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O que prisão de Rafael Braga diz sobre o sistema penal brasileiro?

Pedimos para o advogado criminalista Antonio Pedro Melchior explicar.
Foto: Matias Maxx/VICE Brasil

O tratamento da Justiça brasileira em relação a Rafael Braga Vieira, jovem negro e pobre do Rio de Janeiro, revela como o processo punitivo no país ainda é questionável. Em 2013, Rafael foi preso durante as Jornadas de Junho por portar um desinfetante Pinho Sol. Foi condenado mesmo sem ter provas sobre o que de fato estava fazendo de ilegal, até conseguir a liberdade num regime aberto tendo que usar uma tornozeleira eletrônica.

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Na quinta-feira passada (20), porém, a história ganhou mais um capítulo: Rafael foi condenado a 11 anos e três meses de prisão e a pagar uma multa de cerca de R$ 2 mil após ser acusado de tráfico de drogas e associação ao tráfico. A prova que sustentou a condenação partiu do testemunho dos mesmos policiais que efetuaram o flagrante. Um tipo de sentença bastante comum no Brasil, de acordo com Antonio Pedro Melchior, advogado criminalista e professor da UFRJ, que comentou o caso com a VICE.

Depois das Jornadas de Junho, Rafael foi preso novamente no dia 12 de janeiro de 2016 na comunidade Vila Cruzeiro, parte do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, enquanto caminhava da casa de sua mãe até uma padaria. Segundo a sentença proferida pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro da 39º Vara Criminal do Rio de Janeiro, numa abordagem feita por seis policiais militares, Rafael foi pego portando 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão em uma abordagem feita. "A grande questão é que qualquer pessoa que vive naquela localidade, que é pobre e zona de tráfico, está sujeita a um argumento da mesma espécie pela polícia e pelo Judiciário", atenta Malechior

Em sua defesa, Rafael relata que foi uma abordagem violenta. Entre ameaças de estupro, tortura e pressão para que ele entregasse líderes do tráfico da região, o rapaz disse que os policiais "jogaram na sua conta" uma sacola com drogas e o rojão. Ricardo Coronha Pinheiro, juiz titular da 39º Vara Criminal o condenou por tráfico de drogas e associação ao tráfico. O mesmo juiz que em 2014 emitiu um mandado coletivo de busca e apreensão autorizando a Polícia Civil entrar em todas as residências das comunidades Nova Holanda e Parque União no Complexo da Maré.

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Entre os pontos questionáveis da sentença, Melchior destaca a utilização do testemunho dos policiais como prova máxima para justificar a condenação de Rafael. "Os tribunais emprestam máxima credibilidade ao testemunho de policiais, entendendo de que eles são agentes públicos e gozam de presunção de legitimidade. A maior parte da doutrina discorda disso sob o argumento do agente policial ter natural interesse em proteger a legalidade e a correção do seu próprio trabalho", explica.

O processo criminal, explica o professor, deve se valer de relatos de uma testemunha e um informante. A testemunha, no caso, pode ser qualquer pessoa que tenha testemunhado o fato – ou saiba do acontecido-, e que seja parte desinteressada no resultado do processo. Vale dizer que as testemunhas prestam compromisso com a verdade perante o tribunal e podem responder pelo crime de falso testemunho se mentirem em juízo. Já os informantes, por sua vez, podem, de alguma forma, estarem interessados no resultado do processo em questão. São considerados informantes os familiares, cônjuges e pessoas que tenham algum tipo de relação com o réu.

O juiz do caso, no entanto, desconsiderou do rol de provas o testemunho de uma vizinha da família de Rafael que viu toda a abordagem acontecer e, inclusive, corroborou com a versão de que houve violência policial. Por ser vizinha de longa data de Rafael, o juiz entendeu que ela estaria interessada em esconder o fato criminoso praticado por ele. Porém, não questionou se os policiais teriam algum interesse em defender a própria função. "O fato do policial ter o interesse óbvio de defender o seu trabalho não podemos considerá-lo uma 'pessoa desinteressada' no processo", argumenta o advogado. "A doutrina também acredita que por ele estar comprometido com uma prévia versão dos fatos ele não pode ser ouvido na qualidade de testemunha, mas como um mero informante."

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Para o criminalista, sentenças como a de Rafael demonstram uma hipocrisia nos tribunais brasileiros em utilizar a palavra dos agentes policiais da maneira que lhes convém. "O policial tem na qualidade de testemunha desses crimes como tráfico de drogas máxima credibilidade. Se o crime que ele está sendo acusado é de homicídio contra essas pessoas, o Poder Judiciário então é, como todos nós sabemos, extremamente benevolente. Daí que explica a quantidade de autos de resistência arquivados", pontua. "Agora, se ele é réu de outros crimes, como os contra a administração, crimes pecuniários, corrupção, peculato, essa condição de policial o prejudica. O sistema de Justiça usa o policial conforme o interesse persecutório dele. Então dependendo do quão interessante o papel da polícia tenha, como em ações contra o tráfico, por exemplo, então assim será. Quando o cara passa a ser réu, a palavra dele já não vale tanto."

O uso do depoimento de agentes policiais para justificar condenações por crimes da mesma família do comércio de drogas é tão comum nos tribunais cariocas que foi escrita a Súmula 70 do TJRJ para validar esse tipo de decisão. Nos casos de tráfico, 74% das condenações têm como única testemunha o depoimento de policiais.

No curso do julgamento, os PMs Pablo Vinícius Cabral e Victor Hugo Lago chegaram a se contradizer nos seus depoimentos. Por isso, os advogados do IDDH (Instituto de Defesa dos Direitos Humanos) responsáveis pela defesa de Rafael pediram em juízo o registro do GPS da tornozeleira eletrônica e também as imagens captadas na viatura dos policiais. O pedido foi negado pelo juiz, alegando que esse material não era relevante para o caso. Segundo a defesa, foi negado o direito de ampla defesa de Rafael.

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Com a desconsideração do testemunho da vizinha que viu a abordagem e do pedido de provas da defesa, o juiz Coronha se deu por satisfeito em condenar Rafael pelos crimes de tráfico e associação ao tráfico. Para Melchior, nem os depoimentos dos policiais provam alguma coisa sobre o crime de associação. "Não há nenhuma informação que demonstre o caráter associativo permanente dele ao comércio de drogas da região. Não dá pra dizer que existe uma associação estável porque se encontrou um timbre do CV numa droga."

Na sentença final de Coronha, para determinar o tempo de detenção de Rafael, o juiz teceu comentários sobre a personalidade "voltada para a criminalidade" do réu levando em consideração seus antecedentes criminais.

"A incursão na personalidade do acusado é algo frequentemente usado em decisões. Existe de fato a expressão 'personalidade' como uma das coisas que deve ser analisada pelo juiz no momento de fixar a pena, mas isso é uma das permanências de um código jurídico de corte autoritário. Quando o juiz faz uma análise como essa não julga o fato, mas sim o autor. O direito penal do autor é uma coisa emprestada no nazi fascismo, digamos assim", explica Melchior.

A série de injustiças cometidas desde 2013 contra Rafael parecem ter motivações políticas por conta do contexto em que ele foi preso e toda a revolta simbólica que isso gerou desde então. Porém, o tratamento punitivo e seletivo da justiça criminal contra negros e pobres negligenciados pelo Estado é tão corriqueiro que Rafael receberia essa condenação mesmo se não tivesse tido a atenção da imprensa e de militantes por conta de sua prisão em 2013.

"Não posso afirmar até que ponto toda essa movimentação simbólica em torno do Rafael levou o tribunal a agir com uma outra orientação que não teria. É triste dizer isso, mas o tribunal condena tantas pessoas por comércio de drogas no mesmo modelo que, se eu falar que é só por causa do Rafael, estaria cometendo uma injustiça com os milhões de pobres e negros que foram condenados igualmente", termina o advogado.

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