Como o nome social garante dignidade às mulheres trans

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Identidade

Como o nome social garante dignidade às mulheres trans

No mês do orgulho LGBTQ, transexuais contam como o reconhecimento de seu nome social foi importante para inclusão.

Em pleno 2017, os avanços são modestos para pessoas T que buscam tirar novos documentos com nome social. Mesmo depois que a então presidente Dilma Rousseff assinou, em abril de 2016, um decreto permitindo transexuais de usarem o nome social em órgãos públicos federais, como ministérios, universidades e empresas federais, não é fácil para uma pessoa trans assumir legalmente, no Brasil, sua identidade gênero.

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Hoje, a única forma legal no país de um transexual ou travesti retificar o nome de registro é recorrer à Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. É um processo que pode demorar de seis meses a dois anos, dependendo do entendimento do juiz.

E mesmo diante das dificuldades, que vão muito além das questões legais, três mulheres trans contam como conseguiram ser reconhecidas em seus ambientes de trabalho graças ao nome social. Um importante ponto de partida para a conquista de mais cidadania e respeito. Leia mais abaixo:

Foto: Felipe Larozza/VICE

Ana Carolina Franzatto. Primeira funcionária trans da CET-SP

A operadora Ana Carolina Franzatto, de 54 anos, trabalha há mais de seis na CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) de São Paulo. Ela foi casada duas vezes com outras mulheres, que são mães de suas três filhas, sendo duas biológicas e outra do coração, como ela se refere. "Sempre vivi como homem, mas sabia que tinha alguma coisa errada", relembra.

Somente depois dos 50 anos e com o diagnóstico de disforia de gênero nas mãos, Ana se convenceu de que aquela não era a vida que desejava e que precisava mudar. "Minha médica do Hospital das Clínicas dizia que não entendia como passei tanto tempo como homem tendo uma mente feminina."
Aos 10 anos, Ana tentou dar vazão à sua identidade de gênero, mas, por pressão da família, seu lado feminino foi reprimido, mesmo diante dos alertas dos psicólogos para sua condição de criança trans. "Os médicos disseram que era melhor me criar como menina, mas minha mãe não aceitou. E assim vivi por mais de 50 anos."

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A primeira pessoa a saber que Ana assumiria sua identidade de gênero foi sua filha do coração, a Ana, na época com sete anos. O nome social é uma homenagem à pequena e o segundo nome, Carolina, uma escolha da filha. Nascia naquele momento Ana Carolina Franzatto.

Se engana quem acha que o maior medo de Ana era contar sua decisão à família. O trabalho na CET era uma preocupação latente. A operadora relembra que, por causa de sua idade, a aceitação dentro de casa foi mais tranquila, mesmo que a mãe não toque muito no assunto. O problema, sentia, era como seria a aceitação no ambiente de trabalho. "Seis meses após começar a transição com hormônios, eu criei coragem e falei com o meu chefe. E minha história foi levada para o [chefe] superior e, de cara, me prometeram total apoio no que eu precisasse. E foi no dia 17 de setembro de 2016 que registrei meu nome social na companhia."

A angustia, então, começou a passar. Ana contou com a ajuda das psicólogas da CET, que logo marcaram reuniões com funcionários para explicar o que estava acontecendo. "Se eu soubesse que eu seria tratada dessa maneira eu teria feito isso há muitos anos e teria melhorado muito minha qualidade de vida. Eu era uma válvula emperrada que voltou a funcionar."

Ana conta que o departamento médico da companhia hoje tem um desafio: adequar a empresa para que as pessoas trans sejam bem recebidas e não sofram preconceito. "Abri uma porta travada que estava sem previsão de ser aberta. Alguns amigos ainda se esquecem de me chamar pelo nome social, mas muitos estão me chamando de Carol e me elogiam. Hoje eu vivo. Antes, eu sobrevivia."

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Pâmela Volp. Primeira vereadora trans de Uberlândia (MG)

A vereadora Pâmela Volp é um ponto fora da curva no país que mais mata transexuais no mundo, principalmente por ela ter crescido em um ambiente bastante hostil para uma pessoa trans. Natural de Tupaciguara (MG), Pâmela trabalhou como boia-fria em carvoarias da cidade. Aos 17 anos, ela não tinha mais como esconder sua identidade de gênero e o preconceito e a discriminação falaram mais alto. "Fui obrigada a me mudar para Uberlândia de tantos problemas que eu enfrentava na minha terra. Mas quando cheguei na nova cidade pouca coisa mudou. Não bastava sofrer preconceito por ser trans, como também cheguei a ser dispensada do serviço doméstico que prestava por ter uma religião de matriz africana."

E foi no desespero que a prostituição passou a ser seu ganha pão. Na rua, viveu os piores momentos da sua vida. Mas também foi na rua que aprendeu a defender a população trans. "Sofri agressões físicas, verbais e psicológicas. Fui presa várias vezes por defender minha população na rua da própria Polícia Militar."

Mesmo sem remuneração, Pâmela resolver ajudar efetivamente mulheres trans expulsas de casa. Da pensão que recebia mulheres trans desabrigadas nasceu, em 2010, a ONG Triângulo Trans: Associação de Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro.

Sua atuação social se disseminou e, em 2012, concorreu a um cargo público pela primeira vez. Mas foi em 2016 que Pâmela conseguiu se eleger como a primeira vereadora trans de Uberlândia. "Meu gabinete possui 15 assessores, onde dou oportunidade de trabalho para lésbicas, gays e travestis na Câmara Municipal".

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Uma de suas lutas travadas dentro da conservadora Câmara Municipal de Uberlândia era a de aprovar o projeto de lei Nome Social, que reconhece o nome social de pessoas transexuais e travestis no município. Depois de resistência por parte de vereadores evangélicos e até a retirada da pauta de votação, em 5 de maio deste ano, Pâmela conseguiu o número de votos necessários para aprovar o projeto de lei que, agora, aguarda o parecer do prefeito da cidade.

Robeyoncé Lima. Primeira trans nas regiões Norte e Nordeste a usar o nome social na OAB

O nome social de Robeyoncé Lima é uma fusão entre quem a advogada de 28 anos foi e quem ela é hoje. Uma parte remete a seu nome de batismo, a outra à sua grande inspiração, a cantora Beyoncé. E é essa mistura de identidades que está estampada em sua carteira da OAB (Ordem dos Advogados), o que tornou Robeyoncé a primeira mulher trans das regiões Norte e Nordeste a usar no nome social no registro da Ordem e a primeira a passar no exame em Pernambuco.

Robeyoncé admite que é uma mulher trans privilegiada. Teve condições de estudar e entrar em uma universidade pública e, recentemente, ser chamada para uma vaga na Universidade Federal de Pernambuco, depois de passar em um concurso público. "Eu tive muitas oportunidades que outras mulheres e homens trans não tiveram. Ter me tornado servidora só ajuda mais a me sentir empoderada", conta.

A advogada, que assumiu sua identidade de gênero há três anos, viu, no entanto, suas relações familiares ficarem estremecidas. Hoje, a mãe é a única pessoa que realmente a apoia. Com os demais parentes ainda enfrenta dificuldades. "Minhas vitórias e a repercussão positiva da minha história têm ajudado a me firmar como uma mulher trans dentro de casa."

Neste ano, Robeyoncé conseguiu outra vitória importante. A advogada recebeu autorização da Justiça para retificar seu nome civil, trazendo Robeyoncé Lima para a total legalidade. "Mesmo com tantas conquistas, os desafios são os de sempre. Nossa sociedade é muito machista, mas isso não pode ser um impeditivo. Eu fico feliz em saber que posso transmitir a ideia de que avançar é possível, principalmente para outras pessoas trans que tiveram o estímulo arrancado de dentro delas."

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