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O que 'Blade Runner' acertou e errou sobre 2019

O planeta: morrendo. Carros: ainda não voam. Lámen: continua uma delícia.
blade runner outdoor tecnologia 2019
Still cortesia Warner Bros.  

Dá pra acreditar? Conseguimos, gente. Chegamos no futuro, sim, O Futuro.

Bem, pelo menos chegamos n'O Futuro do filme Blade Runner lançado em 1982, mas passado em novembro de 2019. Aliás, foi graças a uma cena da sequência Blade Runner 2049 de Denis Villeneuve, agora sabemos que os eventos do primeiro filme começaram exatamente em 20 de novembro de 2019. A visão sombria de Los Angeles imaginada pelo diretor Ridley Scott, o diretor de fotografia Jordan Cronenwetch, o roteirista Hampton Fancher e o artista conceitual Syd Mead finalmente chegou. Ou não?

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Em 1982, os EUA estava perdendo uma guerra comercial para o Japão, Michael Jackson lançou Thriller, e a Pessoa do Ano eleita pela revista TIME foi um computador. Foi uma época em que versões distópicas do futuro eram limitadas as páginas pós-modernas de romances de ficção científica New Wave, de autores como Philip K. Dick (cujo livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? Inspirou Blade Runner) e Harlan Ellison, ou nas imagens extravagantes de quadrinhos como Juiz Dredd. Nisso tudo, o filme de Scott virou um marco por conseguir imaginar como “o futuro” pareceria realisticamente, transcendendo décadas e gêneros, e desde então se tornou um dos filmes mais influentes de ficção científica de todos os tempos, talvez até mais importante do que longas como Metropolis, 2001: Uma Odisseia no Espaço ou Star Wars.

Porém, o quanto que a tecnologia e cultura imaginada em Blade Runner realmente aconteceu, seja para melhor ou pior? Aqui analisamos quão bem (ou não) o filme previu o futuro:

“'Mais humano que o humano' é nosso lema”

Em Blade Runner, os “replicantes” são humanos sintéticos feitos pela engenharia biológica cuja força, agilidade e características superiores os tornam ideais para o trabalho escravo fora da Terra, especialmente em ambientes industriais perigosos, zonas de combate e para colonizar outros planetas. A questão é que vários replicantes se rebelaram com a sua situação e escaparam para a Terra. Por conta disso, toda uma divisão da polícia foi criada para rastrear e “aposentar” (executar) os replicantes. Isso você sabe, claro, é basicamente a história do filme de 1982.

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No nosso 2019, a tecnologia moderna ainda não chegou ao ponto onde robôs podem ser confundidos com seres humanos na aparência e personalidade, mas estamos chegando perto. Para lidar com o rápido declínio de sua população, o Japão continua aperfeiçoando sua robótica numa tentativa de dar vida a funcionários de hotel, companhias pessoais e até burocratas do governo. E se os engenheiros da Boston Dynamics pararem de atacar seus robôs quadrupedes – capazes de correr em alta velocidade, abrir portas e pular obstáculos – talvez um dia teremos mais máquinas como Roy Batty, que aprende o valor da vida, em vez de robôs como o Exterminador do Futuro.

Fodemos tanto o meio ambiente que temos que achar outro planeta pra viver

Ninguém explica exatamente quão péssimo é o clima em Blade Runner, mas dá pra entender a situação. Los Angeles é superpovoada, as ruas são cheias de lixo e o smog de poluição é tão pesado que a cidade está sempre escura. Esse é um mundo onde o sol só pode ser visto da cobertura da Tyrell Corporation, que literalmente paira sobre Los Angeles em megaestruturas de pirâmide que deixariam o Ozymandias orgulhoso.

Está sempre chovendo em Blade Runner (em parte pra mascarar as imperfeições do cenário, segundo Ridley Scott) e a situação é tão cagada que todo mundo quer ir embora para “ter a chance de começar de novo numa terra de oportunidade e aventura” nas colônias espaciais que nunca são mostradas no filme – e que podem nem ser tão legais assim. O famoso monólogo final na chuva feito por Roy menciona “naves de ataque em chamas”, implicando batalhas espaciais. E por que tem tanta publicidade (outdoors em dirigíveis, por exemplo) pra vender a ideia de um suposto paraíso pras pessoas?

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Aqui no mundo real, ainda não tivemos oportunidade de sair da Terra – o mais perto disso é a Estação Espacial Internacional ou, se você é o Elon Musk, um carro esportivo elétrico arremessado no espaço – mas, com sorte, talvez a gente tenha tempo antes do meio ambiente ser estragado pra sempre: Onze anos, pra ser exato, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que estima que as emissões de dióxido de carbono precisam ser cortadas em 45% até 2030 para evitar “danos irreparáveis”. Para atingir essa meta, muitos cientistas acreditam que é preciso decisões políticas bem sérias nos próximos 18 meses ou a Terra vai se juntar às memórias de Roy Batty como outra coisa “perdida no tempo, como lágrimas na chuva”.

Não rolou ainda carros voadores, mas drones sim. E talvez táxis voadores?

No longa, carros voadores chamados "spinners”, capazes de rodar nas ruas além de decolar verticalmente e pousar, transportam as pessoas em Blade Runner usando três motores: combustão interna, jato e antigravidade. (Então não era melhor eles chamarem “voadores” ou algo assim? Rodas normais de carro giram; essas máquinas meio que só flutuam no ar?) O designer Syd Mead, que também ajudou a dar a Alien e Tron seus estilos visuais marcantes, conceitualizou os spinners de Blade Runner como uma mistura de automóvel e helicóptero, resultando numa criação que ajudou a inspirar veículos similares em outros filmes de sci-fi como O Quinto Elemento e os episódios 1, 2 e 3 de Star Wars.

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No presente, uma startup de tecnologia em Munique, Alemanha, chamada Lilium recentemente testou um “táxi-aéreo” totalmente elétrico, que pode carregar cinco passageiros a quase 300 km/h, com zero emissão. Eles querem começar a oferecer o serviço em 2025. Se você prefere não dirigir e só receber coisas em casa, o serviço de entrega “Air” da Amazon Prime deve estar disponível até o final do ano, onde drones supostamente irão entregar pacotes individuais em 30 minutos ou menos. Enquanto essas máquinas voadoras não são acessíveis, temos que nos conformar com carros que se dirigem sozinhos (se eles não nos matarem primeiro).

Publicidade digital em todo lugar

Outdoors digitais de quase 60 metros da Coca-Cola e Pan Am brilham sobre a Los Angeles do filme, enquanto placas de néon do Atari, RCA e Cuisinart iluminam as ruas lotadas. Publicidade está por todo lado em Blade Runner (mesmo que algumas das companhias, como Pan Am e Atari, não existam mais), bem parecido com o que acontece hoje. O público que assistiu Blade Runner 2049 em 2017 no Regal LA Live, na Olympic Boulevard, pode ver uma propaganda de 24 metros da Coca-Cola no lado do Ritz-Carlton, como no filme. Com a tecnologia de LED ficando mais barata e fácil de implementar, as propagandas nas ruas são cada vez mais digitais, desde em outdoors até displays em vitrines.

Blade Runner imaginou que uma vibe néon futurista estilo Tóquio dos anos 1980 seria amplamente adotada, até mesmo em Los Angeles. Estranhamente, as previsões para tecnologias do futuro não se estenderam para a comunicação; enquanto o filme conseguiu prever a ascensão dos chats por vídeo, nenhum dos envolvidos no filme parece ter imaginado que um dia todo mundo teria smartfone. Rick Deckard (Harrison Ford) tem que usar um telefone público para falar com Rachael (Sean Young) no bar The Snake Pit, onde ele paga $1,25 por uma chamada em vídeo de 30 segundos. Imagina quanto custava uma ligação pra outro planeta?

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Cozinha asiática como a comida de rua padrão

Comida asiática ainda era considerada exótica na Hollywood dos anos 80. Nos filmes, era tratada desde uma iguaria chique ou algo muito estranho que você não gostaria de comer. Quer exemplos? É só lembrar da personagem patricinha em Clube dos Cinco, interpretada por Molly Ringwald, sendo considerada uma elitista fresca ao levar sushi pra almoçar na detenção. Em Os Aventureiros do Bairro Proibido de 1986, a culinária asiática foi retratada como algo barato e americanizado, servida em restaurantes em becos escuros como o Dragon of the Black Pool enquanto as pessoas discutiam “magia negra chinesa”. Há ainda aquela cena em Uma História de Natal (1983) que os personagens são obrigados a pedir um rango asiático depois que o cachorro do vizinho come o peru da ceia.

Em Blade Runner a comida asiática parece ser uma culinária de consumo casual na paisagem americana distópica. Uma comida de rua mesmo. Claro, o Deckard não manja muito como usar os hashis quando come no White Dragon Noodle bar no centro de Los Angeles. O filme dá um senso de normalidade quando ela aparece no começo do filme. O restaurante é popular (Deckard tem que esperar por uma cadeira), e quando o policial Gaff (Edward James Olmos) finalmente consegue arrastar Rick pra fora de lá, o ex-policial turrão leva a tigela com ele. E hoje, como Rick, se você parar num restaurante de lámen tanto em Los Angeles quanto em São Paulo na hora do almoço ou jantar, também vai ter que entrar na fila.

Trinta anos atrás, Blade Runner apresentou uma visão de 2019 que se tornou incrivelmente presciente. Só o tempo dirá se Blade Runner 2049, que se passa daqui trinta anos, vai chegar tão perto de como o mundo vai parecer lá. Esperamos que não muito, porque a maioria das pessoas do filme tem que basicamente comer insetos criados em “fazendas de proteína” e cidades inteiras, como San Diego, viraram grandes lixões. Daquela época até agora, ninguém sabe o que o futuro reserva.

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