FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Conheça a Pornceptual, a festa queer de Berlim em que você pode acabar estrelando um pornô

Criada pelo brasileiro Chris Phillips, a festa quer subverter a pornografia convencional e fazer com que você esteja mais confortável com a sua sexualidade.
Photos by Eric and Chris Phillips

Eu nunca tinha esperado numa fila de chapelaria como essa. Casacos pesados e camisetas caíam dos corpos à medida que todos se despiam de uma só vez, revelando a pele macia comprimida em tiras de couro, correntes tilintantes, máscaras e outros apetrechos fetichistas. Um forte cheiro de sovaco suado flutuava pela Alte Münze, uma antiga fábrica de moedas de Berlim onde uma festa queer de sexo chamada Pornceptual fazia sua estreia no último mês de abril. (Edições anteriores da festa, que já completa três anos, aconteceram em um clube da cidade chamado Prince Charles.) Antes de me soltar na vida selvagem, uma drag queen loira e arrogante na porta me deu um resumo das regras: como em quase todas as festas de sexo, respeitar os limites dos meus colegas hedonistas era fundamental.

Publicidade

Mas a Pornceptual não é uma festa de sexo comum na qual o objetivo principal é transar com estranhos tesudos — embora isso possa acontecer. O projeto tem uma missão sociopolítica que falta em muitas festas desse tipo: desafiar a misoginia da indústria pornô mainstream, a exploração dos seus profissionais e as suas visões fetichistas de raça e sexualidade, criando um modelo alternativo baseado na inclusividade e no queerness.

Na verdade, quando foi criada em maio de 2012, pelo artista Chris Phillips, nascido no Brasil, a Pornceptual foi concebida como uma galeria virtual de fotos eróticas antes de evoluir para o seu formato atual: uma festa dance sexo-positiva, popular entre o público queer de Berlim. O projeto ainda mantém os seus parâmetros conceituais artísticos, e Phillips e sua equipe — que inclui Emre Busse, Raquel Fedato e o DJ residente Diego Garcia (também conhecido como Projekt Gestalten) — fazem a curadoria dos DJs, shows de sexo ao vivo e instalações de vídeo para a festa de acordo com um tema que varia a cada mês. Uma edição recente celebrou o documentário Paris Is Burning e a cultura ballroom de Nova York.

A equipe da Pornceptual. Da esquerda para a direita: Emre Busse, Raquel Fedato, Chris Phillips e Diego Garcia.

A seção "Sobre Nós" do site da festa resume a sua missão: "A Pornceptual apresenta a pornografia como queer, diversa e inclusiva. Buscamos provar que a pornografia pode ser respeitosa, íntima e artística e, ao mesmo tempo, questionar os rótulos pornográficos habituais. Poderá a arte ter êxito onde a pornografia falha — que é nos excitar de fato?".

Publicidade

O que mais me intrigou na Pornceptual, quando ouvi falar na festa pela primeira vez, por meio de alguns amigos, em Nova York, foi como a sua relação com as mídias e a documentação de atos sexuais era mais complicada do que a maioria. Festas de sexo tendem a ser coisas efêmeras, com uma proibição quase geral de evidências fotográficas; o conceito fundamental, compartilhado por clubes como o Berghain, é que esta falta de vigilância e rastros digitais permite uma sensação de liberação total no momento.

Um frequentador da Pornceptual que eu fui, com o tema "fábrica pornô"

Filmar sem consentimento ainda é estritamente proibido na Pornceptual, mas fazer pornografia na festa é central para a sua missão de desafiar o status-quo pornográfico. Portanto, os frequentadores seguidamente são fotografados e filmados na própria festa — sempre de forma consensual, em espaços isolados — e as imagens deles trepando ou mostrando seus corpos são postadas no site da Pornceptual, ou mesmo transformadas em filmes pornográficos de verdade, graças a parcerias com sites como o kink.com. A festa também edita a sua própria revista pornográfica, de edição limitada, com arte original encomendada de artistas de todo o mundo.

Leia: A Cultura Queer Está Criando uma Nova Cena Underground na Dance Music

Abaixo, em uma entrevista conduzida via Skype, Phillips, Fedato e Garcia explicam como trilham os limites do consentimento e da privacidade ao mesmo tempo em que promovem sua alternativa libertadora à pornografia — e discutem o atual estado da cena queer de Berlim e os conceitos fundamentais por trás desta orgia de pele e couro.

Publicidade

THUMP: Como a Pornceptual começou?

Chris Phillips: Na verdade, começamos o projeto lá no Brasil, que é de onde somos, talvez quatro ou cinco anos atrás. Quando me mudei para Berlim, senti que era a cidade certa para reestruturar e começar tudo de novo. Era importante para nós ter o "porn" no nome, para lutar contra esse tabu e mostrar às pessoas que podemos fazer pornografia — mas de um jeito diferente. Tudo, da produção à distribuição, nós fazemos de maneira alternativa à indústria [pornô mainstream].

Qual vocês acham que é o tabu quando se trata de pornografia?

Phillips: As pessoas associam a pornografia a todas essas coisas negativas, como a exploração de mulheres. Mas as pessoas confundem o produto da indústria com a pornografia em si. Também criticamos a indústria, mas repito, você pode fazer pornografia de um jeito diferente.

Raquel Fedato: As pessoas também têm muita vergonha dela — têm vergonha de falar para os outros: "Sim, vejo pornografia". Ou mesmo de falar sobre suas vidas sexuais.

Phillips: É engraçado, porque é um produto que muita gente consome de maneiras diferentes, mas parece que algumas pessoas têm vergonha de falar sobre isso.

Como vocês acham que a festa vai ajudar a quebrar esses tabus?

Fedato: Criamos uma atmosfera na qual as pessoas são livres para explorar seus corpos e sua sexualidade, e acho que é muito difícil encontrar lugares assim — onde você não é julgado, onde as pessoas não ficam te olhando constantemente.

Publicidade

Diego Garcia: As pessoas pensam "estou indo à uma festa de sexo" e rompem com esses preconceitos.

Fedato: É muito importante dizer que não é uma festa de sexo comum, porque promovemos uma ligação entre o sexo e o mundo da arte, e isso não é comum em uma festa de sexo.

Leia: A história da festa queer de hip-hop e dancehall mais famosa de Toronto

O que especificamente, na festa, tem ligação com o mundo da arte?

Phillips: Ela começou originalmente como um projeto de arte, então já tínhamos essa base.

Fedato: Normalmente pensamos no tema e, baseados nisso, desenvolvemos a parte visual em termos de filmagens, performances ao vivo e projeções [de vídeo].

Garcia: Também fazemos vídeos para promover a festa de antemão, que eu às vezes edito e para os quais faço a música. Tudo precisa estar interligado. Também tento fazer a música de acordo com o tema. Por exemplo, lembro que fizemos uma festa baseada no filme Paris Is Burning e nessa cultura em Nova York que o cercava, a cena ballroom. Então usei música dessa época e dessa cena.

Um documentário de Emre Busse chamado Landlords, sobre apartamentos de sadomasoquismo em Berlim.

Vocês seguidamente têm performances com temática sexual?

Phillips: Sempre há um elemento sexual. Às vezes fazemos coisas bem explícitas — tivemos uma performance de fisting algumas edições atrás. Mas normalmente são performances quase eróticas.

Fedato: No ano passado, no nosso segundo aniversário, demos um canto na festa para o [site pornô] kink.com, onde eles filmaram seu próprio filme com pessoas [do público]. Foi bem legal.

Publicidade

Phillips: Essa foi a minha performance favorita. Só de ver o que estava rolando, foi muito legal.

Vocês fazem filmes pornôs nos dark rooms da festa?

Phillips: Na pista e nos dark rooms, fotos e vídeos são absolutamente proibidos. Queremos que as pessoas façam sexo se sentirem vontade, em qualquer lugar.

Fedato: Algo que me incomoda muito é quando vou a uma festa e um fotógrafo vem até mim com a câmera na mão, querendo muito tirar uma foto minha. Especialmente na Pornceptual, onde muita gente está pelada e experimentando coisas novas, fazer um vídeo realmente não é…

Phillips: Temos uma cabine fotográfica onde tiramos fotos das pessoas na festa de um jeito específico. É importante para nós produzir material visual nas festas, mas só fazemos isso em um espaço específico. Temos muito cuidado em relação a expor as pessoas.

Bem, a maioria das festas de sexo — e muitos clubes de Berlim — têm a regra de "proibido fotografar". Mas o que eu acho mais interessante na Pornceptual é como a relação de vocês com as mídias é diferente da maioria das festas de sexo, que proíbem qualquer tipo de documentação — considerando que produzir pornografia e outras imagens eróticas nas suas festas é central para a sua missão de quebrar tabus. Como vocês trilham os limites do consentimento quando filmam as pessoas fazendo sexo?

Fedato: Temos uma cabine fotográfica, e Chris e o irmão dele, Eric, são as únicas duas pessoas que podem tirar fotos. É muito importante que ninguém mais faça isso. Recebemos milhares de e-mails de pessoas dizendo tipo: "Minhas bolas estão na internet, seria muito legal se vocês tirassem a foto do ar". [É importante] para realmente termos controle sobre o nosso material e podermos preservar a privacidade das pessoas.

Publicidade

Phillips: O objetivo [da cabine fotográfica] é abrir o projeto para que as pessoas possam participar. Queremos que as pessoas façam performances, fiquem peladas e tirem fotos peladas. Tínhamos essa ideia da cabine desde o começo, e acho que é o melhor jeito de fazer muita gente interagir e participar.

Garcia: Também é a melhor configuração, porque não é como se eles não soubessem ou não tivessem conhecimento.

Leia: Nos EUA, a Cena Eletrônica Lésbica Segue Vivona

O que vocês notam na maneira como as pessoas interagem quando entram na cabine?

Phillips: Depende. O nosso público não é de pessoas que normalmente vão a festas de sexo. Algumas pessoas querem experimentar, mas ainda estão com um pouco de medo. Algumas pessoas curtem que tirem fotos sexualmente explícitas delas. Algumas pedem para cortarmos o rosto delas. É muito importante ter esse diálogo — entender quanto uma pessoa está confortável. É questão de respeito, e levamos isso muito a sério.

Fedato: Quando começamos a fazer a Pornceptual, eu não me sentia tão confortável com o meu corpo. Sou uma garota muito alta, e todo mundo sempre fica tipo: "Ah meu Deus, você é tão grande". Mas Chris tirou umas fotos minhas, e depois de três anos e meio, comecei a me sentir muito bem e a ver que há diferentes tipos de beleza, e que você não precisa seguir um determinado padrão.

A série fotográfica "Demimonde", do artista Andrea Galad, publicada na revista da Pornceptual

Garcia: Chris é a única pessoa que me fotografou pelado, e isso também me ajudou. Sou muito peludo e, no Brasil, nunca tiro a camisa num clube. Lá eles acham que tenho câncer de pele. Mas na Pornceptual, toco sem camisa. Talvez algum dia vá pelado.

Publicidade

Phillips: Acredito mesmo nessa ideia — que todo mundo deveria se sentir confortável pelado.

Vocês se identificam como uma festa queer?

Phillips: Com certeza. Ser queer é ser inclusivo. Nossa seleção na porta realmente só se foca na atitude das pessoas — não temos nenhuma seleção baseada em identidade de gênero ou sexualidade, porque queremos que a festa permaneça sendo o mais inclusiva e diversa possível.

Fedato: Comparado às várias outras festas queer em Berlim, realmente recebemos todo tipo de pessoa que você possa imaginar: lésbicas, gays, casais hétero… Atingimos nosso objetivo sendo realmente inclusivos.

Qual é a diferença entre a cena queer e a cena gay em Berlim?

Phillips: Elas não são exatamente iguais. A cena gay é muito sexista, e acho que é voltada só para os homens e para um tipo específico de corpo — aqueles clichês gays, tipo caras musculosos. Ser queer é mais político. É algo mais transgressor também. É sobre não se adequar a rótulos e criar sua própria identidade.

Da série "Skin Depth", da Flesh Mag, no site da Pornceptual

O que torna a Pornceptual diferente das outras festas queer?

Fedato: Acho que a diferença entre a Pornceptual e as outras festas é que nós temos todo um conjunto de coisas, como uma revista, um site, vídeos, performances, música…

Vocês podem falar mais sobre a revista? É uma revista pornográfica?

Phillips: Acho que ela vai na contramão do mercado. É meio anacrônica. Muitas revistas pornográficas fecharam, até revistas como a Playboy não publicam mais nudez. Queremos uma revista pornográfica, mas queremos que ela seja algo que as pessoas vão querer colecionar, então não imprimimos muitas. Publicamos a revista duas vezes por ano. De novo, temos um tema diferente a cada edição e fazemos parcerias com gente de todos os lugares. Também não temos patrocinadores na revista, então ela é muito underground.

Publicidade

Fedato: E é publicada de forma independente.

Phillips: É mais sobre criar alguma coisa coletivamente do que ganhar dinheiro.

Vocês acham que a nossa geração de ravers e frequentadores de clubes tem uma atitude diferente das gerações anteriores em relação ao sexo?

Phillips: Acho que a internet tem um enorme papel na nossa sexualidade hoje em dia. Escrevi minha tese de mestrado sobre o [aplicativo gay de encontros] Grindr e como as pessoas trocam nudes para criar diferentes relações sexuais. Acho que ela tem um papel enorme. Fomos a primeira geração a crescer com a internet, e para mim, é o jeito mais fácil de se conectar com pessoas que têm visões similares sobre sexualidade. Como eu vim de uma comunidade superconservadora, acho que a internet realmente me ajudou a perceber que não estou sozinho.

Fedato: Para mim, esse é o ponto principal: é fácil transar agora. É só abrir o Grindr, e você acha alguém para transar com você em cinco minutos.

Antes da internet, saunas e festas de sexo eram onde muita gente, especialmente os homens gays, achavam pessoas com visões similares sobre sexualidade. Você poderia pensar que, porque é tão fácil usar aplicativos agora, festas de sexo não são mais necessárias. Mas acho que as festas de sexo estão se tornando mais populares, na verdade. Então, embora o sexo esteja se tornando uma experiência mais virtual, parece haver uma tendência entre os jovens de abertura a buscar espaços físicos e comunitários para transar.

Publicidade

Fedato: Mas não acho que você possa comparar chamar alguém para a sua casa com transar em um espaço público. É claro que acho que isso tem um papel em tornar as pessoas mais abertas e envolvidas com a sua sexualidade, mas não todo mundo. Não acho que você possa generalizar isso.

Phillips: Não vejo as duas coisas como completamente independentes — acho que estão muito ligadas. Muitas das pessoas que conheci nessa cena, conheci por meio desses aplicativos. Mas acho que o tipo de interação que você tem nos aplicativos pode ser um pouco frustrante, porque muita gente está ali para fazer você perder o seu tempo.

Garcia: A minha experiência é inversa, na verdade. Entro no Grindr e alguém diz: "Ah, você tocou um bom set na Pornceptual". [risos] Estou na casa dos 30 anos, então, quando comecei a frequentar clubes gays, não existiam aplicativos gays. As pessoas entravam nos dark rooms dos clubes para transar.

Fedato: O Tinder e o Grindr são extensões do dark room — são uma versão online dele.

Isso é legal, gosto dessa ideia. Última pergunta, vocês podem falar sobre a sua próxima festa?

Phillips: O próximo tema é "Resistência a Bombas". Tem uma vibe militar, mas não é ligada a nenhum tipo de nacionalismo. Não queremos que as pessoas levem bandeiras ou qualquer tipo de identidade nacional; é sobre ser parte de uma milícia que está usando a pornografia como uma arma simbólica contra as ideias dominantes de sexualidade.

Fedato: Pela primeira vez, temos um lineup composto exclusivamente de DJs que se identificam como mulheres. Cuido do booking há três anos agora, e percebi que a cena é composta de homens na sua maioria. Acho que talvez 10% dela seja de garotas. Então, para essa edição, queríamos mesmo que fossem só garotas [tocando].

Garcia: Queremos ficar mais atentos ao sexismo na cena. Criei um selo queer que também é focado em dar espaço a artistas techno mulheres e queer. Vou tocar [na próxima festa], mas usando minha identidade feminina — "A Princesa da Morte". Essa é a minha identidade quando toco techno.

Michelle Lhooq é editora do THUMP. Siga-a no Twitter.

Tradução: Fernanda Botta

Siga o THUMP nas redes Facebook // Soundcloud // Twitter.