O fim dos trabalhadores do centro antigo de Salvador
O serralheiro Dionísio dos Santos. Foto: Caroline Lima/ VICE

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O fim dos trabalhadores do centro antigo de Salvador

Serralheiros, marmoristas e escultores que fizeram história na Ladeira da Conceição temem novo projeto da prefeitura.

Além de ser o prefixo da palavra que nomeia sua profissão, é o mar da Baía de Todos os Santos que atrai os olhos de Simone Venâncio, 37, durante o expediente. Há 20 anos instalada na Ladeira da Conceição da Praia, no centro histórico de Salvador, Bahia, a marmorista posa dentro de sua pequena oficina ao lado de pixações na parede que dizem "Reformar, sim. Expulsar, não" e "O centro antigo sangra".

A marmorista Simone Venâncio, há 20 anos instalada na Ladeira da Conceição. Foto: Caroline Lima/ VICE

Com a aprovação do Programa Revitalizar (Projeto de Lei nº 302/16) na Câmara Municipal de Salvador em abril deste ano, trabalhadores e moradores da ladeira e da poligonal, que abrange 10 bairros, correm o risco de ter suas propriedades confiscadas pela prefeitura comandada por ACM Neto (DEM) se não as reformarem ou restaurarem no prazo estabelecido. Há muito tempo o centro histórico, tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1984, virou motivo de debate entre moradores, trabalhadores, ativistas e políticos na capital baiana.

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"Tenho meus clientes aqui, eles já sabem onde me encontrar", lamenta a única mulher a trabalhar como artífice na Ladeira da Conceição, conhecida pelos seus casarões construídos dentro de arcos. No final do século 19, esses serviços se instalaram pela região e tornaram-se parte da cultura local.

Simone Venâncio, a única mulher a trabalhar como artífice na Ladeira da Conceição. Foto: Caroline Lima/ VICE

Uma das personalidades locais, o ferreiro José Adário dos Santos, 70, mais conhecido como Zé Diabo, recebe visitas de gente do mundo todo para comprar suas peças para candomblé, mas, hoje, sustenta uma opinião apocalíptica sobre a profissão. "Vocês não têm mais interesse em aprender esse tipo de ofício. Um dia isso vai acabar", queixa-se.

O ferreiro Zé Diabo, que produz peças para candomblé. Foto: Caroline Lima/ VICE

Há 28 anos instalado na ladeira, José dos Santos, 60, conhecido como Zé Grande, diz nem saber para onde ir se tiver de abandonar sua serralheria. "Pago minhas contas com o dinheiro que ganho aqui. Tô estabelecido. Se eu sair daqui pra ir prum bairro, porque no centro não vou encontrar mais lugar, vou fazer tudo de novo, começar do zero", fala à VICE. "Não vou conseguir pagar minhas contas. Vou precisa fazer novos clientes. Essa retirada daqui me prejudica muito."

O temor dos trabalhadores da ladeira, especificamente, é de que, mesmo com os incentivos fiscais e benefícios propostos pela lei, não possam arcar financeiramente com os custos e a mão de obra, já que muitos sequer são proprietários dos imóveis e terão como única opção ir embora para outro lugar.

O serralheiro Dionísio dos Santos. Foto: Caroline Lima/ VICE

Mila Paes, diretora de desenvolvimento urbano da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), defende que o objetivo do programa é estimular a requalificação de imóveis degradados na região do centro. "A lei, além de dar incentivos, como a isenção de impostos sobre reforma e restauro, também isenta o imóvel de pagamento do ITIV (Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis) caso seja vendido", disse em entrevista por telefone.

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Em breve, a prefeitura irá começar a enviar notificações para 300 imóveis que foram tido com condições ruins de habitação ou de degradação. "Eles apresentam algum risco pra cidade", pontua Mira. Se dentro de cinco anos após o aviso os imóveis não forem totalmente reformados ou restaurados, serão confiscados pela prefeitura.

O serralheiro Zé Grande. Foto: Caroline Lima/ VICE

Ativistas que atuam pelo centro são contra o programa. "A lei do Revitalizar prevê que esses benefícios incidam sobre os proprietários. E a vasta maioria dos trabalhadores do centro histórico não é de proprietários, mas de locatários ou de pessoas que encontraram o imóvel vazio e simplesmente o ocuparam", menciona Manoel Nascimento, integrante do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), organização não-governamental formada por jesuítas e profissionais que realizam trabalho político-educativo com a população.

"Por beneficiar somente os proprietários, o Revitalizar exclui uma parcela considerável de moradores e trabalhadores do centro histórico", afirma Manoel.

A marmorista Simone Venâncio e um familiar. Foto: Caroline Lima/ VICE

Para o ativista, uma das problemáticas é o fato de o programa estimular a compra de imóveis que, no futuro, sejam voltados para "atividades culturais, de economia criativa, diversão, lazer e entretenimento, de educação, pesquisa e desenvolvimento tecnológico", segundo o texto da própria lei. "O tipo de serviço prestado pelos artífices, que é a produção artesanal, não está inclusa. Além de eles não serem proprietários, os serviços que eles prestam não estão dentro dos critérios. Então, fica todo o entorno beneficiado por esse programa e eles, não."

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Manoel acredita que o centro histórico volta a ser a menina dos olhos do mercado imobiliário. "Várias medidas têm feito com que seja difícil permanecer no centro se você não é ligado a esses setores da economia ou se você é morador de baixa renda", declara. "Há um processo de gentrificação em curso e o Revitalizar é parte dele."

O escultor Zé Diabo. Foto: Caroline Lima/ VICE

A diretora de desenvolvimento urbano da Sedur rebate essa ideia, afirmando que a prefeitura não tem condições de arcar com as reformas. "A preocupação é evitar coisas como o que aconteceu há dois meses, um desabamento com vítima", aponta.

Recentemente, o Centro de Convenções, cuja parte da construção inaugurada 1979 e reformada em 1993 desabou, ferindo duas pessoas. "Se tem algo que não está dentro do plano ou do objetivo da prefeitura, hoje, para o centro, é expulsão de morador e reintegração de posse."

O serralheiro Dionísio dos Santos. Foto: Caroline Lima/ VICE

Para o ativista Manoel, o órgão público se aproveita de questões como desabamentos e deslizamentos motivados por chuva para "forçar a remoção desses trabalhadores". "Isso já aconteceu uma vez. Inclusive, a prefeitura interditou toda a Ladeira da Conceição para que a clientela não tivesse acesso sob o argumento de que tanto os arcos quanto algumas casas estariam em risco", crava.

O serralheiro Dionísio dos Santos em ação. Foto: Caroline Lima/ VICE

É preciso balancear os interesses das prefeituras e do capital imobiliário nos centros urbanos, acredita o arquiteto e mestrando em arquitetura e urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Igor Queiroz. "O que não podemos é reafirmar esse discurso da 'revitalização' em áreas onde já existe uma vida que pulsa com tamanha força, sobretudo quando falamos dos centros urbanos aqui no Brasil", sinaliza. "A expulsão dos ferreiros da ladeira só criaria mais um espaço privativo e inacessível à maioria da população da cidade, sobretudo à população negra, que sempre foi excluída dessas decisões", considera.

O discurso do serralheiro Dionísio do Santos, 52, há três décadas na região, soa melancólico. "Me sinto um pouco abatido, humilhado. Com tanta coisa pra melhorar, como um bocado de hospitais parados que passam no jornal, querem tirar quem está trabalhando pra poder reformar uma coisa que não tem necessidade", diz.

A Ladeira da Conceição da Praia com vista para a Baía de Todos os Santos. Foto: Caroline Lima/ VICE

Historicamente, lojistas e moradores sabem que a ladeira é o polo da capital para buscar esse tipo de serviço artesanal especializado. "Se não estivermos aqui, eles nem vão saber onde procurar", comenta Dionísio, que não parece convencido com a justificativa da prefeitura de que os imóveis possam apresentar risco. "Aqui não tem nada caído, nada degradado. Se estivesse caindo, não ia passar ônibus", fala, referindo-se à Ladeira da Montanha, acima dos arcos. "Nós não podemos ficar a Deus dará."

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