FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

Dissecando Testemunhos de Um Caso de Abuso Infantil Satânico de Vinte Anos Atrás

Listamos alguns casos criminais bastante controversos entre os anos 1980 e 1990 liderados pelo sensacionalismo da imprensa, investigações policias mal conduzidas, resultando em condenações injustas nas cortes norte-americanas.
Foto via o usuário Nan Palmero do Flickr.

Matéria publicada com o The Mashall Project.

Qualquer advogado vai dizer que crianças estão entre as testemunhas mais difíceis de se entrevistar. As histórias delas mudam com o tempo, elas se contradizem facilmente durante os interrogatórios e, mesmo jurando "dizer a verdade e nada mais que a verdade", elas nem sempre entendem o que isso significa.

Essas complicações ficam claras nos casos de abuso sexual em que crianças são as únicas vítimas e testemunhas, uma dinâmica que ganhou destaque durante o surto dos chamados casos de "abusos satânicos" dos anos 80 e 90 nos EUA. Esses casos podem ter se apagado da memória coletiva, mas, da Califórnia ao Texas e a Nova York, comunidades ficaram paranoicas com contos sensacionais de sacrifício animal, assassinatos de bebês e orgias violentas, além de crianças forçadas a manter segredo por poderosas conspirações de funcionários de creches. Muitos acreditaram que os casos estavam ligados, enquanto os céticos viam essas alegações bizarras como produto de uma histeria nos patamares das bruxas de Salém.

Publicidade

Todas essas acusações começaram com crianças. Enquanto uma geração de jornalistas e advogados descobria que as vítimas tinham sido sujeitadas a técnicas defeituosas de interrogatório e a exames médicos falhos, a maioria desses casos foi derrubada, mesmo quando as crianças não se retratavam formalmente das acusações.

Mas o caso das quatro mulheres de San Antonio, condenadas por molestarem duas meninas no final dos anos 90, se estendeu por mais de duas décadas de julgamentos e anos de esforços para libertá-las. (Comecei a cobrir o caso para o Texas Observer.)

No dia 22 de abril, o caso entra em seu ato final com as duas supostas vítimas depondo no tribunal. Agora, com quase trinta anos, uma sustenta que o abuso aconteceu, mas a outra diz que elas foram coagidas a fazerem falsas acusações. Depois que cada uma for interrogada, um juiz decidirá a verdade provável – essencialmente, quem tem mais credibilidade – e fará uma recomendação ao Tribunal Criminal de Apelação do Texas. A mais alta corte criminal texana vai decidir, então, se as mulheres devem ser declaradas inocentes e receber uma indenização do Estado, ou, num cenário improvável mas plausível, mandadas de volta à prisão.

"As garotas acusaram as quatro mulheres de segurá-las, inserir vários objetos nelas e as ameaçar com uma arma."

As mulheres, cujos destinos dependem dessa audiência, foram apelidadas de "As Quatro de San Antonio" por seus defensores. Elas caem numa categoria cada vez mais visível de prisioneiros libertados por provas de condenação injusta, mas que não foram formalmente declarados "inocentes" pelos tribunais. Elas foram presas em 1994 acusadas de molestarem sexualmente as duas garotas, que, na época, tinham sete e nove anos de idade. Elizabeth Ramirez, a tia das meninas, foi considerada a líder do grupo. Em 1997, Ramirez foi sentenciada a 37 anos e meio, enquanto suas três amigas, Anna Vasquez, Cassie Rivera e Kristie Mayhugh, pegaram 15 anos cada num julgamento separado em 1998. As garotas tinham ficado com a "Tia Liz" por uma semana enquanto o pai estava trabalhando. Mayhugh era a colega de apartamento de Ramirez; as outras acusadas, amigas que frequentavam a casa.

Publicidade

As garotas acusaram as quatro mulheres de segurá-las, inserir vários objetos nelas e as ameaçar com uma arma. Ou uma faca: a história delas mudou várias vezes, embora sempre mantendo conotações de bruxaria, levando uma médica que as examinou a declarar que o crime era possivelmente "satânico". As mulheres tinham se assumido lésbicas para suas famílias – Anna e Cassie estavam namorando na época –, e a ideia de que sua orientação sexual explicava os supostos crimes foi mencionada diversas vezes durante as investigações e os julgamentos.

Em 2006, Darrel Otto, um professor recluso e ex-corredor de trenó com cães do Território Yukon, no Canadá, começou a trocar cartas com Ramirez. Ela o convenceu de sua inocência, e ele convenceu vários jornalistas e ativistas a investigarem o caso. Eles, por sua vez, convenceram um advogado, Mike Ware, a abrir novos recursos para as mulheres. Médicos revisaram os exames originais das vítimas e descobriram que a médica original, Dra. Nancy Kellog, errou em testemunhar que as garotas tinham sido certamente molestadas sexualmente; no máximo, como Kellog admitiu depois, os resultados tinham sido inconclusivos.

Na minha reportagem, descobri uma saga familiar conturbada. A família de Ramirez acredita que as vítimas foram coagidas pelo pai, Javier Limon. Ele era um ex-namorado da irmã de Ramirez e, segundo a família, tinha tentado se aproximar romanticamente de Elizabeth, muito mais jovem. Quando ela o rejeitou, Limon teria retaliado, treinando as filhas para acusá-la de abuso sexual, e as garotas acabaram envolvendo as três amigas de Ramirez também.

Publicidade

Por mais implausível que esse cenário possa parecer, alegações questionáveis de abuso infantil frequentemente aparecem em divórcios amargos e batalhas por custódia. Sites que oferecem aconselhamento para homens passando por divórcios sempre contam com seções sobre como se deve lidar com acusações de abuso.

Numa noite de 2013, em uma lanchonete, Limon negou veementemente essa versão. Ele me contou que nunca fez nenhuma proposta a Elizabeth Ramirez e que suas filhas o procuraram por conta própria para acusar a tia e suas amigas. Ele disse que fez o que qualquer pai faria: procurou as autoridades.

Limon tinha razões para ficar na defensiva. No ano anterior, em agosto de 2012, uma de suas filhas, nomeada nos registros públicos como Stephanie Limon (agora Stephanie Martinez), falou que Javier a tinha obrigado a acusar as mulheres e que ela nunca tinha sido molestada. Vinte e cinco anos depois e já mãe, Stephanie leu uma declaração para uma câmera, de uma folha de caderno no banco de trás de um carro, dizendo que seu pai a forçou, aos sete anos, a acusar sua tia querida. "Fui ameaçada", ela relembrou, "e ele me disse que, se dissesse a verdade, eu acabaria na prisão, que me levariam embora e até que me dariam uma surra". (Um filme sobre o caso deve ser lançado em breve.)

Com essa retratação e as provas médicas contestadas, Mike Ware, o advogado, convenceu um juiz e a Promotoria do Condado de Bexar de que as mulheres tinham direito a uma revisão do caso e que, enquanto isso, elas deveriam ser libertadas. Em lágrimas, as mulheres saíram da cadeia de San Antonio em novembro de 2013 para os braços das famílias. Cassie nunca tinha abraçado a neta, Liz não via o filho adolescente desde que ele tinha cinco anos.

Publicidade

Apesar de serem consideradas mártires de uma era preconceituosa por ativistas LGBT, sua situação ainda era precária. Elas aceitaram trabalhos braçais e começaram uma longa espera por uma resolução, sabendo que, se fossem oficialmente declaradas "inocentes", teriam direito a uma indenização pesada do Estado por prisão injusta. Se sua inocência fosse colocada novamente em dúvida, elas poderiam voltar à prisão. Como foi libertada antes das outras em condicional, Anna continuava no registro de criminosos sexuais. Ela não podia ficar na presença de crianças e tinha perspectivas de trabalho limitadas. Desde então, ela foi retirada do registro.

Enquanto os advogados continuam a negociar com os promotores, uma estranha dicotomia emergiu: Stephanie, a mais nova das vítimas, mantém que nunca foi molestada. Sem aceitar dar entrevistas, sua irmã mais velha – que continua oficialmente uma vítima de abuso sexual e, portanto, responde pelas iniciais V.L. nos registros públicos – nunca se retratou. Ela ainda afirma que tudo aquilo aconteceu. A retratação de Stephanie está comprometida, porque ela não se dá com o pai, Javier, e ele alega que ela só fez isso para se vingar dele. As acusações de sua irmã estão comprometidas, porque ela e Javier ainda são próximos.

No dia 22 de abril, Stephanie e V.L. devem testemunhar em frente aos advogados das quatro mulheres e dos promotores. O juiz fará, então, uma recomendação ao Tribunal Criminal de Apelação sobre as mulheres, dizendo se elas devem ser inocentadas e receber milhões* de dólares em indenização.

Publicidade

"Se a vítima se retratou, a mudança de ideia pode facilmente ser minada pelos promotores."

Mas a audiência terá ramificações maiores. Desde que os escândalos de abuso satânico esfriaram, uma batalha intelectual arrastada acontece entre advogados, jornalistas, ativistas – que, na maioria das vezes, conseguiram derrubar esses casos – e uma pequena comunidade de oponentes, cujo protesto é de que a coisa pendeu de tal modo para o lado dos réus que casos reais de abuso sexual infantil estão sendo acobertados. No livro de 2014 The Witch-Hunt Narrative, Ross E. Cheit, professor de ciência política da Universidade de Brown, argumentou: "Nos últimos 20 anos, temos descontado a palavra das crianças que podem testemunhar sobre abuso sexual"; assim, "tememos mais reagir exageradamente a casos de abuso sexual infantil do que não reagir o suficiente".

Cheit reserva uma virulência especial à jornalista Debbie Nathan, que desafiou os casos satânicos na cobertura para o Village Voice e no livro Satan's Silence. Hoje, Nathan ajuda a reavaliar condenações de abuso sexual infantil com o National Center for Reason & Justice; além disso, foi ela que ficou sabendo das mulheres de San Antonio por Darrell Otto, convencendo advogados do Innocence Project do Texas a pegarem o caso.

Apesar de o livro de Cheit não ter feito muito barulho, sua linha de argumento reflete o fato de que alguns dos condenados nos casos de abuso satânico não foram exonerados. Entre eles, está Jesse Friedman, que se declarou culpado de ter molestado crianças com seu pai numa aula de computação, em Long Island, em 1988. (Seu defensor mais conhecido, o documentarista Andrew Jarecki, faz parte do conselho do Marshall Project. Ele também é o diretor e coprodutor do documentário da HBO The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst.) Quando Na Captura dos Friedmans, filme de 2003 de Jarecki, lançou dúvidas sobre as acusações, os promotores revisaram os arquivos do caso e reafirmaram o veredito de culpa num relatório controverso de 2013.

Publicidade

E há também Fran e Dan Keller, que tinham uma creche em Austin, perto de San Antonio. O casal passou 22 anos na prisão depois de ser acusado, nas palavras do Austin American-Statesman, de "desmembrar bebês, torturar animais, profanar cadáveres, filmar orgias e servir refresco com sangue em rituais satânicos". Como as mulheres de San Antonio, os Kellers foram libertados recentemente quando o caso foi reaberto, mas não foram declarados inocentes. Os Kellers são representados por Keith Hampton, que também auxilia Mike Ware nos esforços para se exonerar as mulheres de San Antonio.

Hampton e Ware, como todos os advogados de defesa desse tipo de caso, são confrontados com os caprichos dos testemunhos infantis. Se as vítimas, hoje adultos, não se retrataram, elas podem estar confiando em memórias falsas, ou o abuso pode mesmo ter acontecido, mesmo que as histórias mais horríveis sejam inventadas.

Se a vítima se retratou, a mudança de opinião pode ser facilmente ser minada pelos promotores. Em outubro de 2012, uma jovem de San Antonio tentou exonerar seu pai. Quando criança, ela testemunhou que ele tinha abusado dela, mas agora alegava que isso nunca tinha acontecido. Como no caso das Quatro de San Antonio, ela contava haver sido pressionada por outro familiar por motivos escusos. Depois de seu testemunho, a promotora Mary Beth Welsh falou aos repórteres: "A questão se volta para essa testemunha e se ela estava sendo sincera na época – ou se está sendo sincera agora". Um juiz de San Antonio considerou o depoimento dela crível, mas o Tribunal Criminal de Apelação do Texas se recusou a anular a sentença do homem, argumentando que a retratação não era suficiente para provar sua inocência.

Os depoimentos de Stephanie Limon e V.L. vão apresentar um microcosmo dessas questões sobre testemunho infantil e memória, que nos assombram uma geração após os casos de abuso satânico. São duas testemunhas com convicções inabaláveis – e uma delas está errada.

Essa história foi coberta por Maurice Chammah para The Marshall Project, uma organização sem fins lucrativos focada no sistema judicial e criminal dos EUA. Assine a newsletter deles ou siga o The Marshall Project no Facebook e no Twitter.

*O Texas paga as maiores indenizações dos EUA aos condenados injustamente. Em 2009, o Estado aprovou uma lei definindo US$ 80 mil por ano de prisão. As mulheres de San Antonio receberiam coletivamente cerca de US$ 4,7 milhões.

Tradução: Marina Schnoor