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Reconhecimento facial e redes sociais monitoradas: as armas da ABIN contra a ameaça do Estado Islâmico ao Brasil?

Ao revelar ameaça do EI ao país em feira internacional de segurança, diretor de contraterrorismo da ABIN declara monitoramento de suspeitos enquanto empresas apresentam suas armas tecnológicas.
Todas as fotos por Fábio Teixeira.

"A próxima palestra não poderá ser filmada nem fotografada." Como não falaram nada a respeito de áudio, mantive o gravador ligado. "É um tema árido no nosso país, nós da área às vezes nos perguntamos se o tema está dentro da agenda de preocupações da sociedade e do governo brasileiro, e muitas vezes a resposta é não". Foi assim que Luiz Alberto Sallaberry, diretor de contraterrorismo da ABIN, começou sua apresentação intitulada "Terrorismo Internacional: Questões de interesse para o Brasil e para as Olimpíadas Rio 2016" no V Seminário de Segurança da LAAD, a grande feira de armas que ocorre todo o ano no Rio Centro. A cada ano o tema sofre revezamento entre edições "defense" (maior, com mais presença de fabricantes de armamento e veículos de guerra) e "security" (menor, e mais focada em soluções tecnológicas e vigilância, que foi o caso deste ano).

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Comandante da PM do Estado de São Paulo numa das apresentações do V Seminário de Segurança LAAD. Todas as fotos por Fábio Teixeira.

Os primeiros slides da apresentação mostravam uma linha do tempo, com algumas datas em destaque: o atentado contra a delegação israelense nas Olimpíadas de 1972, os atentados das Torres Gêmeas em 2001, o atentado na maratona de Boston em 2013, os protestos contra a Copa do Mundo em 2014. Finalmente foi apresentada a principal ameaça aos Jogos Olímpicos de 2016: os "lobos solitários" do Estado Islâmico. A respeito da foto de um black bloc em destaque no ano de 2014, o araponga foi enfático: "grupos anti-sistêmicos, sejam eles anárquicos ou neonazistas, não são considerados grupos terroristas, embora suas táticas às vezes lembrem o terrorismo. Os black blocs tem de ser tratados na esfera criminal, como a policia tratou aqui no Rio, pois ninguém pode destruir patrimônio público ou privado, nem cercear o direito de ir e vir. Agora, a partir do momento que um grupo dentro do black bloc passa a receber financiamento internacional para atingir alvos políticos, aí a coisa muda de figura e pode ser considerado terrorismo, mas isso não aconteceu no Brasil. Em alguns lugares no mundo grupos anti-sistêmicos realizaram ações que fogem do padrão de ação anarquista, como no Chile aonde bombardearam uma estação de metrô, nesses casos eles estão sendo tratados como terroristas". Sallaberry ainda elogiou a nova lei antiterrorismo, principalmente por preservar os movimentos sociais, mas ressaltou que a lei, independentemente de ter podido ser melhor ou pior, "é muito importante que a gente tenha um tipo penal especifico para prevenção e criminalização do terrorismo".

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O motivo tornou-se óbvio no decorrer da palestra, e embora houvesse pedido sigilo, a própria assessoria de imprensa da LAAD soltou na manhã seguinte uma pauta reproduzida por vários veículos sem mudar uma virgula: o Estado Islâmico teria decretado que o Brasil seria o próximo alvo de sua guerra santa, e a ABIN já estaria monitorando indivíduos radicalizados no Brasil. A matéria, que abria com a reprodução de um tweet de novembro do ano passado do famoso decapitador do ISIS, Maxime Hauchard, já soava como piada pronta: a inteligência brasileira teria elevado o grau de alerta antiterrorismo baseado num post público de seis meses atrás.

Mas piora: a apresentação da LAAD exibiu o tweet, de novembro do ano passado, em que Maxime Hauchard teria dado a ordem de ataques no Brasil, através da frase em francês "Brésil, vous êtes notre prochaine cible" que traduz-se para "Brasil, você é nosso próximo alvo". Como não foi permitido o registro ou acesso à apresentação, a nota da assessoria de imprensa da LAAD reproduzida a exaustão ontem foi enviada sem imagem. Os principais jornais e portais do país, ávidos em publicar a matéria o quanto antes, cometeram um descuido infelizmente cada vez mais comum na era do jornalismo digital: reproduziram o tweet de um perfil falso, em que o terrorista chamaria o Brasil de um "país de merda". O portal boatos.org compilou prints dos portais que pagaram esse mico. O perfil real de Maxime foi deletado pelo twitter, após denuncia de centenas de milhares de internautas mais perspicazes que a maioria dos veículos de comunicação do país.

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Veículo blindado leve, um candidato a caveirão, convenientemente exposto em frente ao cenário de uma favela.

No entanto, numa visita pelos estandes da feira, as coisas ficavam mais claras. Numa visão mais generalizada, mais do mesmo que vemos todos os anos, um estande trazia um veículo blindado leve, candidato a caveirão, convenientemente exposto em frente ao cenário de uma favela. Pessoas faziam fila para fazer selfies com armas, um fabricante brasileiro mostrava uma solução ecológica para lidar com o acumulo de projéteis em estandes de tiro e representantes comerciais davam respostas evasivas do tipo "isso tudo é muito sensível do ponto de vista de inteligência" ou "nosso contrato mantém em sigilo nossos clientes" toda vez que eu perguntava se suas ferramentas no campo de vigilância e espionagem estavam em utilização no país.

O software Full Face pode rodar num centro de controle ou dispositivo móvel do agente de segurança, e ser usado para mapear rostos e identificá-lo em bancos de dados do estado ou das redes sociais.

Deu pra sacar aí que a grande tendência deste ano são essas soluções em reconhecimento facial, varredura de mídias sociais, interceptação e extração de dados de celular e tudo isso ao mesmo tempo agora. A Motorola Solutions é uma das empresas focadas nessas novidades. Ainda que nenhum funcionário da empresa tenha assumido, as assessoras de imprensa me convidaram para um evento a ser realizado em julho no próprio Centro de Comando e Controle Integrado do Estado do Rio de Janeiro, aonde serão apresentadas as novidades da Motorola Solutions para as Olimpíadas. O próprio release da feira, em suas sugestões de pauta, dava a entender que a empresa já estaria fornecendo suas soluções para os jogos. Uma das novidades em questão seria um aparelho que combina telefone celular e radio, e que fixado ao colete do policial funcionaria como uma "body câmera", registrando e transmitindo para um centro de controle vídeo, GPS e outros meta-dados relativos a movimentação do agente. O aparelho é parte de toda uma filosofia da empresa que visa trazer a banda larga e a "big data" ao universo das missões críticas, tradicionalmente restrito à comunicação em rádio. O gerente de vendas Alexandre Giarola explicou que "isso significa você criar a noção de contexto para tomada de decisões, porque antes você conversava com sua operação via rádio, agora não, a posição de tomada de decisão e de operação vai ter múltiplos inputs como câmera, mapa, dados coletados em mídias sociais e aplicações rodando como o Full Face, que é um reconhecimento facial. Através de keywords, o programa vai cruzando vários dados e apresenta para o centro de comando e controle aonde pessoas vão tomar decisões, com a missão primordial de garantir a vida de cidadãos e agentes da lei, em situações aonde segundos podem salvar vidas". O engenheiro André Fadel, também da Motorola Solutions, dá mais detalhes técnicos do funcionamento das ferramentas. "O CommandCentral Aware Social, varre constantemente a internet em todas as publicações públicas de Twitter, Facebook, Instagram etc, ele vai filtrando e postando esseas postagens geolocalizadas num mapa. Você define os filtros — se você escolher, por exemplo, narcóticos, o software já tem dentro da base de dados dele um dicionário que inclui várias palavras chaves, incluindo gírias como 'banza, erva, pó'. Tudo isso ele vai filtrando e vai reportando geolocalizado, então de repente você vê uma grande concentração em algum local você já sabe que tem alguma coisa acontecendo ali. Outro bom exemplo são as brigas de torcidas, marcadas pela internet e as manifestações black bloc." Se o foco for narcóticos, pode acabar sobrando para os cultivadores de maconha que dão mole de postar fotos de seus cultivos sem apagar a geolocalização dos metadados. Talvez eles também conseguissem grampear uns desses traficantes cariocas que manjam muito de mídias sociais.

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Outro recurso apresentado pelo engenheiro foi o BriefCam Syndex. "Digamos que você tem uma ocorrência aonde você sabe que o suspeito está vestido de vermelho e foi naquela direção, então esse sistema pega as câmeras daquela região e sintetiza, por exemplo, uma hora de vídeo em três minutos, mostrando toda as pessoas de vermelho que passaram em frente às câmeras caminhando nessa determinada direção e em cima dela o horário em que ela passou, de maneira que você muito mais fácil identifica o que você está procurando, e você pode filtrar por tamanho, veiculo, velocidade…"

Tela do software da NEC de análise em tempo real de ataques cibernéticos (a tela mostra apenas 1%).

A japonesa NEC fornece soluções em Cybersecurity para a Interpol e vários países. Um de seus softwares mostra num mapa todos os cyberataques que acontecem no mundo em tempo real. O mapa estava setado para mostrar apenas 1% do que estava rolando, e já era uma quantidade impressionante. A maioria dos ataques saia da Ásia rumo aos EUA, mais especificamente a costa noroeste, "provavelmente a Microsoft ou a Boeing", segundo o Leonardo Fonseca Netto, representante da NEC com quem conversei. "Estamos trazendo também o NeoFace Watch, um sistema de reconhecimento facial que já estamos disponibilizando para alguns clientes no Brasil. É um nicho que está crescendo na segurança pública. Nós temos uma ferramenta de verificação do reconhecimento facial para você procurar determinada pessoa não só em banco de dados como em redes sociais como o Facebook ou mesmo na Deep Web. Ele pega a foto e transforma num código digital de matrizes e vetores, então varre a rede atrás daquela codificação procurada. O software é capaz ainda de rastrear tatuagens. Ainda que não exista biometria para tatuagens, ele a interpreta como se fosse um objeto e a rastreia."

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O anúncio do diretor da ABIN seria para justificar o investimento nesse setor de vigilância que oferece tanta demanda? Ou a demanda é resultado de uma procura? Segundo o próprio, a agência vem investindo cada vez mais em contraterrorismo desde os Jogos Pan-Americanos de 2007, e que essa preocupação não vai terminar no dia seguinte aos Jogos Paraolímpicos de 2016. Ainda que nunca houve um atentado em território brasileiro, a presença de radicais islâmicos no país, mais especificamente na região da tríplice fronteira, não é novidade. Segundo uma reportagem do Globo semanas após os atentados de 11 de setembro de 2001, homens da CIA, do FBI e do DEA desembarcaram numa base secreta no Paraguai e se dirigiram a Cidade do Leste e Foz do Iguaçu com o objetivo de investigar e prender indivíduos que ofereceriam apoio logístico e financeiro a grupos como o Hamas, Hezbollah e Al Qaeda. Essa e outras histórias são contadas com detalhes no capitulo 14 do livro " Assalto ao Poder" do jornalista Carlos Amorim. Outra história, relatada no livro é a do Marroquino Gueddan Abdel Fatah, preso em 2001 acusado de assaltar um táxi em São Paulo. Ele teria tentado alertar as autoridades brasileiras, norte-americanas e israelenses a respeito de "duas explosões" que ocorreriam nos EUA. Só foi levado à sério depois da queda das Torres. Interrogado então por autoridades brasileiras, afirmou que teria escutado sobre os planos dos atentados numa mesquita em Foz do Iguaçu. Para quem se interessar no assunto, este artigo do sociólogo e historiador argentino Mariano Cesar Bartolome, doutor em relações internacionais, se aprofunda no caso e em várias outras atividades ligadas ao extremismo islâmico na região da tríplice fronteira desde a década de 1970.

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Exibindo uma imagem retirada de alguma mídia social que mostrava a bandeira do Brasil com a lua crescente e no centro e a frase "não há outra divindade a não ser Allah" escrita em árabe, Sallasberry procurava não generalizar nem criar preconceitos sobre os praticantes da fé islâmica. Ainda assim admitiu estar monitorando uma comunidade salafita sunita em que alguns indivíduos teriam feito o "Bay'ah", ou juramento, ao califado do Estado Islâmico. "Eu não tenho nenhuma evidencia definitiva de que algum brasileiro tenha sido recrutado para fazer ações de radicalização no Iraque ou na Síria, mas eu tenho indícios de pessoas que moram no nosso pais que se autoradicalizaram e fizeram o juramento pela internet." Como é sabido, o EI investe muito em propaganda, tendo um nível de qualidade sem precedentes em sua publicidade, e muitos de seus recrutadores atuam pela rede mundial de computadores. Diferente da Al Qaeda, que operava com ações espetaculares, o EI tem adotado a estratégia dos lobos solitários: indivíduos que muitas vezes jamais conheceram outro militante pessoalmente, mas que fizeram o juramento ao califado, e atuam de forma discreta e simples, no maior estilo "faça-você-mesmo". Praticamente batendo três vezes na madeira, o araponga concluiu que certamente os Jogos Olímpicos são dentro deste contexto o evento aonde "a ameaça de um atentado terrorismo se elevou sem precedentes desde o descobrimento até hoje", nessas condições, "é tão grave cair um World Trade Center como matarem um Usain Bolt, e eu não preciso de uma estrutura ou planejamento com o nível de sofisticação que a Al Qaeda usou no WTC".

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Ferramenta da Cellebrite permite fazer extrair todas as informações, inclusive arquivos e mensagens deletadas, de um celular aprendido já é utilizado pela PF brasileira.

Um dos maiores desafios do monitoramento da ABIN está no fato que no Brasil, assim como no resto do mundo, há um limitador do seu trabalho que são as garantias e direitos individuais das pessoas. "Em países aonde essa ameaça é mais firme ou frequente, as pessoas abrem mão de alguns desses direitos e garantias individuais para aumentar a segurança coletiva. Eu não estou falando que isso é certo ou errado, mas o terrorismo não é um fenômeno do nosso dia a dia, que está mais ligado as nossas carteiras e as bolsas das senhoras." Então citou o exemplo de Tel Aviv, aonde segundo ele as pessoas andam tranquilamente exibindo joias ou "dinheiro saindo do bolso" sem medo de assalto, mas tem receio de se aproximar de latas de lixo com medo de bombas. É sabido que entrar e sair de um restaurante, shopping center, estação de trem ou aeroporto em Israel, é impossível sem submeter-se a revistas e muitas, muitas perguntas. O diretor fez questão em repetir que a ABIN age "estritamente dentro dos preceitos legais que o estado democrático brasileiro define sua atuação, diferente do que existe no imaginário das pessoas."

Estande da PMERJ exibia uma peça de museu, uma PATAMO. Faltou a Joaninha.

Questionado pelo fato de que os autores dos atentados de Bruxelas já estavam sendo monitorados pelo serviço secreto norte-americano, ele justificou: "mesmo que a gente saiba como serviço de inteligência que por exemplo cinquenta pessoas fizeram a radicalização, os nossos meios são finitos, então quando tem análise de riscos a gente define, desses caras que foram radicalizados, quais são os com capacidade maior para fazer determinado tipo de ação, mas é impossível eu ter 100% de segurança nessa área". Em outro momento de desabafo de sua palestra, Sallasberry contou que durante um de seus vários cursos e intercâmbios, conversou com um membro de uma agência estadunidense, que lhe confessou que, "o World Trade Center não caiu por falta de informação, e sim por falta de cooperação, por conta das vaidades pessoais e institucionais, o que é muito grave, as informações estavam disponíveis mas não foram compartilhadas". Segundo o diretor, o combate ao terrorismo só será possível com a cooperação não só das forças de segurança pública e defesa, como da imprensa, parlamentares, e setores como aeroviários, bares, restaurantes e hotéis que estarão mais expostos as ameaças. Não tive como não lembrar do comentário que ouvi horas antes no estande da PMERJ, enquanto assistia a exibição de um vídeo feito pela policia numa manifestação de 2013 em que cobri. O vídeo foi feito desde um helicóptero voando bem alto, e dava pra ver com surpreendente nitidez e riqueza de detalhes os black blocs quebrando as agências bancárias ao redor da Cinelândia. Um policial ao meu lado lamentava e dizia que todo esse caos poderia ter sido evitado ou minimizado se houvesse maior cooperação entra as polícias, e realmente o "tempo de resposta" da polícia naquela noite foi exageradamente demorado. Se eles estavam vendo tudo lá de cima, e tanto o comando geral quanto o Batalhão da Choque não ficam muito longe da Cinelândia, a gente só pode chegar a duas conclusões: ou a PMERJ, mesmo com todos seus brinquedos de última geração, é extremamente incompetente; ou alguém lá de cima deixou o caos rolar para depois usar as imagens e o saldo da destruição para voltar a opinião pública contra "os mascarados". Se não for nem um nem outro, certamente é um tanto das duas situações.

Há quem diga que os atentados de Onze de Setembro foram de autoria dos próprios norte-americanos, mas eu sempre achei isso uma desculpa esfarrapada de quem não consegue assumir que uns caras saíram de um deserto do outro lado do mundo, aprenderam a pilotar aviões e derrubaram um dos símbolos do imperialismo ianque. A teoria conspiratória mais provável é a de que os ianques soubessem dos ataques, e numa fria e calculista análise de risco, "deixaram rolar" para fazer passar o Patriot Act e dessa maneira restringir liberdades e direitos individuais, justificar o uso de tortura em interrogatórios, justificar operações militares ilegais e sobretudo desenvolver e vender muitos e muitos brinquedos caros como os que vemos todos os anos na LAAD, para que os países continuarem guerreando, seja com balas ou bytes.

Ou isso, ou essas agências e países, assim como a PMERJ, não estão sabendo usar os seus brinquedos caros ou, pior, mas menos provável, os terroristas são muito mais espertos que todos nós.

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