Identidade

O primeiro pornô lésbico e outros 10 artefatos reveladores da história lésbica

O Lesbian Herstory Archives também inclui um “dicionário sapatão” de japonês e um diário documentando como era ser queer numa cidade pequena de Ohio nos anos 1950.
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(E) Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives; (D) fotógrafo desconhecido, cortesia do Lesbian Herstory Archives.  

No começo dos anos 1970, vibrando com a empolgação e possibilidades do movimento de liberação gay, um grupo de lésbicas de Nova York começou a fazer um balanço de sua comunidade. Elas perceberam que, como qualquer outro grupo marginalizado, se elas queriam preservar as lutas, triunfos e contornos únicos do seu movimentos, elas precisavam coletar suas próprias histórias. “Nossa história estava desaparecendo tão rapidamente quanto era criada”, diz Deborah Edel, cofundadora do Lesbian Herstory Archives, em um vídeo que a organização fez sobre suas origens. “Então algumas de nós disseram: Por que não começar nossa própria coleção? Vamos juntar o que temos e construir a partir disso.”

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O Lesbian Herstory Archives teve início em 1974, num apartamento em Upper West Side que Edel dividia com sua então parceira e cofundadora Joan Nestle. Elas começaram enchendo uma caixa de papelão com algumas filipetas, fotografias, panfletos e lembranças. Quando a caixa ficou cheia, ela separaram um espaço em sua dispensa. Quando a dispensa lotou, a coleção tomou o espaço do quarto extra, depois a sala e aí, quando o resto do apartamento se encheu na década seguinte, o coletivo, que então contava com meia dúzia de mulheres, percebeu que o arquivo precisava de uma casa própria.

Em 1990, depois de muitos meses levantando fundos, viajando para apresentar slides e dar festas, o grupo adquiriu um prédio de três andares em Park Slope, Brooklyn. Em 1993 elas abriram as portas para o público, convidando qualquer pessoa que quisesse aprender mais sobre lesbianismo. Hoje, 45 anos depois de começar numa caixa de papelão, o arquivo contém cerca de 20 mil fotografias, milhares de livros, uma enorme coleção de newsletters, revistas, periódicos, panfletos, diários, correspondências, fitas cassete e de vídeo, roteiros de teatro, cartazes, faixas, caixas de fósforo, buttons – e a lista continua.

Com a cultura pop americana gradualmente se tornando mais inclusiva, mesmo pessoas que não se focam em história queer provavelmente conhecem partes específicas da história LGBTQ – a ascensão e queda de Harvey Milk, os heróis e vítimas da crise de HIV, os retratos eróticos de Robert Mapplethorpe. Mas poucos desses detalhes iluminam a história lésbica. Hoje, os itens abrigados pelo LHA dão um vislumbre de histórias ricas e surpreendentes que há muito eram ignoradas. Esses objetos revelam detalhes sobre as lésbicas que os deixaram para trás e as vidas fascinantes que elas levaram. Abaixo, veja uma lista de 11 desses momentos e pessoas, ilustrados pelos artefatos do LHA.

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A primeira revista lésbica americana

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Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

As Filhas de Bilitis, a primeira organização social e política lésbica dos EUA, foi fundada em São Francisco em 1955. No ano seguinte, o grupo começou a publicar The Ladder, a primeira publicação lésbica em série distribuída nacionalmente. A revista mensal, que era sempre enviada em envelopes anônimos de papel pardo, tinha notícias, editoriais, poesia, contos, cartas e uma bibliografia de literatura lésbica. Quando as Filhas de Bilitis se separaram em 1972, o grupo doou toda sua biblioteca para o LHA.

Dicionário sapatão de japonês

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Fotos por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

No LHA, os livros são organizados alfabeticamente pelo primeiro nome como “um lembrete que as mulheres perdem seus nomes com frequência”, explica Saskia Scheffer, uma das 10 coordenadoras voluntárias do arquivo desde 1989. Sendo assim, o Japanese Dyketionary pode ser encontrado em “J”, do (suposto) pseudônimo Joni van Dyke. O lindo caderno preenchido à mão contém centenas de palavras e frases, como “femme”, “bush”, “clitoris” e “fag hag” em três línguas: inglês, japonês casual e japonês formal. Há uma longa corrente de ativismo lésbico no Japão moderno, que pode ser rastreada até 1975, quando um grupo de dezenas de mulheres foi o primeiro a se identificar publicamente como lésbicas, publicando uma edição da revista Subarashi Onna (Mulheres Maravilhosas). Em Tóquio nos anos 80, uma comunidade de lésbicas falantes de inglês começou a se formar, e em 1985 elas começaram a realizar reuniões chamadas uiikuendo (“weekends”) como parte da Conferência Feminista Internacional do Japão. Uiikuendo era um dos lugares onde o Dyketionary circulava. Como van Dyke explica na página de título, o livro é “uma tentativa de superar as dificuldades de comunicação para combater estratégias do patriarcado para bloquear a ENERGIA SAPATÃO!”

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Uma camiseta que reclama um epíteto poderoso

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Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

Em 1º de maio de 1970, a escritora e ativista Rita Mae Brown liderou um grupo de 40 mulheres numa ação coletiva no Segundo Congresso para Unir as Mulheres em Nova York. Betty Friedan, uma conhecida feminista da segunda onda e fundadora da Organização Nacional de Mulheres, tinha irritado Brown (e muitas outras) se referindo às lésbicas, que ela não queria como parte de seu movimento, como “ameaça lavanda”. Brown e seu grupo se infiltraram no congresso enquanto Friedan falava, cortaram as luzes e tomaram os corredores do auditório. Quando as luzes voltaram, as mulheres estavam usando camisetas com a frase “Ameaça Lavanda”. Elas começaram a gritar exigências para que o movimento feminista abraçasse as lésbicas, e a entregar cópias do “Woman-Identified Woman”, um manifesto que as organizadoras da ação coescreveram para a ocasião, assinado “Radicalesbians”. Depois da ação, as organizadoras continuaram usando o novo apelido. Elas se tornariam figuras-chave do movimento feminista lésbico.

Romances pulp que escaparam das leis de obscenidade de seu tempo

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Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

Como títulos como A Outra Fome, Um Vício Delicado, Amizade Maligna e Garotas Estranhas, romances pulp lésbicos dos anos 50 e 60 não eram sutis sobre seu conteúdo. Apesar de muitas editoras mainstream permitirem que os romances circulassem, devido a leis de obscenidade da época, as personagens mulheres tinham que ser punidas por suas indiscrições e ofensas contra a heteronormatividade para que os livros fossem impressos. Para contornar a censura do governo, toda personagem lésbica precisava responder por sua “perversão” no final do livro e acabar com um homem, ou perder seus filhos, emprego ou até a vida. “Você podia ser tão lascivo quanto quisesse”, diz Scheffer, “mas não podia dar a elas um final feliz”. Ainda assim, quando esses livros eram produzidos, “eles eram um dos únicos lugares onde as lésbicas podiam ler sobre si mesmas”, acrescenta Scheffer. Por isso, as arquivistas do LHA rotulam essas publicações de “literatura de sobrevivência”.

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Fotos da ícone lésbica Mabel Hampton

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Fotos cortesia do Lesbian Herstory Archives.

Mabel Hampton é um ícone da história lésbica de Nova York. Ela foi dançarina e artista durante a Renascença do Harlem, uma ativista e filantropa pelos direitos gays mais tarde da vida, e lésbica assumida durante tudo isso. Nascida na Carolina do Norte em 1902, Hampton morou na Cidade de Nova York por toda a vida fora alguns anos da infância. Ela passou boa parte da vida adulta trabalhando como dançarina na cena de artes do Harlem, além de se apresentando em Coney Island e por toda Nova York, se cercando orgulhosamente de muitas das mulheres negras queer mais proeminentes da época. Hampton conheceu sua parceira da vida toda, Lillian Foster, em 1932, e o casal morou junto no Bronx por mais de 40 anos, até que Foster faleceu em 1978. (O prédio do apartamento delas está listado como Marco Histórico LGBT de Nova York.) Depois disso, Hampton foi morar com a cofundadora do LHA Joan Nestle, no apartamento que originalmente abrigava os arquivos. Nestle criou uma extensa história oral da vida de Hampton através de muitas entrevistas, e quando ela morreu, Hampton doou todos os seus papéis pessoais, lembranças, cartas e livros para o arquivo.

A primeira revista erótica lésbica comandada por mulheres

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Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

Como uma reação ao que muitas sentiam ser uma profunda faceta puritana no movimento feminista da época, a On Our Backs foi fundada em 1984 como a primeira revista erótica lésbica com uma abordagem positiva comandada por mulheres nos EUA. Durante os anos 70 e 80, havia uma divisão entre lésbicas que preferiam não falar sobre sexo porque não queriam que isso as definisse na cultura mainstream, e aquelas que queriam celebrar o sexo como algo central de sua identidade. On Our Backs, que foi publicada até 2006, foi batizada como reação ao jornal feminista radical (e muitas vezes antipornô) off our backs, publicado de 1970 até 2008. Em seus mais de 20 anos, On Our Backs publicou uma variedade de literatura erótica vanguardista e controversa, muitas vezes explorando as questões sociais e políticas cercando o sexo e relacionamento lésbicos, de escritoras como Dorothy Allison, Lucy Jane Bledsoe, Sarah Schulman, Thea Hillan, Jewelle Gomez, Patrick Califia e Red Jordan Arobateau.

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O primeiro pornô para mulheres

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Foto por Saskia Scheffer, cortesia do Lesbian Herstory Archives.

Nan Kinney, uma das cofundadoras do On Our Backs, queria que as lésbicas tivessem mais que apenas literatura erótica, então em 1985 ela fundo a Fatale Media, a primeira produtora a fazer pornô para mulheres, que é ativa até hoje. Shadows, o primeiro lançamento da Fatale Media, prometia “paixão e espontaneidade genuínas” das duas mulheres que eram amantes diante das câmeras e longe delas. Um filme posterior da Fatale, Bathroom Sluts, foi parcialmente filmado no LHA, “e no melhor estilo lésbico, o vídeo acaba com as participantes contando com orgulho por que fizeram o filme”, diz Scheffer.

O único registro de voz conhecido de Paula Gunn Allen

Em sua vida, a poeta, crítica literária e acadêmica premiada nativa americana Paula Gunn Allen escreveu vários livros de poesia, artigos e antologias. Seu livro de vanguarda de 1986, The Sacred Hoop, postulava que as obras eruditas e históricas europeias tinham enquadrado a sociedade dos nativos americanos através de lentes patriarcais, diminuindo papéis importantes que as mulheres ocupavam na política e cultura. Seu trabalho acadêmico é considerado tanto controverso quanto influente, e seus aclamados livros de poesia ajudaram a destacar a presença literária dos nativos americanos nos EUA. Ela não se identificou como lésbica até mais tarde na vida, depois de vários casamentos com homens. Alguns anos depois de sua morte em 2008, uma pesquisadora do LHA descobriu uma fita cassete com uma apresentação de poesia de Allen de 1980, que tinha acontecido no local original do arquivo em Upper East Side. Esse é o único registro conhecido da voz de Allen.

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O comovente diário de uma lésbica comum de Ohio nos anos 1950

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Um dos princípios do LHA é que uma pessoa não precisa ser muito conhecida para ser lembrada. “Não ligamos se você é importante ou famosa, nem se é boa ou má”, diz Sheffer. “Você pode ter sua própria coleção especial aqui”. Uma das maiores dessas coleções especiais é de Marge McDonald, uma lésbica que morava numa cidadezinha do Meio Oeste americano nos anos 50. Ela se descrevia como tímida e solitária, e viveu toda sua vida no armário. Mas ela escreveu diários extensos e detalhados sobre suas esperanças e medos, seu entendimento de sua sexualidade, e não conseguir agir ou discutir isso com ninguém em seu mundo puritano. Entre as 1.500 páginas de seu diário de 1955 até 1957, ela conta sobre sua primeira visita a um bar lésbico – ela também concatenava fantasias elaboradas com as amigas, envolvendo um namorado imaginário que queria saber como era a cena – e seu primeiro beijo lésbico, sobre o qual ela escreveu: “Eu nunca poderia descrever meus sentimentos então não vou nem tentar. Basta dizer que enquanto viver, nunca vou esquecer esse momento – ou o beijo”. Quando McDonald morreu, um advogado ligou para a LHA e disse que elas tinham três dias para buscar todos os arquivos pessoais dela; ela tinha doado tudo para o arquivo em seu testamento, só então se assumindo para a família.

Lembranças da médica do exército americano no Vietnã Mary Minucci

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Mary Minucci era uma médica do exército e oficial não comissionada no Vietnã. Ela tinha várias condecorações, recebeu a Medalha de Serviço no Vietnã com seis Estrelas de Campanha, Medalha Nacional de Serviço de Defesa Nacional, uma Estrela de Bronze, Medalha da Campanha na República do Vietnã e a Cruz do Vietnã. Depois de seu serviço militar, ela viajou para a Papua-Nova Guiné, ensinando os nativos a usar a medicina ocidental. Ela e sua parceira, que também era militar, viveram sempre no armário. Minucci desenvolveu três tipos de câncer depois de seu serviço, e só depois de sua morte a família permitiu que ela fosse reconhecida como lésbica. Era muito improvável que a história de Minucci e sua orientação sexual fossem reveladas; considerando as políticas de sexualidade para os oficiais do exército americano por toda a história, então poucas histórias de pessoas queer nas forças armadas são conhecidas.

Calendários e agendas usados como sinais sutis

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Entre os itens mais discretos e pessoais que contam histórias queer está um pequeno lote de papéis que organizavam a vida das pessoas. Antes da era digital, quando as lésbicas podiam congregar em salas de bate-papo e fóruns online, as mulheres muitas vezes sinalizavam sua persuasão entre si com coisas simples como calendários nas paredes e as agendas em seus bolsos. Alguns desses depois seriam produzidos em massa, como calendários de parede apresentando “Sapatões Para Prestar Atenção”, uma série de quadrinhos muito popular de Alison Bechdel, e os “Calendários Sereias de Couro”, feitos pelo Sirens Women's Motorcycle Club, o maior e mais antigo de NYC. Outros eram produzidos em número muito menor, enquanto outros ainda eram feitos à mão cuidadosamente e distribuídos apenas para amigas. Nos anos 80 e 90, esses livrinhos se tornaram mais fáceis de produzir e começaram a ser amplamente usados. A própria Sheffer carrega um pequeno Vrouwen Kalender vermelho todo ano; essa agenda em particular também está disponível em inglês (“Woman's Calendar”) e alemão (“Frauen Kalender”).

Para mais momentos, lugares e pessoas da “herstory” lésbica, siga o LHA no Instagram.

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