Como o julgamento por indecência de uma revista de contracultura expôs uma rede de corrupção policial em Londres
Capa da edição 15 da revista OZ.

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Como o julgamento por indecência de uma revista de contracultura expôs uma rede de corrupção policial em Londres

Nos anos 70, a OZ convidou leitores menores de 18 anos para editar uma revista com fotos de mulheres nuas e propagandas de brinquedos eróticos. O Esquadrão de Publicações Obscenas não curtiu a ideia.

Em 1970, depois de apenas três anos nas prateleiras, a OZ – uma revista de contracultura fundada em Sydney, na Austrália, e que funcionava em Londres, na Inglaterra – foi acusada de perder o contato com seus leitores mais jovens. A melhor maneira de remediar isso, segundo a equipe editorial, foi colocar a seguinte propaganda na edição 26:

"Nós da OZ estamos nos sentido velhos e entediados, então convidamos qualquer leitor de menos de 18 anos para editar a edição de abril. Você vai desfrutar de liberdade editorial quase completa. A OZ pertence a você."

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Vinte alunos do colegial participaram da edição da revista de maio de 1970, conhecida como a infame " School-kids OZ". Essa equipe editorial temporária incluía Vivian Berger, 15 anos, que – em seu perfil nas primeiras páginas da revista – admitia que começou a fumar aos 9 anos e usou drogas pela primeira vez aos 11. Para a edição, Berger criou uma paródia com o famoso Urso Rupert ao colar a cabeça do personagem infantil em desenhos censurados de Robert Crumb. O personagem de Mary Tourtel mostrava uma grande ereção que tentava introduzir na virginal "Gipsy Grandma".

Talvez por causa da combinação de "garotos" no título e propagandas de "massageadores vibratórios", sungas de couro e revistas pornôs suecas, a edição School Kids não vendeu particularmente bem e foi logo esquecida pela equipe da OZ. Mas dois meses depois, em julho de 1970, a revista recebeu um lembrete quando o Esquadrão de Publicações Obscenas invadiu seu escritório em Holland Park. O fundador australiano da OZ, Richard Neville, e os coeditores Jim Anderson e Felix Dennis, foram acusados de produzir uma revista que "debochava e corrompia a moral de crianças, instigando e implantando desejos pervertidos na mente desses jovens".

Geoffrey Robertson, na época um bolsista australiano da Rhodes, se ofereceu para ajudar o time de defesa da OZ, enquanto John Mortimer – um famoso advogado e escritor, também pai da atriz Emily Mortimer – concordou em defender a revista no tribunal. Germaine Greer, uma velha amiga de Neville de Sydney, estava publicando The Female Eunuch nos EUA, mas se ofereceu para voltar e ajudar no caso. Robertson apontou que o testemunho dela poderia não ajudar muito no tribunal, já que ela tinha permitido recentemente que seu ânus fosse fotografado para a Suck, uma revista underground de Amsterdã, na Holanda.

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A contracapa de uma edição da OZ, promovendo um evento beneficente para ajudar a pagar os custos do julgamento por obscenidade.

No ano seguinte, durante o julgamento em Old Bailey, o promotor Brian Leary parecia obcecado com a ereção do Urso Rupert. Em certo ponto, ele leu o editorial de Jim Anderson que descrevia Vivian Berger como um "gênio juvenil". Leary descreveu o processo simples de colar o trabalho de dois artistas e perguntou ao editor da OZ: "Onde está a genialidade disso?" Anderson tentou explicar: "Bom, acho que na justaposição de duas ideias, o símbolo de inocência da infância…" Leary interrompeu: "FAZENDO O URSO RUPERT TRANSAR?"!

Alguns dias depois, Leary, ainda preocupado, perguntou a uma testemunha, o acadêmico Edward de Bono: "Qual você acha que era o efeito pretendido ao equipar o Urso Rupert com um membro de tamanho tão grande?"

"Não sei o suficiente sobre ursos para saber as proporções exatas", respondeu Bono seriamente. "Imagino que o órgão fica escondido sob os pêlos."

O juiz Argyle – que, no começo do julgamento, parecia achar que a revista OZ ameaçava o destino da civilização ocidental – interrompeu outra testemunhada da defesa, o cantor de jazz George Melly, perguntando o que ele queria dizer com a palavra "cunnilingus". Melly explicou: "Chupar. Lamber. Ou como dizíamos na minha época na marinha 'fazer iodelei no cânion'".

Mais tarde no julgamento, Leary, ainda tendo problemas com algumas palavras na OZ, perguntou a Neville: "A capa da revista retrata ou não uma série de poses lésbicas?"

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"Sim, retrata três ou quatro moças se dando prazer", respondeu Neville.

Leary apontou então para uma cinta-caralha usada por uma das mulheres. "Acho que isso é o que chamam de consolo."

"Hum, acho que não", apontou Neville, onde o juiz Argyle interrompeu: "Acho melhor chamarmos isso de 'imitação de pênis masculino'".

"Meritíssimo", respondeu Neville, "Acho que a palavra 'masculino' é desnecessária aqui."

Richard Neville admitiu depois que ficou bastante satisfeito com seu comentário – mas isso não ajudou em nada com o fato de que aquelas imagens objetificantes de mulheres eram continuamente usadas na capa e dentro da OZ.

Marsha Rowe, cofundadora da revista feminista Spare Rib , que testemunhou no julgamento da OZ, apontou que as mulheres que trabalhavam na revista "faziam o trabalho de escritório e produção, não o trabalho editorial". Só quatro dos vinte estudantes que trabalharam na OZ "School Kids" eram garotas, e uma delas, Berti, de 15 anos, aparecia no pôster central como "Chave de Cadeia do Mês".

Depois que o juiz Argyle terminou seu resumo, fazendo bem pouco para esconder seu desprezo pelos réus, o júri se retirou para considerar o veredito. Em certo ponto, os jurados perguntaram o significado exato de "indecência". Argyle respondeu: "Se uma mulher tira a roupa numa praia lotada, consideramos isso indecente neste país". Depois que quatro horas, e armado com essa explicação, o júri considerou os réus culpados.

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"Levem eles daqui!", gritou Argyle.

Uma semana depois, os três acusados – agora com as cabeças raspadas, cortesia da prisão Wandsworth – voltaram para receber a sentença. Os três receberam 15 meses de prisão cada, uma sentença muito criticada por alguns comentaristas, que argumentaram que era fácil achar pornografia muito mais pesada que a das páginas da OZ nas lojas do Soho.

Esse tipo de discussão trabalhou a favor da equipe da OZ. Quando o caso foi para a apelação, o Chefe de Justiça Lorde Widgery, deu a um funcionário 28 libras e o mandou para o Soho para comprar a pornografia mais pesada que encontrasse. As imagens da OZ empalideceram diante do que ele trouxe de volta. Por causa disso – e porque o juiz Argyle tinha fornecido "desorientação substancial" ao júri – as condenações foram anuladas.

Reginald Maudling, secretário da Câmara Conservadora, trouxe o inspetor-chefe George Fenwick, do Esquadrão de Publicações Obscenas, e pediu que ele explicasse como as sex shops do Soho estavam operando com impunidade enquanto eles continuavam a invadir revistas "alternativas" relativamente inócuas. Fenwick culpou a publicidade do julgamento da OZ, mas não tinha uma resposta real, então o secretário Maudling iniciou um grande inquérito de corrupção dentro da Polícia Metropolitana.

Essas investigações – com ajuda do novo comissário da Met, Robert "Sr. Limpo" Mark – revelaram uma corrupção sistêmica "numa escala que carece de descrição" no coração da força policial de Londres, com os investigadores descobrindo que muitos comerciantes de pornografia do Soho faziam pagamentos semanais para alguns dos oficiais mais antigos do Reino Unido. Em 1976, George Fenwick foi sentenciado a dez anos de prisão.

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Mesmo tendo ganhado leitores com a publicidade do julgamento, a OZ viu sua popularidade minguar nos 18 meses seguintes e, em novembro de 1973, com uma dívida de 20 mil libras, a revista fechou de vez.

Todas as edições da OZ estão disponíveis online, por meio da University de Wollongong.

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Tradução: Marina Schnoor.

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