Para muitos jogadores, loot boxes já são um enorme problema
Foto: Loomis Dean/The LIFE Picture Collection/Getty Images.

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Para muitos jogadores, loot boxes já são um enorme problema

Histórias das profundezas dos cassinos dentro dos games.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Recentemente, o órgão independente ESRB, que determina classificação etária para os games lançados na América do Norte, anunciou que desenvolverá num "futuro próximo" um sistema de selos nas embalagens que identifica os jogos que usam microtransações e loot boxes. A medida foi formulada a toque de caixa depois de uma forte temporada de críticas a essas práticas abusivas, mas faz pouco para de fato apresentar uma solução de um problema de vício em apostas e jogos que já fragiliza a vida de inúmeras pessoas em todo o mundo.

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Esta matéria é sobre essas pessoas.


Minha irmã mais velha tem três filhos, um de 12 anos, um de 11 e um de 8. No Natal, eles ganharam um Xbox One. Quando descobri o presente deles, fiquei empolgada. O único outro console que eles tinham em casa era um Wii, significando que agora eles tinham a chance de jogar alguns dos meus videogames favoritos. Eu estava morrendo de curiosidade sobre os jogos e acessórios que eles compraram para as crianças. Aí fiz uma pergunta que achei que nunca faria para uma mãe.

“Quanto você sabe sobre loot box?”

No mundo dos videogames, esse tipo de discussão é comum. Textos sobre lootbox focam no filosófico, no acadêmico: Quais são as mecânicas psicológicas por trás das economias dentro dos jogos? Como esses sistemas impactam a jogabilidade? É uma economia “boa” ou “ruim”? Mas em se tratando de falar com a minha irmã sobre o primeiro console moderno dos filhos dela, imediatamente fiquei preocupado com como economias dentro dos jogos poderiam empurrá-los para um ciclo de vício.

E eu não pensaria assim algumas semanas atrás.

Passei as últimas semanas documentando histórias que recebi online sobre gente que teve que lidar com gasto compulsivo relacionado com microtransações, mecânicas de gachapon/loot box e apostas com skin. Eu queria saber se as pessoas já estavam tendo problemas com esses sistemas atualmente, e tive minha resposta bem rápido. Muitas pessoas, mais do que você imagina, já foram seriamente impactadas pelas consequências de gastar compulsivamente em videogames.

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Arte promocional das skins de Natal de 'Overwatch'. Imagem: Blizzard/Divulgação.

Tentando descobrir como sistemas de apostas em videogames podem prejudicar pessoas, me abri para um espectro mais amplo de histórias e experiências. Os indivíduos com quem falei variavam muito em contexto de jogos e grupos etários. Eles se espalham por várias plataformas, de celular a PC e console. Geralmente, esses indivíduos tinham problemas com um jogo específico em vez de um problema com vários títulos. Não observei uma linha entre economias cosméticas, como a de Overwatch, e economias que influenciam a progressão do jogo, como Battlefront II e Shadow of Mordor. A tendência mais comum de todas essas histórias era um conjunto similar de comportamentos e impactos.

As pessoas com quem falei descreveram seus gastos em loot boxes como impulsivos, vergonhosos e estressantes. A urgência em comprar loot boxes e tentar conseguir acessórios épicos era alimentada por eventos de tempo limitado e pressão dos colegas. Um cara relatou ficar devendo milhares de dólares jogando Neverwinter Online. Um jogador que gastou centenas de dólares em loot boxes me disse ser incentivado pela “lenta revelação, o brilho suave e os visuais das loot boxes explodindo, as tomadas onde a luz fica dourada”, e os tipos de elementos de apresentação pensados para manter a atração delas.

"Tenho que gastar dinheiro ou jogar constantemente para não sentir que estou perdendo alguma coisa."

Depois de gastar algumas centenas de dólares em Fire Emblem Heroes e Overwatch, Fennel, de 26 anos, me disse que se arrependia de ter se interessado pelas loot boxes em primeiro lugar. “Me sinto tentada a gastar em loot boxes sempre que um evento de tempo limitado começa, ou vou sentir que perdi”, ela disse. “Cerco toda a minha percepção do jogo em curtos períodos de ansiedade e stress onde tenho que gastar dinheiro ou jogar constantemente para não sentir que estou perdendo alguma coisa.”

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Um ex-jogador anônimo de Overwatch compartilhou comigo o que o atraiu para o que ele descreveu como um vício em loot box. Abrir várias loot boxes de uma vez, ele disse, “me dava a sensação de uma adrenalina contínua… como abrir um monte de presentes de Natal”.

“A adrenalina de abrir as loot boxes é viciante”, me disse outro jogador. “Uma tentativa fracassada significa uma tentativa mais perto do sucesso.” Outra pessoa, um jogador de FIFA que gastou mais de $1 mil em Ultimate Team, me disse que se sentia tentado pela “emoção de conseguir o jogador e… a necessidade de ter um bom time e ser o mais competitivo possível”.

Arte promocional do evento de Halloween de 'Overwatch'. Imagem: Blizzard/Divulgação.

A "emoção" de abrir loot boxes e ganhar itens raros inevitavelmente era seguida por arrependimento e vergonha. O jogador anônimo de Overwatch me disse que acabou se sentindo “fisicamente enjoado” quando logava no jogo. “Acordei um dia”, explicou outro, “percebendo o que eu tinha feito, entrei na minha conta bancária e quis vomitar”.

“Muitas vezes depois”, disse um ex-jogador de Marvel Heroes, “eu ficava sentado lá com um gosto ruim na boca”.

Muitas dessas pessoas enfatizaram que o arrependimento e a vergonha vinham acompanhados de um impacto em suas finanças pessoais, relacionamentos e saúde mental.

Alguns jogadores ficaram surpresos com seu próprio desejo de gastar, como Fennel, que me disse que “nunca entendeu o apelo das apostas tradicionais”.

Outros jogadores me disseram que loot boxes despertam antigos hábitos. Kyle, um jogador que teve problemas com vários títulos Kabam, me disse que teve problema com compras pela internet no passado, mas que as loot boxes foram um problema significativamente maior. Matt, cujos gastos nas loot boxes de Counter-Strike evoluíram para um hábito de apostas com skins, contou que já tinha passado por vício com apostas em cassinos, apostas online e compras de loot box. Na maioria dos casos, esses problemas eram exacerbados por casos de ansiedade e depressão preexistentes, ou prejudicaram suas relações com esposos e familiares.

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Os impactos mais severos na saúde mental resultaram em depressão profunda e pensamentos de autoflagelação. Um jogador que desenvolveu problemas com gastos em jogos de ritmo de celular como Idolm@ster e Love Live descreveu sua derrocada. “Acabei ligando para uma linha de prevenção ao suicídio naquela noite. Eu me sentia perturbado, patético, que tinha jogado dinheiro fora com joias virtuais. Eu sentia que merecia morrer por deixar as coisas chegarem a esse ponto e ter gasto tanto dinheiro.”

Screenshot de 'Idolm@aster'. Imagem: Bandai Namco.

O psiquiatra Richard Freed, que trabalha com famílias enfrentando vício digital, explicou que a comunidade psiquiátrica reconhece que transtornos de apostas e até vício em videogames podem ter o mesmo impacto pessoal de abuso de substâncias. “Comportamentos podem ser viciantes”, disse o Dr. Freed. Vários estudos psiquiátricos corroboram a ideia de que transtornos de apostas desencadeiam as mesmas áreas do cérebro que vício em drogas e álcool, um estudo recente afirma que vício em videogames pode fazer o mesmo (apesar desse ser um território polêmico e a ciência ainda não ter dado sua palavra final).

O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o manual da Associação Psiquiátrica dos EUA, define transtornos de apostas por seus impactos. Pessoas com problemas com jogo ficam preocupadas com a ação e a adrenalina associadas com apostar. Elas tentam recuperar suas perdas, e experimentam depressão e ansiedade relacionadas com apostar, são atraídas pelo jogo por forças externas como situações sociais ou stress, e experimentam síndrome de abstinência quando não estão jogando. O DSM-5 definiu um novo termo, “transtorno de jogos na internet”, com praticamente o mesmo conjunto de critérios.

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Especialistas em cassinos como Blaine Graboyes da GameCo, uma empresa que constrói experiências de jogo tipo fliperama para cassinos, reconhece que as táticas da indústria de apostas estão sendo emuladas pela indústria de videogames. “A indústria de games precisa entender os comportamentos e mecânicas humanas subjacentes em que está tocando”, Graboyes me disse. “O fenômeno loot box se constrói na mesma experiência de caça-níqueis”, ele explicou. “Eles são os melhores e mais otimizados produtos do cassino.”

“…a lenta revelação, o brilho suave e os visuais das loot boxes explodindo, as tomadas onde a luz fica dourada…”

Dan Trolaro, diretor executivo do Council on Compulsive Gambling de Nova Jersey, explicou: “As mecânicas dentro de uma loot box parecem muito com uma aposta”. Trolaro lidera um subcomitê explorando essas questões emergentes para o National Council on Problem Gambling.

Keith Whyte, um diretor executivo do NCPG, explicou que especialistas em apostas problemáticas veem apostar como um espectro de riscos, intensidades e possíveis danos. “Uma maneira como pensamos nisso”, ele disse, “é que uma pessoa pode experimentar danos, definidos como emocionais ou financeiros, como resultados das mecânicas estilo aposta num videogame”.

Whyte explicou que especialistas em jogo estão observando os videogames agora por causa de um fenômeno que chamam de “convergência”. Comportamentos viciantes se tornam uma linguagem compartilhada porque tipos diferentes de jogo — jogos de cassino, videogames – estão se amalgamando. “Você pode fazer duas coisas”, explicou Whyte. “Você pode fazer caça-níqueis mais parecidos com um videogame, acrescentando escolhas e controles, ou pode pegar um videogame e dar a ele uma função de caça-níquel.”

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A questão diante da comunidade psiquiátrica e especialistas em problemas com jogo é onde colocar o limite entre “vício em videogames” e “transtorno de apostas”. Apesar das consequências sistêmicas do impulso habitual de gastar em videogames seja claramente similar aos impactos do transtorno de aposta tradicional, o entendimento psicológico atual não classifica vício em loot box como um transtorno de apostas.

A hesitação em chamar sistemas como loot boxes de “aposta” levou a uma falta de entendimento dentro tanto da comunidade de games e como da comunidade psiquiátrica. Cam Adair, um ex-viciado em videogames que agora comanda uma comunidade de apoio chamada GameQuitters, me disse que membros de sua comunidade vêm tentando procurar ajuda, só para encarar uma falta de cobertura em seus planos de saúde ou, pior ainda, uma falta de compreensão por parte de profissionais de saúde mental. “O debate sobre a classificação”, ele disse, “ignora as pessoas que estão sofrendo com o problema”.

Há um reconhecimento tácito dentro da indústria de apostas que o vício em jogo existe. Cassinos têm anúncios com números de telefone de assistência e financiam pesquisa sobre transtorno de apostas. Graboyes da GameCo chegou a dizer que a indústria de apostas tem um incentivo financeiro para reconhecer e apoiar pesquisa sobre o vício. Nas palavras dele, reconhecer comportamento problemático cria um negócio sustentável.

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Há sistemas nos videogames de hoje que exploram vulnerabilidades da nossa psicologia.

De sua parte, a indústria de videogames tem resistido a tentativas de rotular e regulamentar sistemas de apostas nos jogos. A ESRB se recusou a reconhecer loot boxes como apostas. Mas quando especialistas dentro da indústria de cassinos dizem que esses sistemas são basicamente caça-níqueis, precisamos levar a ameaça do vício e manipulação psicológica a sério. Se a indústria continuar se recusando a supervisionar a questão, isso pode facilmente levar a repressões ao mercado e intervenção regulatória.

Jornalistas como Austin Walker, do próprio Waypoint, e Heather Alexandra do Kotaku já reconheceram que as mecânicas de loot box parecem muito com as de caça-níqueis. A comunidade psiquiátrica vive dizendo que apostar é viciante e desencadeia os mesmos comportamentos do vício químico. Cada vez mais os videogames são criados em torno desses sistemas; sociólogos são contratados para criar gráficos e músicas chamativas que tornam as loot boxes atraentes, e patentes são escritas para tornar jogos multiplayer online verdadeiros comerciais de itens raros.

Um pacote premium em 'Shadow of War'. Imagem: Warner Games/Reprodução.

As consequências desses sistemas resultam nas histórias que coletei. Videogames não deveriam prender pessoas em círculos viciosos de dívidas, vergonha a abuso. Ouvi histórias de pessoas cujo hábito de loot box se tornou um vício em apostas com skins e depois dívidas, adolescentes que gastaram todo o dinheiro de seu primeiro emprego em loot boxes, e até um garoto de 16 anos que, com 11, usou o cartão de crédito da mãe sem ela saber para comprar centenas de dólares em itens num aplicativo. Keith Whyte disse que ganhar aquele item super-raro numa loot box e ganhar na loteria é praticamente a mesma coisa. “É a ação e emoção de ganhar o prêmio.”

É responsabilidade da comunidade de videogames entender essas mecânicas e apoiar as pessoas afetadas por elas. Cam Adair do GameQuitter me disse que as comunidades têm uma oportunidade de serem a primeira linha de defesa. “Sabemos por pesquisas que a maioria das pessoas que querem ajuda não procuram por causa da vergonha e do estigma.” Enquanto a necessidade de supervisão e regulamentação dentro da própria indústria é clara, uma falta de compreensão da comunidade cria o estigma e encoraja o silêncio.

Tenho um interesse egoísta em querer que os videogames sejam saudáveis. Quero que meus amigos e minha família possam jogar sem se preocupar com como isso pode ter um impacto em sua estabilidade financeira e saúde mental. Videogames são divertidos, passo muito tempo neles, e ganhar uma nova roupa legal para meu personagem favorito numa loot box é um jeito fácil de se sentir melhor depois de um dia ruim. Infelizmente, há sistemas nos videogames de hoje que exploram vulnerabilidades da nossa psicologia. Por isso senti a necessidade de falar com a minha irmã sobre o acesso dos filhos dela a loot boxes. Ter essa conversa, trabalhar por uma reforma e ajudar pessoas que já enfrentam esses problemas é o único caminho a seguir.

DISCLAIMER VÍCIO EM JOGOS

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