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Por que a ficção científica é uma esperança no futuro para os muçulmanos

Escritores podem criar um espaço seguro ao criar histórias sobre muçulmanos explorando os limites da galáxia, longe de um clima político de ódio.
Foto por Robert Couse-Baker

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Como muçulmana, tem sido difícil manter a cabeça erguida depois das eleições nos EUA. Tenho me sentido impotente, consciente de que fui jogada numa das piores posições para confrontar racistas que acham que agora têm permissão para espalhar sua retórica de ódio. Sou uma escritora, repito para mim mesma — uma escritora muçulmana; o que diabos posso fazer para mostrar que sou apenas um ser humano, tão digna de respeito e amor quanto qualquer outro?

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Amigos têm compartilhado a reflexão de Carl Sagan sobre a Terra, nosso "pequeno ponto azul no universo", para me confortar. Mas sendo sincera: é fácil olhar a Terra de longe e achar que os problemas da humanidade são insignificantes no grande esquema das coisas. É fácil dizer às pessoas que elas deveriam ser mais gentis e simpáticas umas com as outras quando não é você que tem seu hijab arrancado na rua e é chamada de terrorista. Por mais que eu queria olhar nosso planeta de longe com o mesmo carinho que Sagan, não consigo. Não agora, e talvez não pelos próximos quatro anos. Estou presa aqui na Terra, imaginando como posso ajudar pessoas como eu a superar esse período difícil.

Não vejo um pequeno ponto azul. Só vejo vermelho.

Então pego Dawn, de Otavia Butler, e leio. E na minha cabeça, estou no espaço sideral.

Depois que o projeto Mars One anunciou planos para uma missão para Marte em 2025, clérigos muçulmanos nos Emirados Árabes emitiram uma fatwa considerando a colonização de Marte não-islâmica porque, segundo eles, mesmo ir para Marte é um risco desnecessário à vida equivalente ao suicídio, então um pecado. Sendo assim, para esses clérigos, os muçulmanos não devem sair da Terra. Mas o Corão em si não discorda da exploração espacial: "Ó assembleia de jinn e humanos, se sois capazes de atravessar os limites dos céus e da terra, fazei-o!" [Surata Ar Rahman: 33]. E obrigado por isso, porque parece que pelo menos 25,5% dos EUA — a porcentagem de eleitores que votaram em Donald Trump, não nos querem na Terra também.

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Sonhar com exploração espacial parece uma alternativa atraente a, bom, pensar em tudo que está acontecendo. Muitos muçulmanos estão fervendo com medo e raiva, e com direito. Com a vitória de Donald Trump na mente da maioria, é difícil dar um passo atrás e perceber exatamente o que pode estar em jogo, e o que pode estar seguro. Mas a realidade para muitos muçulmanos é que a vitória de Trump significa a vitória da normalização do ódio contra nós neste país. Agora choramos. Agora nos mobilizamos. Lutamos para criar espaços seguros.

Escritores muçulmanos podem trazer conforto criando espaços seguros. Não quero dizer "espaços seguros" no sentido típico da palavra, mas espaços seguros — espaços siderais. A coisa da ficção com toques de realidade, de escrever histórias sobre muçulmanos explorando os limites da galáxia, longe de um clima político de ódio, é como pegar nosso presente e o colocar um palco futurista imaginário, fornecendo novas perspectivas e, no final, esclarecendo o que definimos como status quo. Como Deka Omar escreveu este ano no site Islam and Science Fiction: "Assim como Orwell usou a ficção científica para dar voz a suas trepidações sobre o comunismo, os muçulmanos também podem usá-la para trazer suas próprias experiências para um público maior e dissipar ideias equivocadas, além de questionar o discurso veemente da islamofobia".

Talvez sem querer, Omar também tenha desenhado paralelos entre a ficção científica, historicamente vista como uma literatura "menor", e os muçulmanos, vistos como humanos "menores": "Como uma comunidade frequentemente sujeita a uma narrativa que a demoniza e a retrata como o derradeiro 'outro', esse tipo de narrativa [de ficção científica] pode ajudar a criar uma ponte sobre o que nos separa da sociedade mainstream". E ainda assim há uma escassez de muçulmanos escrevendo ficção científica, em parte porque escrever sobre alienígenas e planetas fictícios é considerado não-islâmico por alguns clérigos (irônico, em certo sentido, porque foi no mundo islâmico que surgiram alguns dos primeiros exemplos do gênero). Mas por que não é próprio para um muçulmano usar ficção científica como ferramenta para se ver como protagonista de sua própria história, não apenas existindo, mas prosperando numa linha do tempo separada da opressão muito real de hoje?

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Ano passado, o autor paquistanês de ficção científica Usman T. Malik argumentou que seu país devia abraçar o sci-fi como uma ferramenta de justiça social: "Ficção científica em sua glória imaginativa procura relatar, resolver e recriar um mundo cheio de possibilidades. Ela nos oferece muitas lentes através das quais ver o mundo ao nosso redor, iluminando a mente com revelações". Malik acredita que a ficção científica pode plantar sementes de mudança que permitam que os muçulmanos criem espaços cuidadosamente controlados menos violentos, preconceituosos e cheios de possibilidades e esperança. Nesse espaço futurista, podemos colocar nossa dor num palco para evocar uma empatia que esperamos transferir para os leitores no presente. Crenças similares fizeram o editor Muhammad Aurangzeb Ahmad criar o Islam and Science Fiction, o primeiro centro do tipo para escritores muçulmanos se encontrarem e compartilharem ideias de ficção científica islâmica.

Outros escritores marginalizados conseguiram usar a ficção científica como uma ruminação de seu lugar no universo. Por exemplo, Octavia Butler usou trabalhos sci-fi, como sua trilogia Xenogenesis, para refletir sobre raça, hierarquia e escravidão num mundo alienígena. Seu trabalho foi influente porque ela simbolizava que escritores negros e ficção científica devem ser levado a sério como adições significativas ao cânone literário. A indústria editorial reflete um mundo anti-negro, particularmente com relação à ficção científica, que sempre foi um espaço principalmente branco e masculino. Butler usurpou tropos da ficção científica e transformou o gênero em um onde ela podia imaginar uma mulher negra como agente de seu próprio futuro. Ela usou a ficção científica para exigir o reconhecimento de que pessoas como ela existem agora, e vão continuar existindo em todos os níveis de um futuro imaginável. Sendo uma escritora novata, ver uma mulher marginalizada dominar o gênero tem sido de um valor inestimável para desenvolver minha confiança e crença de que também mereço um espaço meu.

Na primeira metade deste novembro, o FBI registrou um aumento de 67% nos crimes de ódio contra muçulmanos, e o Southern Poverty Law Center contou mais de 300 alegações de incidentes de discriminação desde o dia do resultado da eleição norte-americana.

Mas nossa repressão é combustível para uma rebelião das palavras: é só perguntar para Saladin Ahmed, G. Willow Wilson e claro, Usman T. Malik, exemplos de escritores muçulmanos de ficção científica que canalizam as questões reais e as políticas contemporâneas enfrentadas pela comunidade muçulmana em histórias acessíveis. Sci-fi escrita por muçulmanos oferece um espaço sagrado para que eles investiguem sua identidade, e também apresentem a identidade muçulmana atual para os leitores como ela poderia existir no futuro. Afinal de contas, se nos permitirmos, mesmo que na ficção, existir no futuro, então talvez possamos lembrar por que devemos existir no agora.

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