​Como a 'segunda pele' protegerá os futuros soldados de ameaças químicas
Cada vez mais sofisticada, a ciência das vestimentas militares quer criar peças seguras, inteligentes e que livrem combatentes de se sentirem dentro de um preservativo. Crédito: Wikimedia Commons

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Tecnologia

​Como a 'segunda pele' protegerá os futuros soldados de ameaças químicas

Cada vez mais sofisticada, a ciência das vestimentas militares quer criar peças seguras, inteligentes e que livrem combatentes de se sentirem dentro de um preservativo.

Como especialista em defesa química, biológica, radiológica e nuclear (CBRN) do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, o cabo Cody Tankersley, de 25 anos, passou mais de 1.000 horas utilizando equipamentos especializados para se proteger de ameaças químicas e biológicas. Todas elas foram terríveis.

"Utilizar o equipamento MOPP [Mission Oriented Protective Posture, no original] é uma experiência exaustiva", disse Tankersley. "Tiveram muitos momentos, enquanto eu estava vestindo o MOPP, em que pensei em matar alguém que estivesse atrapalhando a minha vida ou a vida de outras pessoas. Estou falando de uma raiva real, de pensar em espancar a pessoa até ela morrer."

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De acordo com Tankersley, que trabalha na CBRN há sete anos, passar muito tempo com o equipamento não só faz os soldados delirarem de exaustão e estresse térmico, como também trás uma "sensação de pânico e desespero" que é difícil de ignorar.

A sigla MOPP é utilizada para designar o equipamento utilizado atualmente pelo exército para proteção contra agentes bioquímicos. O Departamento de Defesa americano espera substituir o MOPP e o resto dos uniformes militares por "uniformes inteligentes". A ideia de vestimentas militares inteligentes — equipamentos de combate tecnológicos que aprimoram as habilidades dos soldados — não é nova, e o governo dos EUA tem uma longa história de financiamento de pesquisas nessa área.

Nos últimos dez anos, o governo financiou pesquisas sobre óculos de sol capazes de fornecer dados em tempo real para soldados em missões e uniformes equipados com sensores capazes de detectar ferimentos. Nesse momento, cientistas da Universidade da Flórida Central estão desenvolvendo tendas capazes de capturar energia solar e uniformes que podem detectar os raios infravermelhos invisíveis presentes na mira de franco-atiradores inimigos.

Mas embora a aprimoração dos uniformes militares seja um negócio sério, a maior parte das pesquisas se manteve no campo teórico. Quando se trata do equipamento MOPP, Tankersley diz que os militares só se focaram em tornar as máscaras faciais mais confortáveis.

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Cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Livermore esperam mudar essa realidade. Eles deram um grande passo à frente ao criar um material que simula uma "segunda pele" e que pode vir a proteger soldados de ameaças biológicas e químicas. Em 2012, a Agência de Redução de Ameaças do Departamento de Defesa Americano solicitou propostas para esse projeto, conhecido como Dynamic Multifunctional Materials for a Second Skin [D(MS)²]. Embora o Departamento de Defesa não tenha respondido às nossas tentativas de contato, eles foram bem claros quanto a suas intenções na proposta abaixo (ênfase minha):

O material deve ser capaz de alternar entre um estado benigno correspondente a um ambiente pouco ou nada ameaçador e um estado de proteção correspondente a um ambiente de média a alta ameaça. …. A resposta deve ser seletiva; em outras palavras, o material deve ser ativado apenas quando — e onde for — necessário. Todos os estados estáveis devem ser regulados exclusivamente pela dinamicidade do material, e não por um sistema de controle externo. Dessa forma, os materias dinâmicos e multifuncionais devem formar um sistema inteligente: um sistema sensível, responsivo, e multi-estável capaz de se adaptar às necessidades….

Em outras palavras, quando o soldado está em um ambiente seguro, o material funciona como uma roupa normal. Mas quando o material entra em contato com contaminantes, ele é "ativado", protegendo o soldado da ameaça. Para criar o material perfeito, a equipe de cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Livermore usou milhões de nanotubos de carbono, tubos minúsculos com menos de 5 nanometros de largura — 5.000 vezes menor do que um fio de cabelo.

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A "segunda pele" é composta por uma malha de nanotubos de carbono, cujos buracos minúsculos impedem a passagem de ameaças biológicas e repelem ameaças químicas. Crédito: Ryan Chen/LLNL

Esse novo material oferece duas formas de proteção:

As ameaças biológicas costumam ter mais de 10 nanometros de largura (esporos de antraz, por exemplo, são em média mil vezes maiores) e portanto são grandes demais para passar pelas aberturas do tecido, mesmo fora do modo de emergência.

As ameaças químicas, por sua vez, são pequenas o suficiente para passar pelos nanotubos; para evitar a contaminação, esses nanotubos contam com um material polimérico que reage a agentes químicos no nível molecular. Resumindo, quando uma ameaça química entra em contato com o tecido, seus pequenos buracos se fecham.

Além disso, o material é leve e respirável.

"A abordagem tradicional do desenvolvimento de tecidos protetores não incluía a ideia de materiais inteligentes", explica Dr. Francesco Fornasiero, um dos líderes do projeto. "A proteção costumava ser — e ainda é — alcançada através de um mecanismo estático (materiais impermeáveis), o que quase sempre prejudica a respirabilidade do tecido, limitando o período de tempo de uso da roupa protetora a fim de evitar o superaquecimento corporal".

É impossível subestimar o estresse causado pelas condições extremas do campo de batalha; o Conselho de Pesquisa Nacional aponta o desconforto físico como prejudicial tanto à performance física quanto ao nível de atenção dos soldados. Militares estão sempre expostos a ameaças reais e diretas, mas algo que é constantemente ignorado por aqueles fora do serviço militar são as constantes dificuldades enfrentadas por aqueles que servem em regiões de guerra. Problemas psicológicos e emocionais à parte, os soldados em campo de batalha estão em constante estado de exaustão e desconforto físico.

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"É como estar dentro de uma camisinha no meio da floresta amazônica; mas a única pessoa sendo fodida é você mesmo".

Tankersley não foi único soldado a concordar com a opinião de Fornasiero de que o equipamento de proteção tradicional afeta o desempenho dos soldados. Outro soldado do 1º Batalhão do 7º Regimento dos Fuzileiros Navais descreveu o equipamento MOPP como uma parte constante de sua vida durante os 40 dias em que ele participou da fase inicial da Operação Iraque Livre.

"Nosso banho era apenas uma esfregada com lenços umedecidos nas axilas, rosto, virilha e pé", ele me disse. "Era o máximo que podíamos fazer no caminho de Bagdá. Estávamos usando o equipamento de segurança, é claro, porque as informações que tínhamos sobre o exército de Saddam indicavam que eles poderiam ter armas químicas ou biológicas, coisas das quais esse equipamento deveria nos proteger. Foi uma experiência terrível".

O soldado em questão estava falando sobre o MOPP Nível 1, que consiste em um macacão (conhecido como JSLIST) usado sobre o uniforme. Em ambientes contaminados, os soldados podem chegar a usar o Nível 4, que inclui um macacão, botas, luvas e uma máscara. Tankersley diz que usar o equipamento completo é como passar horas dentro de uma sauna.

"Eles aumentam a temperatura corporal em até 12 graus", conta ele, "o maior calor que já senti foi quando eu estava trabalhando no Vale da Morte. A temperatura dentro do meu uniforme estava em torno de 63 graus".

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Uma amostra de membrana altamente respirável que pode se tornar o principal material dos futuros uniformes militares. Crédito: LLNL

O calor é apenas parte do problema. O equipamento de segurança também diminui a agilidade e o campo de visão dos combatentes. Para piorar, as luvas são grossas e pesadas, tornando tarefas básicas "impossíveis", de acordo com Tankersley.

Mesmo os soldados que não tiveram a oportunidade de usar o equipamento MOPP gostariam de ter uma alternativa mais leve e confortável.

"Estou carregando meu equipamento nesse instante", explicou o Major Chad Ryg, que está servindo atualmente no Afeganistão. "Ficamos incomodados com o peso e espaço que ele ocupa, especialmente porque sabemos que ele não será usado". Mas mesmo sua experiência mais memorável com o traje mostra como o equipamento atrapalha o rendimento físico dos soldados. "Lembro de um treinamento que fiz quando virei tenente", conta Ryg. "Estávamos usando todos os equipamentos e fazendo um exercício onde alguém estava ferido. Carreguei um dos meus colegas nos ombros e quase desmaiei".

Andrew Wark, um sargento dos Fuzileiros Navais, compartilhou sua experiência de forma mais poética: "É como estar dentro de uma camisinha no meio da floresta amazônica, mas o único sendo fodido é você mesmo".

O material que simula uma segunda pele não irá mudar a forma como guerreamos; representa um passo rumo a equipamentos de combate que não apenas deixam os soldados mais seguros e produtivos, mas também diminuem as dificuldades que eles enfrentam no dia a dia.

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É improvável que esses soldados presenciem a criação de um uniforme inteligente durante o resto de suas carreiras, já que o atual objetivo da equipe da LNLL é criar um protótipo de material inteligente, e não um uniforme funcional. Para que um uniforme seja desenvolvido e testado, é preciso levar uma série de questões em consideração: quão resistentes são esses uniformes? Quanto eles custam para ser feitos? Como eles podem ser lavados?

Também é provável que os uniformes inteligentes do futuro não sejam feitos apenas desse tipo de material. Fornasiero enfatizou que como o Departamento de Defesa possui diferentes opções de D(MS)² a seu dispor, é possível criar trajes feitos a partir de uma mistura de materiais inteligentes — a área dos cotovelos e dos joelhos, por exemplo, requer materiais mais maleáveis do que as áreas do torso e do pescoço.

Mesmo que a próxima geração de trajes MOPP só tenha alguns pedaços feitos de material inteligente, isso já diminuiria o desconforto físico causado pelo uso prolongado. Luvas mais maleáveis, por exemplo, poderiam ajudar os soldados a executar tarefas delicadas.

Embora o Departamento de Defesa esteja financiando a criação da próxima geração de tecidos, a segunda pele e tecnologias afins podem ter um grande impacto no setor civil. Existe um longo e rico histórico de tecnologias criadas no setor militar que acabaram chegando ao setor civil. Motores de aviões, a fotografia digital e a internet, para citar algumas, tiveram origem em projetos militares.

"Um exemplo perfeito é o equipamento de proteção utilizado pelos médicos durante a crise do Ebola", disse Fornasiero. "Esse tipo de material ajudaria, e muito, os socorristas". Ele acrescentou que outros usos incluem a proteção de operários que manipulam produtos químicos de alta toxicidade e participantes de mutirões de limpeza.

Para todos os efeitos, o material que simula uma segunda pele não irá mudar a forma como guerreamos. Representa um passo rumo a equipamentos de combate que não apenas deixam os soldados mais seguros e produtivos, mas também diminuem as dificuldades que eles enfrentam no dia a dia, melhorando, consequentemente, sua performance e qualidade de vida.

Tankersley disse que todos os membros das forças armadas tem consciência dos desafios da carreira militar. Em suas palavras: "Imagine trabalhar dentro de uma roupa que limita sua visibilidade e mobilidade e que deixa sua temperatura por volta dos 48ºC. Além disso, qualquer tarefa que você fazia antes, você agora faz ao mesmo tempo em que manipula os produtos químicos mais mortíferos da Terra. Se você errar, você morre".

Até que os uniformes inteligentes entrem em ação, os militares de todo o mundo terão que fazer o que sempre fizeram: marchar em frente.

Tradução: Ananda Pieratti