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A Trajetória de uma Calibre 12 e o Projeto que Ameaça Fazer a Alegria do Crime

A flexibilização do Estatuto do Desarmamento facilitará a venda e a circulação de armas, aumentando o lucro da indústria de armas e munições. Como resultado, a fonte de abastecimento dos integrantes de carreiras criminais também vai se ampliar.

Crédito: Ananabanana/Flickr.

Sandro* era analista de sistemas, escrevia livros sobre tecnologia e colecionava armas. Morador de um sobradinho geminado na Lapa, bairro de classe média de São Paulo, seu pequeno arsenal não foi capaz de evitar o ataque surpresa contra a família. Ele estava fora quando três assaltantes invadiram sua casa. Armados, os ladrões ameaçaram sua mulher e levaram diversos objetos, entre eles dois revólveres e uma pistola da marca Taurus e uma espingarda Boito.

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Isso foi no dia 25 de setembro de 2008. Começa aqui a história da espingarda calibre 12: a arma, com dois canos longos e escuros, viveu dias pacatos sobre a estante de um colecionador antes de ser roubada e iniciar sua trajetória pelo mundo das sombras, onde produziu desgraças. Entre 2008 e 2013, a calibre 12 circulou incólume. E não se sabe quantos crimes ajudou a praticar – pelo menos até o dia 15 de janeiro de 2013, quando foi apreendida em Embu das Artes, depois de protagonizar um assassinato cruel.

As balas dessa espingarda mediaram um conflito relacionado a um triângulo amoroso formado por duas mulheres, Wilka e Daniela, e um homem, Márcio, que, em seu depoimento na polícia e no interrogatório processual, confessou ter matado Daniela por "ciúmes e traição". Os detalhes do conflito foram descritos no processo ao qual a VICE teve acesso.

Wilka namorava Márcio fazia dois meses. Nada muito sério. Logo no começo do namoro, ela voltou a se envolver com sua ex-amante, Daniela, assumidamente gay. Márcio descobriu a traição e ficou possesso. Em seguida, passou a maquinar uma tocaia. Wilka, por razões desconhecidas, acabou ajudando Márcio. Ela ligou para a amante Daniela e disse que estava passando mal. Tudo fingimento. Pediu à amante e amiga que a acompanhasse até um hospital. Daniela acompanhou Wilka sem saber que estava sendo arrastada para uma arapuca.

Quando chegaram ao Valo Velho, bairro da zona sul, o namorado traído colocou as duas mulheres no carro. No porta-malas, estava guardada a Boito Calibre 12. Os três partiram para caminhos escuros e isolados da periferia. Pararam o carro numa estrada erma em Embu das Artes. Márcio desceu e pediu para Daniela o acompanhar. Pegou a arma no porta-malas e disparou dois tiros.

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Foi com a Boito Calibre 12, objeto de desejo de um colecionador na Lapa, que Márcio matou Daniela. Márcio deixou Wilka em um ponto de ônibus e seguiu para casa. À noite, Márcio e Wilka foram a um motel. Ele deu uma surra nela. Hoje, está preso. A arma foi apreendida em um depósito da Justiça.

Toda arma vende aos homens a ilusão de ter superpoderes. Com ela nas mãos, é como se o próprio corpo ganhasse dois tubos esguios na extremidade dos braços e passasse a soltar balas mortais contra os inimigos. Em vez disso, porém, o dono de armas se torna uma importante fonte de abastecimento dos criminosos.

Afinal, não basta ter armas para se defender. É preciso também estar com o espírito armado e engatilhado, o tipo de disposição que predomina entre os predadores integrantes de atividades criminais. E que passa ao largo das presas, as proprietárias de armas legalizadas.

A realidade das ruas em São Paulo e no Brasil é revelada por números incontestáveis. Resultados parciais do levantamento que vem sendo feito pelo Instituto Sou da Paz em conjunto com o Ministério Público Estadual mostram que 38% das 4.289 armas rastreadas em casos de roubos e homicídios em São Paulo nos anos de 2011 e 2012 possuíam registro, o que na prática significa que foram roubadas de seus proprietários antes de serem usadas em roubos e assassinatos. Só não se pode cravar o resto, porque a numeração foi raspada. Mas são armas produzidas no Brasil. Ou seja, elas não são contrabandeadas nem vêm de fora – nem mesmo do Paraguai. São comercializadas aqui.

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Conhecer a trajetória da Calibre 12 do colecionador e de outras armas é esclarecedor neste momento, em que deputados estão prestes a votar a flexibilização do Estatuto do Desarmamento no Congresso Federal. A intenção é mudar a lei aprovada em 2003, considerada uma das políticas públicas mais relevantes para se reduzir a violência no Brasil. Não se deve menosprezar a capacidade dos congressistas em tomarem decisões erradas.

Os riscos de retrocesso são reais diante de um Congresso formado por deputados que receberam dinheiro da indústria de armas e munições (10 campanhas foram financiadas com dinheiro de armas) e que vêm se reunindo em torno da chamada bancada da bala, tristemente populista, barulhenta e ativa.

Uma Comissão Especial deve ser formada nos próximos dias para analisar as mudanças no projeto. Dos 26 nomes a integrarem o grupo, já foram escolhidos 11 deputados. Quatro são policiais, caso do policial federal Eduardo Bolsonaro (PSC-SP). Outro, Gonzaga Patriota (PSB-PE), teve parte da campanha financiada pela indústria de armas.

Caso a nova lei seja aprovada, as principais mudanças são:

- Volta do porte civil de armas. O Estado passa a ser obrigado a conceder portes a todos que completarem requisitos mais frágeis do que os atuais;

- Acaba com a necessidade de renovação do registro de posse de armas e, consequentemente, com a necessidade de as pessoas passarem por novos exames psicológicos e técnicos e apresentarem novos atestados de antecedentes;

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- Passa de 6 para 9 o número de armas permitidas por cidadão;

- Limite de munições por arma passa de 50 por ano para 50 por mês. Permitindo que alguém com 9 armas adquira mais de 5.400 munições por ano;

- Não mexe em categorias vulneráveis e anacrônicas da nossa legislação, como a de caçadores e colecionadores de armas, e transfere ao Exército outras atribuições fora de sua missão, como, por exemplo, cuidar de armas de empresas de segurança privada (hoje, a cargo da Polícia Federal);

- Diminui as penas para comércio ilegal de arma de fogo e tira a exclusão automática de registro para quem for pego embriagado ou entorpecido portando armas.

Em resumo, o projeto aumenta a facilidade para a venda e a circulação de armas, aumentando, assim, o lucro da indústria de armas e munições. Como resultado, a fonte de abastecimento dos integrantes de carreiras criminais, que praticam roubos e assassinatos, também vai se ampliar.

No final do ano passado, uma carta foi enviada ao Congresso pedindo a manutenção da lei. Contra a revisão que tramita no Congresso, o texto contava com a assinatura dos titulares das Secretarias de Segurança do Sudeste, entre eles José Maria Beltrame, do Rio de Janeiro. Os secretários de segurança pediram que as restrições fossem mantidas e argumentaram que o Estatuto do Desarmamento reduziu 12% dos homicídios no Brasil entre 2003 e 2006.

Mas o projeto voltará a ser apresentado na nova Legislatura nos próximos dias e deve ser votado em breve. A confusão em torno de listas de propinas e crises de governabilidade podem ajudar a desviar o foco. Caso seja aprovado, fará a alegria dos criminosos brasileiros em busca de armas para alcançarem seus objetivos ilícitos.

*Os nomes não foram colocados na íntegra porque os envolvidos procurados pediram para não participarem do artigo. Além disso, revelar o nome completo é irrelevante para os propósitos do artigo.