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Politică

Onde o 'populismo de direita' acaba e o fascismo começa?

Considerando os recentes acontecimentos políticos no Brasil e nos EUA, é difícil não concluir que uma tempestade perfeita está se formando na democracia ocidental.
MS
Traduzido por Marina Schnoor
O presidente norte-americano Donald Trump e o presidente eleito Jair Bolsonaro.
O presidente norte-americano Donald Trump e o presidente eleito Jair Bolsonaro.

Como você pode ou não ter notado, governos democráticos estão meio que se autocanibalizando ultimamente. Com a eleição recente de Jair “Pinochet matou pouco” Bolsonaro no Brasil, provavelmente é hora de reconhecer que o “populismo de direita” não é uma anomalia ou acidente no percurso da política democrática contemporânea, mas um dos principais veículos de sua expressão. E considerando que Bolsonaro é tipo um Donald Trump anabolizado — já que Trump ainda não lamentou os dias em que regimes autoritários mataram poucos oponentes — parece uma boa hora para começar a identificar onde o “populismo de direita” acaba e o “fascismo” começa.

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O populismo é parecido com pornografia. Ele compartilha algumas similaridades com movimentos e fronteiras, mas como cada manifestação concreta dele se manifesta para falar de um conjunto nacional e historicamente específico de fantasias sociais, a maioria sabe o que é quando vê. Se você imagina democracia liberal como um conjunto de regras de autogoverno baseadas em soberania popular, o populismo pode ser melhor descrito como quando “o povo” joga sua soberania pela janela por interesses de mudança, distorcendo ou destruindo essas regras segundo seus interesses. (Quem é “o povo”, claro, depende de quem está se oferecendo para fazer essa destruição por eles.)

Como não dá para evitar fundamentar a democracia no conceito de autogoverno mais ou menos popular, o populismo sempre será uma característica permanente da nossa política. Como isso tende a ascender em momentos de crise política, econômica, social ou cultural, o populismo pode ser entendido como um tipo de resposta autoimune para a doença liberal.

Na introdução de Populism and the Mirror of Democracy, o cientista político Francisco Panizza destaca quatro circunstâncias que podem gerar movimentos populistas. O primeiro é um colapso (real ou imaginário) da ordem social, e a perda de confiança na capacidade do sistema político de restaurá-la. O segundo, que está mais ou menos relacionado ao primeiro, é quando tradições políticas parecem fracas ou exaustas, ou quando os próprios partidos políticos se tornam desacreditados como veículos do interesse do público. Mudanças econômicas, culturais e sociais dramáticas — particularmente mudanças demográficas entre classes sociais, regiões ou grupos étnicos — e a turbulência que isso pode gerar quase sempre são combustível para o fogo populista. Por último mas não menos importante: o populismo geralmente se liga ao surgimento de novas formas de representação fora das instituições políticas tradicionais. (Por exemplo, no começo do século 20, a invenção do rádio em particular permitiu que demagogos “falassem” diretamente com as massas sem muita mediação daqueles no poder.)

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O populismo então culmina num tipo de “política antipolítica”. Ele se define como contra “a política de sempre”, e toda vez que um perfil verificado no Twitter posta notícias para apontar que “isso.não.é.normal”, um anjo ganha asas. Quanto mais longe do “normal” um líder populista parece, mais atraente ele se torna para “o povo” que ele quer representar. Para um exemplo canadense, a recusa do premier de Ontário Doug Ford de fazer qualquer promessa política concreta, e só apoiar os piores impulsos libidinosos do conservadorismo suburbano, é o que o torna o líder o populista ideal.

Também vale notar que quando um populista falam sobre “o povo”, isso não é necessariamente coextensivo com as ideias de esquerda do “povo” como os pobres e marginalizados. O populismo fala para qualquer um que se sinta “de fora”, o que significa que “o povo” geralmente consiste em pessoas que acham que seu carro deveria ter mais direitos humanos que as massas realmente sofrendo para sobreviver.

Apesar dessas características parecerem mais ou menos salientes no momento histórico atual, é a nova mídia que merece atenção especial. Nem todo momento de crise produz um movimento populista em resposta; o que eu diria que o populismo realmente exige para decolar é uma crise de representação política. E dez anos depois da adoção em massa do Facebook, Twitter e seus derivados, parece que a nova mídia pode ser a chave.

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Isso vai além de simplesmente reconhecer que Donald Trump é para o Twitter o que “Bible Bill” Aberhart foi para o rádio. Podemos até argumentar que as redes sociais criaram as condições para uma total crise epistemológica na sociedade democrática.

Vamos chamar isso de anarquia epistêmica. Redes sociais visando lucro (e enfaticamente não-neutras) preencheram o vácuo das fontes tradicionais de mídia, e perdemos o elemento de “massa” da mídia de massa. Se antes isso deveria libertar nossas mentes e permitir um tipo de iluminação tecnológica, o jeito como as coisas aconteceram foi bem diferente. As redes sociais podem ser melhor compreendidas como a corda com a qual nos enforcamos.

Considere os relatórios da péssima interpretação de texto entre adultos (como o estudo onde um terço dos millennials e quase 4/5 dos baby boomers não conseguiam separar fatos de opinião), ou a indicação de que as guerras culturais online são literalmente intratáveis (como o estudo sugerindo que ser exposto a diferentes opiniões políticas na internet na verdade aumenta a polarização). Há cada vez mais evidências de que o uso exagerado de internet está literalmente fodendo nossos cérebros. Além de serem plataformas maravilhosas para a proliferação de pensamento mágico, desinformação e jogos de marketing algorítimicos para subverter a democracia, elas também funcionam como mecanismos para organizar atos de violência real. (Parabéns ao Facebook e WhatsApp por ajudar com massacres em Myanmar, linchamentos na Índia e o caos geral na política brasileira.)

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Embora saibamos que os seres humanos não precisam ficar muito tempo online para se tornarem monstros, a ênfase na nova mídia é importante para entender por que a democracia atualmente parece estar engolindo a si mesma. Jornais e revistas, rádio e televisão já foram novos meios usados por líderes para unir grupos disparatados numa única comunhão de interesses apelidado de “o povo”, mas o ecossistema das redes sociais estica esses mecanismos até o extremo atômico. O Líder está fora do Sistema, e se move entre os guardiões dos portões da elite do status quo para falar diretamente com seus seguidores online. Graças à natureza descentralizada da mídia, o trabalho organizacional pesado geralmente é feito por comunidades (autorizadas por si mesmas) que surgem na esteira da intervenção política do líder. Isso é Fuhrerprinzip.

O populismo é uma característica estrutural das democracias liberais. Em momentos de crise — real, imaginária ou fabricada — ele dá curto-circuito nas práticas democráticas baseando sua “antipolítica” na ideia de soberania popular contra “tudo que está aí”. Para pender mais pro lado do fascismo, duas coisas que se reforçam mutualmente precisam acontecer: cultura niilista e uma crise intratável.

Niilismo, simplificando, é a afirmação militante de que nada importa e foda-se quem se importa. Garret Keizer, escrevendo para o The New Republic, deu uma ótima definição útil:

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“Eu definiria niilismo como uma combinação de três elementos básicos: recusa em esperar qualquer coisa exceto a reivindicação definitiva do desespero; uma rejeição de todos os valores, especialmente valores considerados amplamente sacrossantos (igualdade, posteridade e legalidade); e a glorificação da destruição, incluindo a autodestruição — ou como Walter Benjamin coloca, uma 'autoalienação' tão extrema que a humanidade 'pode experimentar sua própria destruição como um prazer estético'. …Um niilista é alguém totalmente dedicado a estar pouco se fodendo, que acha que todos os significados são uma merda, e que deseja de todo o coração e por 'prazer estético' ver a merda bater no ventilador.”

Nacionalismo branco, misoginia e homofobia não são necessariamente marcas distintas do fascismo; intolerâncias paroquiais elevadas virtudes nacionais são uma marca registrada do populismo de direita. Fascismo — ou proto-fascismo, se a palavra com F te deixa desconfortável — ascende na intersecção onde sentimentos realmente niilistas encontram as dinâmicas ultrajadas mas vazias da reação populista à crise política. Quanto mais a crise se prolongar, for intratável ou de caráter existencial, maior será o crescimento das tendências fascistas — especialmente enquanto o sentimento niilista se espalha. A dívida do fascismo com o niilismo é mais clara pelo jeito como ele abraça a violência; violência é a virtude suprema que impõe ordem num mundo sem sentido e quebrado.

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Longe de querer alarmar alguém num longo ensaio sobre o colapso das políticas democráticas, mas é difícil evitar a conclusão de que uma tempestade perfeita está se formando. A anarquia epistêmica criada pela sobrecarga de informação das redes sociais é tipo um campo de desova do niilismo. Assim como a sociedade capitalista, com seu preceito tácito de que não há valores além dos caprichos do seu consumo. Novamente citando Keizer: a premissa básica de uma sociedade mercantilizada é que “o que você quer é o que você deve ter, e quanto mais rápido você tiver, melhor. Por sua própria operação, o mercado nos desvia dos princípios de contenção e na direção do abandono niilista."

Isso já seria ruim o suficiente sem a ameaça de uma catástrofe ecológica completa pairando sobre a civilização. Não dá pra subestimar a magnitude da crise climática, que já está em andamento e vai piorar exponencialmente sem algum tipo de intervenção internacional drástica. Essa é exatamente o tipo de política impossibilitada por populismos “nacionalistas”. Se os primeiros dias da Terra Estufa são uma indicação, não vamos lidar bem com isso.

Você pode ver como tudo isso funciona como uma espiral da morte niilista. Quando o planeta cruzar o limiar dos 2 graus Celsius, em certo ponto a degeneração da democracia provavelmente vai cair um ciclo de feedback autoritário do qual não vai conseguir sair. Isso é mais claro em lugares como a Turquia, Hungria e Brasil, mas claro que a América de Trump já deu passos largos na estrada da ruína. Encarceramento de crianças, polícia secreta e mobilizações do exército enquanto política de imigração não são um bom sinal para um futuro definido por milhões de refugiados do clima. (Acrescente a isso o fato de que a administração dele pretende entrar numa orgia final apocalíptica de superexploração industrial e você tem muitas razões para se preocupar.)

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Sob o risco de simplificar demais as coisas, aqui vai uma curta ilustração de como esse processo funciona. Os truques do populismo de direita minam as normas e funções da democracia liberal, basicamente dando fim nela. Enquanto a crise se aprofunda, geralmente resultado das politicagens do próprio populista, a ferocidade cívica aumenta e a democracia continua a degenerar. O niilismo engendrado por tecnologia, capitalismo e crise climática se torna mais e mais aparente até que seja politicamente permitido para os populistas de direita reconhecerem que o único jeito de assegurar a existência do “povo”, diante do colapso ambiental e escassez de recursos iminentes, é através de segregação e violência. Esse é o ponto onde populistas reacionários se transformam em completos fascistas do século 21.

O populismo é como um espelho através do qual as democracias podem examinar a si mesmas. O reflexo que vemos agora não é meramente feio — é o rosto de um monstro, o rosto do bicho-papão fascista que assombra nosso futuro. Não estamos condenados a usar esse rosto fascista, mas só se tivermos estômago para olhar no espelho agora, estudar toda a sua monstruosidade e aprender como discerni-lo mesmo quando ele se esconde no escuro.

Matéria originalmente publicada pela VICE Canadá.

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