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Música

Um papo com os blocos de carnaval sobre marchinhas que incomodam muita gente

Além das canções clássicas, Biel, MC G15 e outros hits atuais com conotação machista, homofóbica ou racista também estão na mira dos organizadores da folia paulistana.
Foto: Felipe Larozza

Alguns blocos de carnaval cariocas decidiram retirar oficialmente do seu repertório carnavalesco marchinhas clássicas, como "Maria Sapatão", "Cabeleira do Zezé", ambas de João Roberto Kelly, e "O Teu Cabelo Não Nega", dos Irmãos Valença, por considerarem essas músicas politicamente incorretas. Em entrevista à rádio CBN, Renata Rodrigues, uma das organizadoras do Mulheres Rodadas — bloco oriundo do movimento feminista — defendeu o "boicote" a esses clássicos carnavalescos, julgando-os ofensivas às minorias sociais. Outro bloco no Rio de Janeiro que decidiu não tocar essas marchinhas foi o Cordão do Boitatá.

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Sobrou até pra "Tropicália", do Caetano Veloso, que fazia parte do setlist do Mulheres Rodadas. Os organizadores do bloco estão discutindo se o uso do termo "mulata" na canção é pejorativo ou não e, segundo Renata, eles ainda vão decidir se manterão o clássico da MPB no repertório.

O incômodo com o uso de termos considerados pejorativos nas marchinhas não é recente. Segundo a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em entrevista ao jornal O Globo, o escritor Lima Barreto, em 1906, se retirou de uma festa de carnaval quando começou a tocar "Vem Cá Mulata", por se sentir ofendido com a música.

Mesmo assim, essa discussão ainda levanta opiniões divergentes no carnaval carioca. Os presidentes das associações Sebastiana e Folia Carioca [que representam 33 blocos do Rio de Janeiro] disseram aO Globo que não acreditam que as marchinhas tenham cunho preconceituoso e que os seus blocos não vão banir nenhum clássico do repertório. Já em matéria do jornal Estado de S. Paulo, quem saiu em defesa das marchinhas foram o compositor João Roberto Kelly, os músicos Tom Zé, Djavan e Ney Matogrosso.

Em São Paulo, quem primeiro levantou a discussão foi o saxofonista Thiago França que, em um post no Facebook, explicou que o bloco que comanda, o Charanga do França, não vai mais tocar "O Teu Cabelo Não Nega" e outras marchinhas consideradas preconceituos. Em entrevista ao Noisey, França disse acreditar que o carnaval seja um ótimo momento pra trazer todo tipo de questão à tona, inclusive as [questões] ligadas a racismo, machismo e homofobia: "A minha decisão [de deixar de tocar] é apenas um pequeno dado estético dentro duma discussão que é muito mais profunda e complexa. Mas, com essa medida, a gente espera deixar a pulga atrás da orelha de muita gente que nunca parou pra pensar que essas marchinhas eram preconceituosas. A gente nota que há um padrão claro das pessoas que acham [essa discussão] irrelevante ou bobagem: homens, héteros e brancos. Por isso, acredito que seja necessário falar desses assuntos porque, por mais que eles achem bobagem, essa informação fica ali guardada em algum lugar e pode levá-los a refletir."

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França diz não acreditar que a sua decisão e de outros blocos se trata de censura, como pontuou o pesquisador Tárik de Souza em reportagem do Estado de S. Paulo. "Quando eu escolho tocar ou não uma música, estou dando a cara do bloco, criando uma identidade", disse Thiago, que explicou que só quem falou em censura foi a imprensa. "Não faço boicote a ninguém que pensa diferente de mim."

E o saxofonista não está sozinho na sua decisão de banir de seus próprios blocos as marchinhas em São Paulo. Fernando Magrin, um dos organizadores do MinhoQueens, que leva hits de divas pop e marchinhas em ritmo de funk para os foliões no Largo do Arouche, falou ao Noisey que músicas preconceituosas não entram no setlist do bloco: "'Maria Sapatão', 'Seu Cabelo Não Nega Mulata' e 'Cabeleira do Zezé', por exemplo, a gente não toca. Não pensamos que isso seja abandonar a tradição do carnaval. Só não queremos continuar tocando músicas que, por muito tempo, oprimiram as pessoas. Eu mesmo me sentia constrangido quando era adolescente e, nos bailes de carnaval, tocava 'Cabeleira do Zezé'. Obviamente, na época, eu não era gay assumido, mas achava que todo mundo tava todo mundo olhando pra mim e cantando essa música pra mim."

Fernando disse que eles preferem tocar versões politicamente corretas das marchinhas, como uma de "Cabeleira do Zezé" que, no lugar de "corta o cabelo dele", diz "solta o cabelo dele" e pede para "deixar o Zezé em paz". Outro boicote promovido pelo bloco foi ao cantor Biel, que esteve envolvido em um caso de assédio sexual a uma jornalista no ano passado. "Também evitamos tocar funks com letras machistas ou que falam muito de 'novinhas', essas coisas. Mas às vezes é difícil deixar de tocar alguns hits."

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Luiz Felipe Toledo, do Bloco Sereianos — que desfilou no centro do São Paulo ao som de axé, brasilidades e funk no último sábado (18) —, concorda que é muito difícil deixar de tocar certas músicas que caíram no gosto do público. A maior questão que o bloco enfrentou neste carnaval foi com o hit indiscutível do verão 2017 "Deu Onda", do MC G15. Apesar de a música não ter uma letra explicitamente preconceituosa, Luiz nos disse que o bloco cogitou não tocá-la devido a uma recente declaração homofóbica do funkeiro. "Fomos atrás de versões de outros artistas cantando 'Deu Onda', porque sabíamos que grande parte das pessoas dali queria ouvi-la . Como não achamos, tivemos que tocar a [versão] do G15 mesmo, mas antes de colocar a música, ligamos o microfone e relembramos o de homofobia do artista. Todo mundo que tava ali curtiu o som, mas também nos apoiou  bastante quando denunciamos e protestamos dessa forma."

Apesar de o Sereianos não tocar marchinhas, o bloco também concorda com a posição do Thiago França: "Tudo bem que são clássicos que eu mesmo cresci ouvindo no carnaval, mas particularmente acho que são músicas que não cabem mais pra época em que vivemos", disse Luiz Felipe. "Antes não existia esse 'limite' do bom senso nas pessoas. A luta das minorias é constante e de certa forma essas marchinhas acabam sendo um 'desserviço', seja para os LGBT+, negros ou mulheres. Existem marchinhas que não ofendem e não ridicularizam ninguém. Acredito que dá pra selecionar e ter uma posição política além de festejar o carnaval. Fervo também é luta."

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Anderson Boscari, do Bloco 77, falou a favor de se posicionar contra o preconceito nesta discussão. "Esses  temas foram ignorados por anos. Quem já foi pulou carnaval conosco nos anos anteriores sabe que sempre pedimos para que todos colaborem contra o assédio, machismo e homofobia. Carnaval é festa, mas quando nos confrontamos preconceitos tudo perde a graça". O bloco, que leva pra região de Pinheiros clássicos do punk-rock em ritmos de carnavalescos, também adotou a estratégia de fazer suas próprias versões das marchinhas, tanto para fugir das letras preconceituosas quanto para que as músicas casem melhor com a temática punk. 'Cabeleira do Zezé', por exemplo, virou 'Moicano do Zezé', o que se encaixa perfeitamente com a proposta do bloco e não ofende ninguém.

Procurado pela reportagem, o Bloco Pilantragi, que levantou coro nas ruas de Perdizes no último domingo (19) na capital paulista, não quis se manifestar, mas reforçou que o tema deles deste ano foi: "Amor sim, homofobia não!".

Já o Bloco Tarado Ni Você, que todo ano percorre os arredores da avenida Ipiranga homenageando a obra de Caetano Veloso, acredita que o carnaval é um momento de liberação e escárnio, apesar de achar que a preocupação seja relevante. "Só temos que tomar cuidado para não engessar a diversão por meio do politicamente correto. O carnaval é justamente o contrário disso e tem licença poética pra isso, então", disse Thiago Borba ao Noisey, um dos organizadores.

Sobre a decisão de alguns blocos como o Mulheres Rodadas de não tocar "Tropicália", do Caetano, Thiago comentou: "Ele é um dos maiores artistas do Brasil e tem tanta coisa a dizer nas suas músicas que a palavra 'mulata' não deveria pôr em xeque a poesia dele. Não acredito que a intenção dele foi ser pejorativo nem nada". O próprio Caetano, que acha que a marchinha "Cabeleira do Zezé" incita violência, saiu em defesa de si próprio em relação ao uso do termo "mulato" em várias das suas canções, dizendo que "é mulato e adora a palavra 'mulato'" ao Estadão.

Apesar de aderirem ao boicote das marchinhas politicamente incorretas, tanto Thiago França quanto Magrin, do Minhoqueens, concordam que só isso não é suficiente para combater esse tipo de preconceito na folia carnavalesca. Por isso, ambos os blocos aderiram à campanha #CarnavalSemAssédio. "Uma semana antes do bloco, a gente tenta, por meio das redes sociais, conscientizar os foliões de que o respeito ao outro deve estar acima de tudo, mas na hora é impossível controlar", explicou França. "Acaba colando gente de tudo quanto é lugar. E é uma festa e eu também estarei lá pra me divertir. Se eu vir alguma coisa errada acontecendo, vou interferir, claro, mas não dá pra ficar policiando ninguém."