vai ditar a posição dele entre os mais votados no partido, para saber se ele pode entrar na vaga.É assim: um estado tem 10 vagas para deputado federal, por exemplo. Para saber como essas vagas serão preenchidas, divide-se o número de votos totais para deputado na eleição no estado (digamos, 100 mil votos) pelo número de vagas – esse é o coeficiente quociente, no caso, 10 mil votos. Para saber quem vai ser eleito, divide-se esse coeficiente quociente pelo número de votos totais que o partido/ coligação recebeu, incluindo todos os deputados e também os votos de legenda. Ou seja, se um partido e seus deputados receberam 30 mil votos, ele elege 3 deputados. Quais são eles? Os deputados mais votados dentro do partido.Esse sistema, adotado de maneiras diferentes na maior parte das democracias mundo afora, permite que os partidos se organizem para disputar as eleições como um bloco coeso, e garante mais representatividade para partidos menores. É preciso lembrar que, apesar das "legendas de aluguel" e dos partidos de centro cuja única linha ideológica é o fisiologismo consistirem em boa parte dos 35 (!) partidos registrados no país, a ideia democrática é que eles, na realidade, representem um setor específico da sociedade, e não apenas os próprios intere$$e$.Muita gente acha esse sistema "errado", especialmente por rechaçar, acima da politização em geral, o desgastado sistema partidário brasileiro. Nossa política personalista, uma característica do presidencialismo exacerbada no Brasil, quer em muitos casos que os deputados tenham seus "votos respeitados" e que todo mundo bem votado seja eleito. Bom, observando esses reclames, resolvi fazer um exercício e analisar a votação de deputados federais de 2014 a partir dessa perspectiva, escolhendo apenas os deputados mais votados de cada estado e ignorando o coeficiente quociente. Deu um trabalho desgraçado, afinal, sou de humanas, mas tá aí. Esse método de votação, apelidado de "distritão", chegou a ser cogitado para a reforma política, mas foi rechaçado. A pergunta era: e se a gente mudasse como os deputados entram na Câmara, ela seria muito diferente? Confira as listas comparativas abaixo:Distribuição de partidos na Câmara nas eleições de 2014:Por "Distritão"PT 71PMDB 71PSDB 54PP 37PSD 41PSB 34PR 33PTB 24PRB 18DEM 23PDT 22SD 13PSC 15PROS 10PPS 9PCdoB 12PV 5PSOL 6PHS 2PTN 3PRP 3PMN 2PEN 1PTdoB 2PSL 1PRTB 1Com coeficiente quociente partidárioPT 68PMDB 66PSDB 54PP 38PSD 36PR 34PSB 34PTB 25DEM 21PRB 21PDT 19SD 15PSC 13PROS 11PC do B 10PPS 10PV 8PHS 5PSOL 5PTN 4PMN 3PRP 3PEN 2PSDC 2PT do B 2PTC 2PRTB 1PSL 1A grande resposta é: não mudaria muito não. Em muitos estados, como Acre, Amazonas, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, todos os deputados eleitos eram os primeiros mais votados. Em outro número expressivo de estados (Tocantins, Pernambuco, Roraima, Goiás, Bahia, entre outros), apenas um parlamentar teve mais votos do que outro eleito pelo sistema de coeficiente quociente. Estados com mais cadeiras na Câmara, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais têm distorções maiores, como esperado, mas nada tão grave. Quem sofre mais são os partidos menores, como o PTC, que não teria representação, mas o PSOL, por exemplo, ganharia uma cadeira. Uma versão mais aprofundada desses cálculos foi realizada pelos pesquisadores André Chalom e Mari Salles, que manjam muito mais de fazer tabelinha que eu, e eu recomendo bastante a leitura.Partidos mais organizados, como o PT, que conseguiram conquistar muitas vagas em estados como São Paulo sem um "puxador de voto" (candidato famoso que rende muitos votos e, consequentemente, cadeiras para um partido), ao cabo, teriam mais deputados. Mas isso diz mais sobre o sistema de coligações partidárias, que permite que os partidos somem seus votos em uma coligação, do que sobre a eficiência do "distritão" – segundo cálculos, o próprio PT, se não tivesse disputado as eleições em coligações, teria 89 deputados federais eleitos em 2014.Vale lembrar que esses cálculos feitos por mim são naturalmente distorcidos, uma vez que além de estarmos ignorando os votos de legenda (praticamente 10% dos votos para deputados em 2014), se um sistema de "distritão" fosse adotado, as estratégias de campanha seriam radicalmente diferentes, mais personalistas ainda. É certo que o sistema atual não parece apetecer o eleitor, mas existem outros tipos de medidas quem podem ser mais eficientes, como o fim das coligações e a chamada "cláusula de barreira", que diminui o espaço de partidos que não conseguirem votações expressivas, uma vez que grande parte da descrença política e também da dificuldade de se formar um governo de coalizão presidencial (evidenciado no governo Dilma e que já dá muita dor de cabeça ao semi-presidente Michel Temer) é causada exatamente pelo excesso de partidos na nossa frágil democracia. Para entender mais sobre as diferentes alternativas, recomendo muito este artigo do cientista político Leon Victor de Queiroz no Estadão, tratando da mesma parada.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.
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