As coisas malucas e os lugares distantes do ‘Disco do Tênis’ do Lô Borges

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Noisey

As coisas malucas e os lugares distantes do ‘Disco do Tênis’ do Lô Borges

Conversamos com o mestre mineiro sobre a criativa correria da produção do clássico álbum, lançado em 1972 (mesmo ano que ‘Clube da Esquina’), e que hoje é referência absoluta da psicodelia roqueira do Brasil.

Nesta edição de Disquecidos, o cantor e compositor Lô Borges relembra sua particular lira dos 20 anos e fala do álbum conhecido pela psicodelia e pela capa com dois tênis brancos.

Lô Borges tinha acabado de fazer o Clube da Esquina, dividindo os créditos com um já conhecido Milton Nascimento, quando recebeu uma proposta da Odeon. A parada era a seguinte: os executivos da gravadora estavam interessados numa estreia solo do moleque de 20 anos que havia composto e cantado músicas como "O Trem Azul" e "Paisagem da Janela". Pra ser lançada ainda naquele 1972, diga-se. Entre surpreso e orgulhoso, o artista belo-horizontino não titubeou e resolveu seguir adiante. Ele assinou o contrato — mesmo sem qualquer canção na manga ou na gaveta — e gravou um álbum que marcou sua carreira. Sim, o autoentitulado mas que acabou ficando conhecido como Disco do Tênis deu muita onda.

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E também trabalheira. Há tempos fora de catálogo, sem reedição em vinil e tendo sido lançada no país em CD pela última vez em 2002, a obra nasceu de uma espécie de corrida de obstáculos empreendida pelo músico. Com a ajuda do letrista e irmão Márcio Borges e de uma galera do quilate de Beto Guedes, Toninho Horta, Tenório Jr. e Robertinho Silva, ele em várias ocasiões precisava compor uma canção de manhã e já levá-la ao estúdio à noite. Foi assim que surgiram 15 faixas transbordando psicodelia, surrealismo e espírito estradeiro, tudo misturado a porções de rock progressivo, jazz, folk, forró, hard rock e harmonias vocais à la beatles. "Era uma oficina de criação, existia um forte clima de criatividade. [Mas] Eu ficava estressado às vezes pelo fato de não ter as músicas", diverte-se hoje Lô Borges.

Sentado numa sala de eventos do Matsubara Hotel, em São Paulo, o cantor aproveitou a passagem pela capital paulista pra nos receber e contar uma pá de coisas sobre seu álbum homônimo. O papo sobre o Disco do Tênis, aliás, coincidia com a inédita decisão de tocá-lo ao vivo na íntegra. Se no começo da década de 1970, Lô não botou o repertório em cima do palco porque preferiu largar tudo e fazer um outro tipo de turnê, agora ele o revive nos arranjos originais, interpretados por um azeitado sexteto capitaneado pelo músico Pablo Castro. É pauleira só, como deu pra notar nos shows que rolaram no Sesc Vila Mariana, nos dias 13, 14 e 15 de janeiro, e o homem não vai parar por aí. Além destas, estão previstas apresentações pra celebrar o clássico em Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras.

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Em nosso encontro, Lô faz agradecimentos, ri de perrengues, conta a história da primeira parceria com Milton e, aos 65 anos, abre suas memórias. Ele fala também de Neil Young, da ditadura, de sumir da gravadora pra só voltar a lançar outro disco solo em 1979, de Dorival Caymmi, da aventura de cruzar o Brasil sendo um hippie e até de como descolou aqueles surrados tênis da capa do disco.

Dá um play aí e escute o álbum pra emendar com a leitura:

Com quantos anos você começou a tocar, Lô?
Cara, eu comecei a tocar com nove, dez anos. Comecei a me interessar pelo violão porque sou de uma família em que meus irmãos mais velhos tocavam. Meu irmão Marilton [Borges] tocava, então, minha casa tinha instrumentos musicais. Lá, aconteciam ensaios de bandas do meu irmão — na época, nem se falava banda, era conjunto — e eu gostava de ver o pessoal tocando. Mas gostava mais quando acabavam os ensaios porque os instrumentos ficavam todos pra mim (risos). Aí eu ficava brincando com os instrumentos, aprendendo os acordes. Comecei meu aprendizado na música pela parte mais difícil harmonicamente, pela bossa nova. Depois, eu virei beatlemaníaco, botei uma palheta na mão pra acordes mais simples, que são as canções dos Beatles. Mas antes [disso] aprendi bossa nova, que era uma outra história, mais complexa e de harmonia muito mais rica do que a música dos Beatles. Acho que isso foi uma coisa boa pra mim.

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Tem uma história de que você começou a querer se transformar num artista graças ao cinema. Que filmes foram esses que te inspiraram?
Foi um filme: "A Hard Day's Night" [de 1964 e dirigido por Richard Lester], dos Beatles, que no Brasil se chamava "Os Reis do Iê-Iê-Iê". Eu assisti a esse filme com 12 anos e vi tanta música maravilhosa ali que me tornei beatlemaníaco. Eu entrei na sessão das 14h e saí na sessão das 22h. Fiquei no cinema o tempo todo. Além das canções maravilhosas, dos caras serem lindos fisicamente, com cabelo de franjinha, que não se usava na época, ainda tinha um monte de mulher correndo atrás deles. Olha só que coisa fascinante!

Ali mudou a chave.
Pra você ter uma ideia, eu já conhecia o Beto Guedes desde os 10 anos de idade. Quando o Milton [Nascimento] e o meu irmão Márcio [Borges] me presentearam com o disco do "A Hard Day's Night", o levei na casa do Beto. Num primeiro momento, ele teve uma reação meio estranha. O Beto [disse] "pô, esses cabeludos aí são viados!" Eu falei "cara, não interessa se eles são viados ou não. Escuta o disco! Depois, você me fala". Na terceira música, o Beto já era mais beatlemaníaco do que eu. Foi amor à primeira vista. Então, 15 dias depois, eu e ele, com 12 anos, montamos uma bandinha, o primeiro cover dos Beatles em Belo Horizonte. Chamava The Beavers. A gente era tão criança que cantava num programa chamado Petilândia [da TV Itacolomi]. Cantava em programas de televisão, de rádio, em almoços dançantes em clubes. A gente teve uma pequena carreira — se os Beatles acabaram meio que precocemente, The Beavers acabaram muito mais precocemente porque minha mãe [Maria Borges, a dona Maricota] condicionava [ir] cantar em programa de TV, de rádio e de auditório a boas notas na escola. Meu irmão Yé, o Marcos [Borges], era do The Beavers também e tanto eu quanto ele não tirávamos boas notas. Aí o Beto Guedes ficou puto com minha mãe! Falou "sua mãe acabou com a carreira de nossa bandinha". Assim The Beavers acabou. Durou um ano e pouco.

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E sua primeira composição rolou com quantos anos?
A minha primeira composição foi com 15, 16 anos. Tenho um pouco de dúvida se foi "Equatorial", que eu vim a gravar bem depois, no A Via-Láctea [seu segundo disco, de 1979], se foi o "Clube da Esquina", o "Alunar" ou o "Para Lennon e McCartney". Mas é mais ou menos por aí.

E a primeira parceria com Milton Nascimento?
Foi mais ou menos na mesma época em que tava começando a compor. Eu sentado na esquina [no cruzamento da Rua Paraisópolis com a Rua Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte], e ele já com a carreira sólida, um nome nacional, com "Travessia" [segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1967]. Ele nem morava mais em Belo Horizonte, mas sempre que voltava, ele ia à casa da minha família. Chegava e "cadê o Lô?". "Ah, o Lô tá na esquina, ele não sai de lá, no lugar que eles chamam de Clube da Esquina. O Lô fica o tempo todo tocando violão lá". Um dia, o Milton foi me procurar na esquina e eu tava começando a harmonia da canção "Clube da Esquina". Ele falou comigo: "pô, eu queria tanto tocar junto com vocês. Queria inventar umas coisas com você, mas eu já sou um cara conhecido, tenho vergonha de ficar aqui na esquina. Vamos lá pra casa da sua mãe" (risos). Aí nós fomos pra casa da minha mãe, ele pegou o outro violão, ficamos tocando os dois violões e fizemos a canção. Nossa primeira parceria: "Clube da Esquina". Isso à tarde. No final da tarde, meu irmão Márcio Borges chegou do trabalho e viu o Milton fazendo música com o Lô. Ele ficou tão emocionado que pegou caneta, papel e começou a escrever a letra na hora. E ela retrata muito bem [a situação]: "Noite chegou outra vez/De novo, na esquina/Os homens estão". Então, essa primeira parceria com o Milton foi marcante. Inclusive, tem uma história curiosa. Quando tava anoitecendo, e a letra, ficando pronta, acabou a energia elétrica. E já tava escuro. Meu irmão não conseguia ler o que estava escrevendo e aí minha mãe inaugurou uma profissão que nunca existiu nas artes: iluminadora de letra. Foi a única profissional nisso. Ela pegou uma vela, acendeu e ficou iluminando o papel e a caneta em que meu irmão tava fazendo a letra. Aí ficou pronta a primeira parceria Milton/Lô/Márcio. Naquela época, era muito comum comemorar bebendo e a gente fez isso imediatamente após a composição. Fomos pro bar e tomamos todas!

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O tempo passou, o Milton te chamou pra fazer o "Clube da Esquina", vocês gravaram e lançaram o disco. Como é que foi a turnê do álbum?
O disco não teve turnê. Ele teve um pequeno lançamento, que durou menos de um mês, no teatro Fonte da Saudade, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro. Depois, no mesmo ano, eu gravei o Disco do Tênis. Eu tava apertado de costura porque tinha um contrato pra cumprir, mas cheguei a participar desses shows. Mesmo estando muito envolvido em compor.

Quando você assinou o contrato pro Clube da Esquina já havia a história de que teria de lançar um álbum solo também ou isso foi uma ideia posterior da Odeon?
Foi posterior. No começo, a Odeon não queria fazer o Clube da Esquina, do Milton Nascimento com um cara absolutamente desconhecido chamado Lô Borges. Eles não queriam aquilo de jeito nenhum! O Milton, que era artista da Odeon, é que falou "se vocês não quiserem, eu vou trocar de gravadora. Vou fazer uma proposta pra outra gravadora". Aí os caras falaram "não, nós não podemos perder o Milton. O Lô Borges vem por acréscimo nessa história". Mas os caras ficaram surpresos com o resultado porque eles viram que minhas músicas eram bacanas, bonitas, interessantes. Eles gostaram tanto da minha participação que me ofereceram um contrato. Só que foi uma coisa meio precoce. Quando fiz as músicas do Clube da Esquina eu tava começando a minha vida de compositor. Não tinha repertório suficiente pra fazer um álbum de inéditas. Tanto que o Disco do Tênis foi uma correria do caramba porque eu compunha a música de manhã, meu irmão [Márcio] fazia a letra à tarde, e à noite eu ia pro estúdio e me juntava aos músicos, meus amigos, que tavam gravando comigo. A gente fazia o arranjo, um pequeno ensaio e gravava. Foi uma maratona.

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Como era o ambiente no estúdio? Era meio caótico?
Era uma oficina de criação. Porque veja só: de manhã, eu não tinha música. Aí fazia a música. De tarde, fazia a letra. E eu chegava e mostrava a música pro pessoal aprender, pra gente criar os arranjos juntos, tudo na hora. Então, existia um clima de criatividade forte, mas também um clima caótico mesmo. Tipo "pô, o que vamos fazer com essa música?". Eu estava apresentando umas músicas meio malucas, complexas, bem diferentes do que eu apresentei no Clube da Esquina, que eram canções mais palatáveis. O Disco do Tênis é meio experimentalista. [Havia] Canções de um minuto, faixas de 30 segundos. Mas o pessoal cooperou muito comigo. Eu tenho agradecimentos a fazer a essa turma: ao Beto Guedes, ao Toninho Horta, ao Novelli, ao Nelson Angelo, ao Tenório Jr., ao Sirlan [creditado na ficha técnica do disco apenas com seu sobrenome, De Jesus], ao Vermelho, ao Flávio Venturini. Esses caras ficavam à minha disposição. Quando eu chegava no estúdio, já estavam todos me esperando assim: "Qual é a que o Lô vai apresentar hoje? O que nós teremos?". Foi muito criativo o Disco do Tênis, foi desafiador, me botou pilha pra caramba. Eu ficava estressado às vezes, pelo fato de eu não ter as músicas, de ter essa obrigação de fazer a música de manhã e a letra à tarde. Mas vejo o resultado e foi um disco inovador, que apontou pra várias tendências. Eu fui psicodélico, roqueiro, baião, eu fui um monte de coisas nesse disco. Uniu muitas facetas de um compositor. É um disco plural. O Clube da Esquina tem uma coisa mais parecida, de baladas; o Disco do Tênis, não. É um álbum um pouco hermético. Já vi as pessoas chamarem de nostálgico, de tristonho. Já vi vários adjetivos, mas todos falam que é um disco inovador.

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Vamos falar do processo criativo e das faixas do disco propriamente. A primeira canção, "Você Fica Melhor Assim", é um rockão, mas o álbum também tem forró, faixas instrumentais, influência de jazz. Além de Beatles, o que você tava ouvindo na época?
Uma coisa que as pessoas se surpreendem comigo é quando falo que ouvia muito Beatles e Chico Buarque. Nessa época, eu também ouvia Jimi Hendrix, ouvia pra caramba o Axis: Bold as Love. Curtia Crosby, Stills, Nash & Young — o álbum deles que eu mais escutava era o 4 Way Street. Ouvia o trabalho do Crosby, Stills & Nash sem o [Neil] Young. Gostava dos discos do Young, do Harvest e de outros. Curtia Emerson, Lake & Palmer. E do Brasil, ouvia a Tropicália, as coisas do Caetano, do Gil, do Milton. E também escutava Yes — acho maravilhoso o The Yes Album .

Agora, queria que você falasse um pouco de "Canção Postal", sua única parceria no disco com Ronaldo Bastos.
É uma canção feita um pouco nessa pilha, de ter que fazer uma canção. Ainda bem que tava inspirado! Fiz uma canção de manhã, aí mostrei pro Ronaldo. Não gravei no mesmo dia porque acho que o Ronaldo não gostaria de fazer essa pilha de compor a música de manhã e a letra à tarde. Gravei um cassete, entreguei pra ele e me devolveu com a letra alguns dias depois. Não podia ser uma semana depois, já que a gente não tinha muito tempo pra gravar o disco. Aí fiz uma canção que considero bonita. Uma vez, encontrei com o [Gilberto] Gil, e ele falou "pô, gostei muito do Disco do Tênis. Principalmente, de 'Você Fica Melhor Assim' e de 'Canção Postal'". Ele fez um elogio pra mim.

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No disco, também tem um certo clima sombrio. Na faixa "Homem da Rua", você canta "O incêndio calado no homem que passa por mim". Isso tinha a ver com a ditadura?
Totalmente. A ditadura era uma coisa muito barra-pesada. Era sanguinária: amigos sendo presos, amigos sendo mortos. Havia um clima de nenhuma liberdade individual, não se respeitava nada. Eu fiz esse disco tomando prensa da polícia porque era cabeludo — a polícia prendia os cabeludos. Na época, se morassem mais de três pessoas numa casa, já era célula terrorista… Tanto o clima do Clube da Esquina quanto o do Disco do Tênis era de intimidação da ditadura em cima das pessoas que usavam cabelo grande ou que se reuniam pra tocar. Eles odiavam os músicos porque sabiam que os músicos os odiavam também. E eles odiavam os artistas. Então, o clima de ditadura contaminou um pouco o meu texto no Disco do Tênis. Eu falei tudo por metáfora, mas no "Homem da Rua" eu falo "o estranho silêncio na rua" porque não podia se manifestar, não podia ter manifestação. As viagens eram todas pra dentro, interiores. Cito [também] a canção "Como o Machado", em que a letra é absolutamente desesperada: "Por que ando triste?/Eu sei/É que eu vivo na rua/Espera um pouco mais…". Quando fui fazer o show agora, eu não queria cantar o texto dessa letra porque a minha cabeça é outra, a ditadura se foi. Mas cheguei à conclusão que deveria cantar do jeito que ela é mesmo. Hoje, temos um Brasil conturbado, confuso. O Brasil tá sempre passando por problemas. Mas a ditadura foi o pior dos problemas que tivemos. Eu asseguro a você.

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"Não Foi Nada" é um baião envenenado e todo mundo cita os versos "Sonhei que eu nunca existi/E vi que eu nunca sonhei". De onde veio a ideia pra letra? Tem algo de surrealismo?
Eu acho que tem. A música se chama "Não Foi Nada", e a letra é "Sonhei que eu nunca existi/E vi que eu nunca sonhei". Tem gente que compara com o "penso, logo existo" [de René Descartes]. É algo que não sei definir, mas achei que seria a única coisa que caberia no texto dessa música. Tá dizendo "poxa, eu acho que existo" (risos). "Penso, logo existo." E a última coisa que fiz foi colocar o nome. Na hora em que vi "sonhei que eu nunca existi/E vi que eu nunca sonhei", falei "Não Foi Nada". O título é a conclusão que cheguei: "Não Foi Nada".

"Pra Onde Vai Você" é uma vinheta progressiva, de só 38 segundos. Quando começou o disco, você queria fazer algo nesse estilo, conciso, mas cheio de ideias?
Eu queria fazer uma coisa cheia de ideias. Como não conseguia fazer música religiosamente todos os dias, tinha vez que eu ia pro estúdio e fazia vinhetas, que compunha ali na hora mesmo. Eu gosto dessa vinheta, da guitarra do Beto Guedes, da harmonia. Acho que tudo no Disco do Tênis é meio inovador. Pra mim, não tô dizendo pra música. Às vezes, eu pensava "como é que eu fiz isso? De onde é que tirei isso?". Eu me perguntei o Disco do Tênis inteiro. Eu mesmo não sabia de onde é que tava tirando umas músicas.

Onde você conheceu Danilo Caymmi, que tocou flauta em "Calibre"?
Conheci Danilo Caymmi através do Milton. Fui morar no Rio de Janeiro, com o Milton, pra compor as músicas do Clube da Esquina e aí conheci vários amigos dele. Inclusive, tive a honra de o Bituca [Milton] me levar na casa do Dorival Caymmi. Eu toquei o "Um Girassol da Cor de seu Cabelo" no violão do Dorival Caymmi pra ele próprio, o Algodão, como o pessoal o chamava. Toquei, e ele falou "linda canção, menino!". Agora, o Danilo é um cara maravilhoso. Quando fui à casa do pai dele, ele tava também. No Clube da Esquina, ele também tava. Então, era um cara que encontrava nos shows do Milton, no Teatro da Praia, ali em Ipanema. Ele não participou do Disco do Tênis o tempo todo eu não sei por quê. Nesse dia [da gravação de "Calibre"], ele apareceu e cabia uma flauta. Olha a coincidência das coisas: cabia uma flauta nesse dia.

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E o irmão dele, Dori Caymmi, fez o arranjo orquestral de "Faça seu Jogo".
Ah, sim, eu tive na casa do Dori [Caymmi] e mostrei pra ele a música "Faça seu Jogo". Ele gostou muito e fez o arranjo, que eu considero primoroso. Ele escreveu uma outra música em cima da melodia de "Faça seu Jogo": [Lô começa a cantarolar, imitando o arranjo orquestral] "pambambambampam pambambambampam pambambambampam". Isso é uma outra música! O arranjo dele é tão inspirado que ele fez uma outra composição. Eu considero o arranjo dele um apoio pra minha composição, mas é também quase uma outra composição. Se você tirar minha melodia e deixar só o arranjo dele, já é uma música.

Você levou a música já com a intenção de ele fazer o arranjo ou só foi mostrá-la a um amigo?
Não, eu fui à casa dele com a intenção de que fizesse o arranjo. Fui lá bater na porta já pedindo "quero que você faça um arranjo pra mim". Ele foi supergeneroso e fez um arranjo maravilhoso.

Quando escuto "Faça seu Jogo", eu penso em rock rural, em On the Road , do Jack Kerouac. Poderíamos ver nela uma síntese do momento que você estava passando?
Quando eu estava gravando o Disco do Tênis, teve um período em que fui a Belo Horizonte. Eu tava gravando no Rio, só que eu queria que tivesse composições de piano no álbum, e a casa em que eu tava morando — do meu irmão, Márcio [Borges] — não tinha piano. Aí fui pra Belo Horizonte, passei 20 dias lá e fiz quatro composições no piano. Uma foi "Faça seu Jogo". Eu vou falar uma coisa pra você que não falei pra ninguém. Eu fiz a música como se estivesse tocando alguma coisa do Neil Young. Minha influência pra composição era o Neil Young, de quem sou completamente fã. Principalmente, daquela fase inicial dele. Era tão maravilhoso. Então, eu fiz "Faça seu Jogo" muito na praia do Neil Young. Não sei se consegui, mas a intenção era fazer uma coisa próxima dele tocando piano.

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"Não se Apague esta Noite" é uma balada, cheia de violões, que, de repente, ganha uma roupagem jazz. Você a compôs pensando em free jazz ou rock progressivo? Como veio a ideia pra aquela mudança de andamento?
Aquilo foi inspiração mesmo. Eu fiz uma balada e, no final, senti que podia entrar uma coisa com outro pique pra encerrar a música. Foi totalmente intuitivo. Na hora em que terminei a balada, [Lô bate palmas e cantarola o início da parte jazz] "tamtamtamtamtamtamtam". Isso veio da inspiração mesmo, não foi uma coisa que pensei "ah, agora vou fazer uma coisa mais jazzística". Nada é pensado no Disco do Tênis; é tudo intuitivo. Tudo que tá ali é intuição, é catarse criativa. Tudo acontecia intuitivamente e fui seguindo minha intuição o disco inteiro.

Sobre o que é "Aos Barões", Lô?
Se a gente for pegar a letra, que é minha, "Uma rua/Um buraco/Ficam sentadas/Umas pessoas/E eu fico vivendo com elas/E a gente é a paisagem", é o retrato do que a gente vivia. Porque a gente — eu e meus amigos de Santa Tereza, em Belo Horizonte — se tratava de "barão". "E aí, barão? Vamo ali, barão? Tudo certo, barão?" Era tratando a coisa das pessoas da minha geração, que gostavam de fumar um baseado na rua. Quanto à composição, eu acho uma coisa bem original. Na parte musical, acho que o único cara que faz uma canção daquela é o Lô Borges, entendeu? Ela é bem loborgiana mesmo.

Já "Eu sou como Você É" é uma das suas canções mais lembradas e me faz pensar em família.
É totalmente família porque, conforme falei pra você, eu fazia as músicas de manhã, o Márcio Borges chegava e fazia as letras à tarde, e a gente gravava à noite. Mas teve um dia em que fiz a música de manhã, o Márcio não chegou à tarde, e eu tinha gravação à noite. Aí fiz a letra em homenagem a ele: "Meu irmão, eu sou/Como você é/Saí do mesmo escuro". "Mesmo escuro" ficou bem evidente que era o útero da minha mãe, né? (risos) Então, é uma música totalmente familiar, em homenagem ao meu irmão. Fiz uma letra de amor pro meu irmão. Eu sou como você é, Márcio Borges.

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Depois que o "Disco do Tênis" saiu, você caiu no mundo.
Totalmente. Precisava disso.

A ideia era evitar que a música virasse um negócio?
Eu me senti muito sufocado porque, pra fazer o Clube da Esquina, eu tive tempo pra compor [ele, Milton e Beto Guedes se hospedaram por quatro meses numa casa, em Niterói, no Rio, apenas pra fazer as músicas do álbum], mas pra fazer o Disco do Tênis, não. Com 20 anos de idade e fazendo música de manhã, letra à tarde e arranjo e gravação à noite, você há de convir que é uma coisa meio sufocante pra um cara que era pouco mais que um adolescente. Então, quando terminou o Disco do Tênis, eu falei "pois bem, a primeira coisa que vou fazer é não botar minha cara na capa. Vou colocar um tênis pra simbolizar que quero uma vida libertária, que quero estrada, que quero virar hippie". Foi o que eu virei. Acabou o Disco do Tênis, sumi do Rio de Janeiro e das gravadoras. Não queria saber de produção musical. Eu queria saber de ir pra Arembepe [no município de Camaçari], na Bahia, fumar maconha com os hippies. Aí virei hippie. Foi a melhor coisa que fiz na vida: fazer um hiato na minha carreira. Porque ia enlouquecer se tivesse que fazer um disco a cada ano, com 20 anos de idade. Fui pego de surpresa com esse contrato de fazer um disco em que botei o tênis na capa. A gravadora deve ter detestado essa capa. Falou: "pô, esse cara é maluco." E mais do que isso, eu sumi da gravadora. Se eles quisessem divulgar o disco comigo, eu não estaria disponível porque tava em Arembepe com os hippies. Eu abandonei a carreira. A verdade é essa.

Você foi pra Porto Alegre também, né, Lô?
[Faz um joia enquanto bebe água] Eu não fui só pra Arembepe. Viajei pra vários lugares do Brasil, entre eles, Porto Alegre. Eu tinha uma cota de discos, pra divulgação, e chegava nas rodinhas de violão, nas praças onde estavam os hippies da cidade, me juntava a eles e começava a tocar violão. Falava "ah, eu fiz o Clube da Esquina", mas ninguém conhecia direito ainda o Clube da Esquina. E muito menos o Disco do Tênis. Aí eu saía distribuindo cópias. A minha divulgação era assim: chegava na rodinha de maconheiros e dava o Disco do Tênis pros caras (risos). Foi minha divulgação underground.

Você foi pra Belém também.
Pra Fortaleza, pra vários lugares. Rodei o Brasil, sempre de ônibus. Eu era um cara duro, não tinha dinheiro pra pagar passagem aérea. Chegava nos lugares, ficava em albergue, acampava em praia ou em comunidade hippie. Procurava os cabeludos pra saber onde é que eu ia me hospedar. Eu falava "onde é que estão os cabeludos dessa cidade?" (risos) Caí na estrada.

Numa entrevista, você chegou a dizer que sua estreia é "um disco de malucos pra malucos". Como vê o disco hoje?

Eu continuo achando isso, um disco de malucos pra malucos. O Disco do Tênis nunca vai perder essa coisa de ser meio lisérgico, meio maluco, meio histriônico. Você sai de uma balada, entra num baião, cai no "Pra Onde Vai Você", que tem 38 segundos, vai pra uma faixa como "Toda Essa Água", que é a última do álbum. É um disco de maluco e eu não sei qual sensação as pessoas têm ao ouvir em casa. Porque nem todo mundo é maluco igual eu sou, entendeu? Vou até dizer uma frase que meu filho de 18 anos, o Luca, falou pouco tempo atrás, quando ele tinha 10. Perguntaram a ele "o que você acha das músicas de seu pai?" Aí ele falou uma coisa que acho perfeita pra definir minhas músicas. "Meu pai faz coisas malucas, de lugares distantes." (risos) Acho que o Disco do Tênis é que são coisas malucas, de lugares distantes.

E a foto da capa? Foi uma ideia coletiva?
Na ficha técnica, quem assina a produção da capa é o Cafi e o Ronaldo Bastos. Mas a ideia de botar o tênis na capa foi minha porque não queria fazer um disco em que pusesse minha cara. O tênis foi fotografado pelo Cafi [o mesmo fotógrafo da capa de Clube da Esquina. Não sei o que o Ronaldo e o Cafi vão achar dessa minha fala, mas assumo totalmente a ideia de botar na capa meu par de tênis. Pra mim, simbolizava um abandono da carreira naquele momento.

É um Adidas, né?
É um Adidas. Quando eu adquiri esse tênis, ele já não era novo. Era de um primo meu, que foi passar uns dias no Rio, onde eu morava. E aí eu falei "pô, que tênis bonito, Sergio!". E ele respondeu "gostei muito de uma camisa sua ali". Naquela época, se usava trocar coisas, né?

Rolou um escambo.
[Lô gargalha] É. Aí eu falei "pô, me passa esse tênis aí que eu te passo aquela camisa que você gostou". Foi uma coisa assim. Agora, esse cadarço de barbante de enrolar [saco de] pão eu não sei de onde é que eu tirei, não. Acho que quando peguei o tênis, ele já tava bem detonado.