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Colei Num Ritual do Sagrado Feminino Pelo Sangue Menstrual

E – por que não? – aproveitei para curar minhas feridas do patriarcado.

No dia 5 de outubro, saí cedo de casa rumo ao interior de São Paulo. Meu destino era uma pousada afastada, no meio do mato e sem sinal de celular, onde eu entraria em contato pela primeira vez com mulheres interessadas em participar de um ritual pagão Diânico. Parecia uma ideia bem maluca e, no início, um pouco assustadora. O movimento "Círculo de Mulheres" tem como objetivo quebrar alguns estigmas do patriarcado, lembrando às mulheres de sua importância e ajudando-as a se conectar com sua essência feminina. Tudo isso usando a magia e rituais simbólicos como fundamento. Irado.

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Criado por Jean Shinoda Bolen, analista junguiana feminista e ativista, o movimento fundamenta-se na Teoria do Campo Mórfico, de Rupert Sheldrake. Nela, prega-se que "uma mudança no comportamento de uma espécie ocorre quando uma massa crítica é alcançada". Assim, espera-se que círculos de conscientização e união sejam criados até que o número necessário seja atingido e, então, surja o Milionésimo Círculo para acabar com as amarras do patriarcado, promovendo a evolução cultural, social e política das mulheres que dele participam. Extremamente brisa e útil, considerando que ainda existe muito pouco por aí quando se fala de iniciativas em prol da igualdade de gêneros – ou seja, sempre tem espaço para mais. Mesmo que o pano de fundo seja, de certa forma, religioso.

Assim que cheguei, uma mulher me recebeu com a pergunta: "Você vai no encontro de mulheres, certo?". A resposta afirmativa me levou até um chalé perto da casa principal, com vista para um belo lago. Lá, encontrei as duas mulheres que guiariam a mim e outras quatro iniciantes durante o final de semana. Elas eram extremamente simpáticas e, depois de devidamente instaladas no chalé, seguimos todas para um salão perto dali. O café da manhã foi servido, e fomos instruídas a deixar nossos utensílios (algumas coisas que nos pediram via e-mail para levar) em volta de um altar, que já estava devidamente montado. No centro dele, havia uma estátua de uma deusa e alguns objetos que faziam alusão ao feminino e à vagina. Velas e outros símbolos também decoravam a mesa.

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Enfim, como começar o ritual? Eu sabia que esse círculo seguia os conhecimentos da religião neopagã Wicca, mas não entendia com profundidade o que isso significava. Ao contrário do que muitos imaginam, as bruxas wiccas não são adeptas de cultos sangrentos com sacrifícios ou rituais sexuais na vibe suruba generalizada. E priorizam a figura feminina, a Grande Mãe, compensando os séculos de domínio patriarcal na religiosidade e, portanto, na sociedade. Então, o que esperar de um rito de iniciação com duração de dois dias no meio do mato?

Tudo começou com uma conversa. Sim, uma das sacerdotisas é psicóloga; então, o método escolhido foi uma belíssima terapia em grupo. É uma sensação estranha compartilhar resumidamente seus medos e aflições com pessoas que você nem teve tempo de decorar o nome, mas é satisfatório perceber o quanto nos parecemos. A ideia era narrar alguns fatos pessoais em torno de alguns tópicos, como a primeira menstruação, a relação com a mãe, a sexualidade. Entre as dificuldades particulares de cada uma, facilmente identificamos a presença dessa força imposta pela sociedade que envergonha e machuca a mulher. E, ao colocar isso para fora, o objetivo era reconhecer em si mesma a vontade de não mais se julgar ou ser julgada por essas questões. A menstruação, por exemplo, é algo natural e a representação da fertilidade feminina, de extrema importância para o desenvolvimento e perpetuação da espécie humana. Logo, aquele momento em que você se sentiu envergonhada por ser a única menina a menstruar na terceira série – esqueça. Na verdade, é uma coisa boa!

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Todo o ritual foi acompanhado por uma música num tambor estilizado com uma estrela no centro, e algumas canções nos foram ensinadas enquanto isso.

Fizemos desenhos de representações do sagrado feminino pelo corpo com tinta vermelha e colares que seriam ungidos no final da noite. De todas as mulheres ali presentes, eu era a única que coincidentemente estava menstruada de verdade durante o ritual, o que implicava que minha consagração dos objetos deveria ser feita com meu sangue menstrual. Uma ideia deliciosa, na minha opinião.

Terminamos a noite com uma atividade mais relaxante. Em uma pequena frigideira, colocamos uma combinação de ervas com um pedaço de carvão em brasa, tipo aqueles que se usa para fumar narguilé. Você precisa usar uma saia longa, tirar a calcinha, colocar a frigideira por debaixo da saia, impedindo que a fumaça das ervas saia, e encontrar uma posição confortável. Eu, por exemplo, escolhi ficar de cócoras. É como uma incensação da vagina: você sente uma sensação de amortecimento muito gostosa e relaxante. As sacerdotisas Jussania e Julia garantiram que a fumaça chega até o útero e que alivia a dor das cólicas na região.

Enquanto nos divertíamos com a técnica, aproveitamos para esclarecer dúvidas sobre a religião Wicca e sobre o posicionamento das sacerdotisas a respeito de alguns pontos:

VICE: Cada uma de vocês comentou como chegaram nessa tradição pagã, e eu queria saber mais sobre a religião Diânica. Vocês me contam? Ela aceita homens? Ou é mais fechada para as mulheres?
Jussania e Julia: Então… Diânica, porque vem de Diana, a deusa dos bosques, a deusa primeira. Como eu citei antes, para reverenciar mais o sagrado feminino. Existem tradições diânicas que não aceitam homens, inclusive os rituais nos quais é necessária a presença de um sacerdote – não existem. Mas, por exemplo, na nossa tradição, reconhecemos que o sagrado feminino também existe no homem. Então temos sacerdotisas e sacerdotes. Mas isso vai muito de tradição para tradição. Temos tradições feministas que não aceitam presença de homens e são bem mais radicais. Quanto à homossexualidade, para nós tanto importa. O que importa é a energia da mulher e o que ela é, independente da orientação sexual de cada mulher.

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Falando nisso… e no círculo de mulheres, um transexual poderia participar?
Pois é. Essa é uma pergunta muito polêmica. Nós já paramos para pensar a respeito, porque, apesar de o sagrado feminino existir, porque todo ser humano é dual – tem as duas energias –, nós decidimos que esse círculo de mulheres trabalharia apenas com mulheres geneticamente nascidas. Por quê? Por conta de todo o histórico do patriarcado que dilacerou, praticamente sucumbiu a energia e o poder do feminino; no fim das contas, a mulher, especificamente, é a mais ferida. Seria muito importante ter um trabalho voltado para homens e transexuais, e torcemos para que esse tipo de trabalho cresça. Porque você consegue trabalhar magicamente as particularidades de cada um. Como seria trabalhar com as cicatrizes de um transexual? Não são menos importantes do que as que discutimos hoje, mas entende que são outras feridas? Isso no caso do transexual que passou a ser mulher, [pois] a mulher que passou a ser homem é geneticamente nascida fêmea. É uma questão energética também: a mulher tem uma energia diferente da masculina. Nosso foco é na energia feminina.

Quanto à religião neopagão Wicca, vocês já sofreram tipos de preconceito por não serem cristãs?
Jussania: Fui batizada na igreja católica, mas, quando me declarei e assumi que era pagã, mesmo no seio familiar, houve preconceito – não de forma agressiva, mas houve. Virei chacota, piada, aquela que não vai fazer parte do amigo secreto do Natal. O sistema é muito forte, mas, por exemplo, no meu trabalho eu tive alguns comportamentos velados quanto a isso. Mas também tem muito a ver com o lugar que você ocupa no âmbito do trabalho. Eu tive a sorte de ter uma chefia que, apesar de ser católica fervorosa, respeitava a minha opção. Mas ela chegou a me dar terços para usar, e eu, certa do caminho que sigo, respeitosamente neguei.

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Na religião cristã, temos exemplos de manipulação vinda dos níveis mais altos de hierarquia quanto aos praticantes. No paganismo, se tem conhecimento de sacerdotes que tenham feito o mesmo?
Sobre a questão ética, já li a respeito de manipulações. Sempre aconselhamos a procurar grupos sérios da prática mágica. E estar aberto para as possibilidades é importante, para não adentrar um ritual em que a insegurança seja uma constante antes mesmo de conhecer a prática.

Na tradição Diânica Nemorensis, o útero é o núcleo de poder da mulher. Qual a visão da religião em relação ao aborto?
Na nossa tradição, esse tema não está encerrado – e falamos enquanto sacerdotisas, e não como representantes da tradição. O que existe são interpretações com base em concepções que permeiam um pouco o campo religioso, daí toda a polêmica. Se formos considerar simplesmente o aspecto biológico, o feto é um ser humano? A alma é um conceito religioso. Biologicamente, o feto só passa a ser um ser humano a partir do primeiro choro (primeira respiração). Analisando friamente a situação, o que penso a respeito é: mulheres que foram estupradas e são obrigadas a carregar o fruto daquela violência têm o direito, sim, de escolha. Por que não teria? A questão social e política é de que a mulher tem pleno domínio sobre o seu corpo, logo, ela decide. O que acontece de monte são abortos clandestinos sem nenhuma assepsia, [o] que leva a mãe a óbito. Ou seja: o problema não é a prática; é, sim, a legalização. Não importa que a mulher morra? O que importa é a cria do macho? Na maioria das interpretações, o filho é visto assim.

Qual a finalidade do rito menstrual? A pergunta poderia ser: qual a importância desse rito de passagem na vida da mulher?
Existem vários movimentos que tocam fundo nesse processo de ter outros olhos quanto à menstruação e, mais especialmente, ao resgate do poder do ventre. Afinal, o sangue expelido não é sujo. A mulher precisa conhecer o seu corpo, resgatar o sagrado feminino sem banalizações - de forma séria. Nós passamos por essa realização, estudamos as questões envolvidas e trabalhamos com isso. É a libertação da mulher; se ela acreditar, ela realiza esse rito mensalmente e perceberá por si só a importância desse contato direto com seu sangue e o caminho do autoconhecimento.