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'Ilha de Cachorros', do Wes Anderson, é até divertido, mas pura apropriação cultural

Apesar de ser charmoso e peculiar, o longa reduz personagens e culturas não brancas a decoração.
Imagem fornecida.

Matéria originalmente publicada pela VICE Austrália.

Enquanto a última animação em stop motion de Wes Anderson Ilha de Cachorros vai chegando ao clímax, há uma cena onde uma das personagens principais – a estudante de intercâmbio Tracy Walker, dublada por Greta Gerwig – exclama num momento de revelação. Aí, todos os seus colegas japoneses concordam com a cabeça, sussurrando.

À primeira vista, essa é uma sequência fofa. Tracy incita uma plano para resgatar os cães da cidade fictícia de Megasaki, depois que eles foram banidos para uma ilha na costa do Japão pelo prefeito. A cena tem todas as marcas registradas esteticamente agressivas de Anderson – os silêncios desconfortáveis, cores pastel e simetria perturbadora.

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Mas alguma coisa na cena, e na passividade das figuras não brancas, cai mal.

É um desconforto que flui pelo filme todo. Como essa cena, Ilha de Cachorros é muito inocente na superfície. É um conto sobre a jornada de Atari, 12 anos, para salvar seu bicho de estimação perdido, Spots. É bonito! É lindamente animado! O título é literalmente um homófono para Eu Amo Cachorros!

Mas olhando sob os cenários intrincados e amigos peludos do filme, tem alguma coisa mais insidiosa. O crítico de cinema do Los Angeles Times Justin Chang tocou nisso quando escreveu sobre a “fraqueza de Anderson por esteriótipos raciais”, apontando a política dúbia de ter cachorros falando um inglês perfeito, enquanto os personagens humanos japoneses – falando sua própria língua – não recebem legendas, ou são traduzidos só algumas vezes pela Intérprete Nelson (dublada por Frances McDormand).

Tracy, a estudante de intercâmbio de 'Ilha de Cachorros'.

Os espectadores japoneses também não curtiram que Tracy seja a salvadora branca, que sozinha lidera um levante contra os políticos corruptos de Megasaki, enquanto cidadãos japoneses impassíveis assistem de fora como um retrato perfeito de subordinação asiática. Sem mencionar a abordagem do filme de seu cenário japonês, que parece mais uma lista de compras de iconografia clichê que qualquer senso de envolvimento cultural real. Ilha de Cachorros começa e termina com um círculo de tambores taiko, e no meio disso Anderson nos dá desde wasabi envenenado a lutadores de sumô, haikus engraçadinhos até, porra, uma nuvem de cogumelo.

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Mas mais revelador que os esteriótipos incorporados no filme em si é a recusa do público em reconhecê-los pelo que eles são. Muitas palavras já foram escritas sobre a tensão entre homenagem e apropriação de Ilha de Cachorros, e quase todas encontraram a mesma atitude dos comentaristas: criticar a caricatura mão pesada de Anderson significa levar o filme a sério demais. Ou que Anderson, e todos os diretores, merecem um espaço de manobra porque sua obra cinematográfica se baseia em levar estereótipos ao limite estético.

Entendo o segundo argumento. De verdade. Quando Anderson acerta esse exagero, é uma conquista cinematográfica. Fiquei maravilhado com a excitação de Pura Adrenalina e seu final surpreendentemente triste. A nostalgia de escoteiros de Moonrise Kingdom me fez ansiar por uma infância cheia de pop francês e trilhas na mata. Mas os melhores traços do diretor não desculpam seus piores: ou seja, sua redução de personagens e culturas não brancas a pouco mais que decoração para suas narrativas brancas.

Uma cena de 'Ilha de Cachorros'. Imagem fornecida.

E o que vemos em Ilha de Cachorros não é novidade para Anderson. Em Viagem a Darjeeling, ele joga três irmãos brancos (Owen Wilson, Adrien Brody e Jason Schwartzman, que coescreveu Ilha de Cachorros) numa paisagem indiana depois da morte do pai. Enquanto Anderson exige muito pouco de seus personagens em Ilha, em Darjeeling ele pede demais – em vez de serem os salvadores brancos, os irmãos é que estão procurando salvação. Claro, no estilo típico de Anderson, eles encontram – num funeral indiano, nada menos.

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Em nenhum desses filmes Wes Anderson trata pessoas não brancas como seres humanos. Na melhor das hipóteses eles são alívios cômicos; na pior, são escadas para outros, quase sempre personagens brancos falantes de inglês. Como em Ilha de Cachorros, o contexto estrangeiro é tão distorcido e exoticizado que se torna apenas uma fantasia ocidental. Darjeeling foi lançado para um público de fãs, que se recusou a apontar o racismo – vamos chamar isso pelo que é – que é mostrado.

A resposta do público para ambos é quase bizarra considerando o discurso racial atual em Hollywood. A história é familiar agora: um diretor branco tenta fazer um filme sobre pessoas não brancas; esse diretor toma várias decisões raciais toscas; o diretor e seu filme são massacrados de acordo pelo público e crítica.

Vimos vários exemplos disso: Ghost in the Shell (e a escalação de Scarlett Johansson como um ciborgue japonês) é o primeiro que vem à cabeça, mas antes disso, tivemos Emma Stone como uma personagem um quarto chinesa, um quarto havaiana em Sob o Mesmo Céu. E antes disso, teve orgia de três horas de distorção racial de A Viagem das Wachowskis.

Imagem fornecida.

O que torna Wes Anderson diferente? Por que Ilha de Cachorros e Darjeeling não incitaram o mesmo ultraje? De algumas maneiras, é verdade que o racismo nesses filmes é mais sutil que o whitewashing claro de seus predecessores. Não é tão escandaloso, digamos, um cachorro falando inglês comparado com ver atores brancos famosos em papéis claramente criados para uma pessoa não branca. Para ser justo com Anderson, Ilha de Cachorros conta com uma quantidade impressionante de talentos japoneses – mas é uma pena que eles tenham sido pouco utilizados.

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E sim, é difícil criticar o trabalho de um diretor que admite prontamente suas referências culturais. Esses filmes são charmosos e peculiares, mas acabam ofuscados pela própria visão de Anderson de um Japão de cultura pop que é usado como mero cenário para a história que ele quer contar. E é isso que torna seu estilo apropriação, não homenagem.

Talvez o próprio Anderson resuma bem isso. É uma fala no meio de Ilha de Cachorros do personagem Rex de Edward Norton, quando ele encontra pela primeira vez o protagonista falante de japonês Atari. “Queria que tivesse um jeito de poder entender ele”, diz Norton. Bom, tem um jeito. Se Anderson deixasse.

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