​Para onde marcha a legalização da maconha no Brasil?
Foto: Matias Maxx

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Drogas

​Para onde marcha a legalização da maconha no Brasil?

Desde a primeira Marcha da Maconha em 2002, o movimento fumeta cresceu significativamente. Conversamos com um monte de gente sobre qual o futuro do debate das drogas no país.

Reza a lenda que nos anos 70, um grupo de fãs do Greateful Dead auto intitulado "The Waldos" que estudava numa high school em San Rafael, California, cultivou o hábito de queimar um baseado após as aulas, precisamente às 16h20, ou 4:20 segundo a grafia inglesa. O código 420 foi rapidamente assimilado pela incipiente cultura canábica da época e atravessou o mundo e as décadas estampando camisetas e inúmeros produtos, batizando de canções a coffee-shops. Mais recentemente, a data de 20 de Abril (4/20 na grafia yankee) passou também a ser comemorada como o "Dia Mundial da Maconha", inspirando inúmeros "fumatos" ao redor do mundo. Aqui no Brasil não é diferente e várias concentrações ao ar livre de gente de olho vermelho e dedo amarelo foram marcados de forma espontânea pela internet.

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No entanto, o dia mais significativo no que tange à luta pela legalização da maconha e a autoafirmação enquanto maconheiro aqui no Brasil ainda é a Marcha da Maconha, que ocorre em quase todos os estados do país, em diferentes datas, a maioria em maio. Realizada no país desde 2002 no Rio de Janeiro, em sintonia com então cem outras cidades pelo mundo. Verdade seja dita, o maior feito da marcha até hoje foi justamente garantir a sua realização, com a vitória em no julgamento da ADPF187 pelo STF em 2011.

Até então não só a marcha como qualquer manifestação politica, cultural ou mesmo jornalística em prol da legalização do jererê poderia ser censurada ou reprimida por ser interpretada como "apologia às drogas", conceito que caiu por terra com a sentença de que a Marcha da Maconha é sim constitucional. Mesmo que, infelizmente, ainda testemunhemos algumas aberrações jurídicas, de lá pra cá o movimento cresceu muito, não só com a explosão de blogs, revistas e bandas de rap dedicadas ao banza, como a inclusão da discussão sobre uma nova política de drogas dentro de movimentos sociais e partidos políticos que tradicionalmente tratavam o tema como tabu. Ainda assim, os maiores avanços no processo de regulamentação da maconha vieram no aspecto medicinal.

Marcha da Maconha em Belo Horizonte, Minas Gerais. 2015. Foto: Matias Maxx

O antropólogo Marcos Veríssimo, defendeu em 2013 sua tese de doutorado, Maconheiros, fumons e growers: um estudo comparativo do consumo e do cultivo caseiro de maconha no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Um estudo antropológico e contrastivo entre o que se convencionava chamar "cultura canábica" em ambas as cidades. Perguntei o que mudou no cenário desde que ele fez sua pesquisa e, por email, ele me respondeu o seguinte:

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"Os grupos que militavam em prol da 'legalização' da maconha acionavam palavras de ordem e valores (não só, mas principalmente nas marchas da maconha), que giravam predominantemente em torno da ideia de que era imperioso legalizar a maconha como forma de interferir contra o que se convencionou chamar de 'criminalização da pobreza'. De fato, no Rio de Janeiro, a repressão aos mercados de drogas postas na ilicitude é seletiva, e atinge, sim, predominantemente, pessoas que residem em áreas onde os grupos criminosos que dominam este mercado dominam o território, não raro, de maneira despótica e violenta. O morador de favela que tem sua marmita remexida por policiais no caminho do trabalho é um exemplo disso, mas não o mais dramático. Contudo, pelo que se vê empiricamente, nem o judiciário e nem o legislativo brasileiros se sensibilizaram suficientemente com a 'criminalização da pobreza' para efetivamente promoverem mudanças significativas no ordenamento legal brasileiro no que se refere a plantios, usos e mercados da maconha. Quase sempre oriundos de camadas mais abastadas da sociedade, ao mesmo tempo que socializados com valores hierárquicos, nunca pareceram decisivamente se sensibilizarem com o sofrimento dos pobres. Nesse sentido, a entrada, no ativismo antiproibicionista, do lado dos conhecidos 'maconheiros', de mães de filhos que sofrem, de crianças que não se desenvolvem, penso seriamente que o quadro muda em relação ao que pensam operadores do direito e legisladores, dando novas possibilidades e esperanças para aqueles que há anos militam pela legalização da maconha. Tornam-se valores mais fortes. Juízes, deputados, senadores, têm mãe, filhos, irmãs, esposas, etc. Por isso, penso que acompanhar os próximos movimentos neste campo do ativismo é olhar para a história sendo feita."

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O campo a que Veríssimo se refere é a do uso medicinal. Recentemente, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) foi obrigada por ordem judicial a regular a importação, e prescrição de canábis e derivados para qualquer doença. O novo vilão da história passa a ser o Conselho Federal de Medicina, que permite a prescrição apenas para crianças ou adolescentes portadores de epilepsia refratária, e ainda assim apenas por três especialidades médicas, psiquiatras, neurologistas e neurocirurgiões. Para completar, o processo de importação dos medicamentos a base de maconha é burocrático e altamente custoso. Já existem alguns casos de famílias que conseguiram o acesso ao medicamento pelo SUS. Num dos casos, em São Paulo, a Secretaria de Saúde se negou a importar o remédio e só o fez após ser expedida uma ordem de prisão ao secretário de saúde por desrespeitar ordem judicial.

Visando auxiliar os usuários medicinais, um grupo multidisciplinar do Rio de Janeiro formou há um ano a Abracannabis, um grupo bem heterogêneo de médicos, cientistas, professores, antropólogos, sociólogos, psicólogos, artistas, engenheiros e advogados, todos trabalhando juntos para propor soluções para as questões de política de drogas no Brasil, com foco na questão da maconha medicinal. Seu trabalho mais objetivo é desenvolver um cultivo medicinal para facilitar as pessoas a terem acesso a maconha medicinal a um preço justo e com redução de danos

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O engenheiro Pedro Zarur, presidente da associação explica: "estamos planejando fazer um curso de cultivo de maconha medicinal para pacientes e mães de pacientes. Estamos conversando bastante com professores universitários que tem participado da Abracannabis como colaboradores e associados e que tem dado um apoio bem grande. E buscando parcerias com institutos de pesquisa no intuito de fomentar pesquisas." O advogado Ricardo Nemer, também da Abracannabis, lembra que muitos pacientes no desespero adquirem a maconha no mercado negro, "uma maconha de péssima qualidade, um produto que na maioria das vezes não tem nada de medicinal. Então a associação se dispõe a ensinar aos pacientes o que é maconha medicinal e no que isso vai refletir na vida dele. A partir do momento em que ele decidir plantar a maconha dele, ele tem que saber que ele esta descumprindo um preceito legal, então explicamos que ele está em um estado de necessidade, que ele tem que ter uma receita, buscar a autorização, a regulamentação e o direito via judicial. A gente não incentiva um cultivo desordenado, a gente cultiva a cidadania, que a pessoa busque o direito dela de utilizar a maconha medicinal."

Infelizmente, por mais evidências que existam no mundo sobre a eficiência da maconha no tratamento de várias doenças, conseguir uma receita no Brasil ainda é arriscado, para o médico. Segundo o advogado Emilio Figueiredo o profissional que receitar maconha para um paciente fora das especificações da CFM pode ser denunciado ao conselho regional e ter sua licença cassada. Caso isso aconteça, seu recurso será julgado pelo próprio CFM, que já deixou bem claras suas posições restrititvas.

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Emilio luta pelo direito de usuários de maconha há anos, integrando a comissão jurídica do Growroom, e na data de hoje lança a Rede Juridica pela Reforma da Politica de Drogas, uma rede de advogados e juristas que buscam uma mudança na política de drogas e auxiliam pessoas afetadas pela politica proibicionista. Ele também faz parte da organização do ENCAA, o I Encontro Nacional Antiproibicionista, que vai acontecer do dia 24 a 26 de junho em Recife.

"Um dos projetos do encontro é apresentar uma regulação sobre todas as drogas, uma regulação da política de drogas no Brasil. Então, para realizar essa politica, primeiro vamos perguntar a todos os participantes qual o mundo ideal, o que você acha ideal no sentido da regulação das drogas. Questionar quais as boas práticas que acontecem hoje no mundo, como por exemplo a politica de drogas sintéticas na Nova Zelândia, a redução de danos na Suiça e em Portugal, a regulação da maconha no Uruguai, ou nos estados norte americanos, a Espanha com seus clubes canábicos… Também queremos olhar para o futuro. A capacidade do homem em criar substâncias que alterem a consciência é infinita, então o que que a gente pode fazer de boa prática para as drogas que ainda vão surgir?".

Foto: Matias Maxx

De cinco anos pra cá, desde o julgamento no STF, o movimento antiproibicionista vem crescendo, segundo a ativista Rebeca Lerer do coletivo da Marcha da Maconha de São Paulo. "O que começou com um movimento mais celibatário da classe média de usuários vem se diversificando. Entraram outros grupos que discutem outros aspectos da política de drogas e da regulação de outras substâncias, não só da maconha. Mas a Marcha da Maconha continua sendo o grande momento de mobilização popular sobre essa pauta no Brasil. Infelizmente, o debate politico ainda está muito restrito a técnicos no assunto, pesquisadores, acadêmicos e intelectuais de ONGs, universidades ou centros de pesquisa. É uma pauta que ainda não foi apropriada pelo conjunto da sociedade. Acho que a grande virada vai se dar quando esse movimento se tornar de fato um movimento social que trabalhe todas as dimensões da guerra as drogas, como a questão do encarceramento em massa, o racismo que é o fator que define se você é usuário ou traficante, se você vai ser ou não extorquido, se você vai levar um esculacho, se você vai ser preso ou se você vai ser assassinado", analisa Rebeca.

A Rebeca também falou sobre os motivos dessa militância. "São quase 60 mil homicídios por ano no Brasil, destes, a metade são jovens de 15 a 29 anos, e 77% são negros. A maioria dessas mortes acabam acontecendo nesse contexto de guerra às drogas e violência armada. Precisamos fazer o que a gente puder para ajudar esses grupos, os coletivos, os movimentos sociais que atuam em área de periferia e de favela, para que essa pauta entre nas discussões e que, independentemente da posição de cada um a respeito do uso de drogas, eles entendam que a política que é feita hoje é a pior possível, porque ela provoca essa guerra em que morre gente de todos os lados, mas especialmente pessoas pobres que vivem nessas comunidades."

Em cada cidade por onde a enfumaçada Marcha da Maconha já passou, há uma história diferente de luta e resistência. E por mais que em alguns lugares a marcha ande meio desandada — e em outros ela não pare de crescer —, a verdade é que, no decorrer de quase 15 anos, muitos tentaram mas ninguém foi capaz de pará-la. Nem o Ministério Público, nem tentativas de aparelhamento por parte de partidos políticos, nem tentativas de silenciamento com acusações rasas de todo tipo, desde a de ser um movimento "de playboy" (por ser realizada muitas vezes nos centros ou orlas das cidades e não em suas periferias), "machista" (por conta de uma meia dúzia de prints de um militante insignificante) ou mesmo "egoísta", por focar, pelo menos no nome, numa só droga. Mas não adianta, agora é tarde, e da mesma maneira que jovens convocaram hoje espontaneamente fumatos por todo brasil, a luta pela legalização da maconha (e de todas as outras drogas) já está em curso e aguardando novas adesões.

Quem não discute a solução, provavelmente é conivente com o problema.

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