Guia Noisey para curtir um Yellow Magic Orchestra

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Guia Noisey para curtir um Yellow Magic Orchestra

Sampleado por J Dilla, regravada por Michael Jackson e uma das maiores influências da cena techno de Detroit, o trio japonês definiu todo um gênero e transformou a música eletrônica.
Lia Kantrowitz
ilustração por Lia Kantrowitz
SF
Traduzido por Stephanie Fernandes

Matéria originalmente publicada no Noisey US.

Desde que formaram a banda propriamente dita, em 1978, Haruomi Hosono, Ryuichi Sakamoto e Yukihiro Takahashi misturaram estilos e gêneros, e criaram um dos sons pop mais ousados e esquisitos da história. Os caras experimentaram de tudo, de um synth-funk sombrio a trilhas de games, passando até pelo artpop romântico, o que rendeu a Sakamoto uma aparição (e uma composição) no filme Furyo: Em Nome da Honra, ao lado de David Bowie. Não à toa, são tão influentes entre os mais diversos tipos de música computacional.

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Sampleado por J Dilla, regravado por Michael Jackson, e citado por Juan Atkins e Derrick May como peça-chave no que viria a se tornar o techno de Detroit, o trio de Tóquio desempenhou um papel importantíssimo nos anos de formação da música eletrônica, tanto no underground no mainstream. Mesmo assim, parece que a Yellow Magic Orchestra é sempre subestimada; diferente das turnês grandiosas e retrospectivas em museus do Kraftwerk, pioneiros do synth, o trio não conta com uma popularidade explosiva no Ocidente, em parte por causa da carreira solo prolífera de cada membro, e da discografia rara, ainda que extensa, em plena era da internet.

Com oito álbuns gravados em estúdio e inúmeras empreitadas solo, a YMO fez um som bem abrangente, inspirado nas raízes do jazz americano, em conjunto com diversas influências. Formado em 1978 com o intuito de divertir e, ao mesmo tempo, homenagear o “exótica”, gênero atonal dos músicos lounge Martin Denny e Les Baxter, o trio buscou interpolar essa salada kitsch com a tecnologia enquanto veículo de intercâmbio cultural. Da mesma forma que a obsessão do Kraftwerk com automóveis nos ajudou a entender a profunda humanidade da relação simbiótica entre homem e máquina, a YMO compreendeu as possibilidades fantásticas — e o terror paralisante — que os avanços tecnológicos podem trazer à sociedade. No rescaldo da devastação brutal do Japão pelas bombas atômicas, a tecnologia virou ferramenta de progresso e reconstrução, alavanca do crescimento econômico explosivo dos anos seguintes.

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Suave e alegre, ainda que sempre preocupada com o rigor conceitual, a YMO construiu diversos universos estéticos, álbum após álbum, refletindo as mudanças constantes do mundo e dos processos criativos. Do comunismo cibernético do álbum Technodelic, de 1981, à fachada pueril do Naughty Boys, de 1983, e a comédia kitsch do Service (que conta com vários esquetes do Super Eccentric Theatre tirando sarro de programas televisivos populares), o comprometimento inabalável da banda com a estética ainda é palpável na geração que inspirou, nos quatro cantos do mundo. Com vídeos dignos de MTV e performances estilozérrimas, ao estilo do Devo, a YMO deixou clara a diferença entre o otimismo maroto do início da era post-punk e a megalomania dos astros pop americanos, e ainda abriu caminhos para o j-pop, que segue dominando o Japão quase cinquenta anos depois.

Depois de um breve hiato voltado para suas carreiras solo, os três músicos começaram a fazer experimentos com novos sons eletrônicos e, no Technodon, o álbum improvisado de reunião da YMO, de 1993, incorporaram fortes batidas techno e elementos de acid house ao som da banda. Enquanto isso, a carreira solo de Ryuichi Sakamoto como ator e compositor de trilhas para filmes continuou a dar frutos, movimento que seguiu firme e forte com o lançamento do async, seu décimo sexto álbum gravado em estúdio, no começo do ano passado. Com remixagens de Arca, Yves Tumor e Oneohtrix Point Never, parece que uma nova geração de músicos está começando a reconhecer o talento de Sakamoto, tanto em sua carreira solo quanto em suas três décadas de criações com a YMO.

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É impossível descrever a Yellow Magic Orchestra por via de comparações; o trio ocupa um patamar único, seja na cultura japonesa ou ao redor do mundo. A discografia é tão densa e diversificada, que fica a dúvida: por onde começar? Bom, para entender a YMO, acima de tudo, é preciso se preparar para uma boa dose de kitsch açucarado. Com o techno acelerado do último álbum e refrãos pop grudentos ao estilo de Depeche Mode e The Human League, a YMO agrada gregos e troianos.

Exótica

Todos os integrantes da YMO já eram louvados antes de fundar o grupo. Músico reconhecido na cena de Tóquio nos anos 70, Haruomi Hosono tocava em uma série de bandas de jazz e rock, como a Tin Pan Alley, coletivo de compositores que fabricava hits para os cantores populares do país. Os primeiros álbuns de Hosono evocavam uma sensação aconchegante, um som de estúdio que parecia mais arraigado no yacht rock do Steely Dan e dos Doobie Brothers do que qualquer outra obra posterior sua, na YMO. Comprometidas com o rigor técnico do jazz, as primeiras faixas do trio, como "Shimendoka” e “Worry Beads”, introduzem ao ouvinte, gradualmente, sintetizadores e máquinas de ritmo, com sons que homenageiam a música popular japonesa, ainda que ligados a diversas tradições do jazz ocidental.

Junto com Takahashi e Sakamoto (que tocaram bateria e teclado nas gravações dos primeiros LPs de Hosono), Hosono continuou a explorar o kitsch americano da metade do século XX com o lançamento do disco de estreia da Yellow Magic Orchestra, de título homônimo à banda. “Firecracker”, um dos primeiros singles de Hosono, regravado para a estreia do trio, mistura o tradicionalismo japonês com o mesmo tipo de quartas, quintas e oitavas paralelas que Hollywood usava para passar uma ideia de “orientalismo”. No embalo de músicos californianos de lounge como Martin Denny e Les Baxter, a YMO estabeleceu seu charme próprio em meio a esse pastiche cultural cômico; e com sons eletrônicos semelhantes aos instrumentos japoneses tradicionais, faixas como “Mad Pierrot” e “La Femme Chinoise” ajudaram a transformar esse intercâmbio musical em um frenesi crescente, besuntado de sintetizadores.

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As influências descaradas de “exótica” acabaram virando pano de fundo à medida que a banda se voltou mais para a música eletrônica, mas a presença do estilo ainda transpareceu em momentos pontuais, como na faixa “Seoul Music”, do álbum Technodelic, ou “Rydeen”, do Solid State Survivor. Talvez um pouco menos palatável que o pop de batidas dançantes ainda por vir, essas raízes cravadas no jazz revelam um trio de peritos em música, profundamente cientes de sua própria história, capazes de concretizar ideias complexas de composições, de maneiras que até hoje soam exuberantes.

Playlist: “Exotic Dance (Yellow Magic Orchestra) – Haruomi Hosono” / “Firecracker” / “Mad Pierrot” / “Rydeen” / “Seoul Music” / “Rap Phenomena”

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Moderno & Romântico

À medida que a banda passou a explorar um pop mais inebriante, marcado por sintetizadores, o mundo ao redor foi mudando. Diferente do álbum de estreia, de 1978, inspirado nos sons americanos do lounge e “exótica”, o álbum Solid State Survivor, de 1979, soa mais como o Kraftwerk, com um vocoder das antigas e arranjos tirados de uma máquina de ritmo. O hit “Behind the Mask” chegou a ser regravado por Michael Jackson, para usar no álbum Thriller, mas acabou que a versão foi descartada por conta de um conflito de direitos autorais com o trio. Tempos depois, a faixa foi inclusa no álbum póstumo de Michael, de 2010, com novas letras dançantes, escritas pelo próprio astro.

Michael sabia identificar uma boa melodia. Nos anos 80, por mais que a YMO explorasse novas tecnologias, como o sintetizador ARP Odyssey e a drum machine Roland TR-808, uma parcela de sua obra ainda soava, para a surpresa de todos, como um hit de post-disco e New Wave, focado na melodia, prontinho para tocar no rádio. No álbum BGM, de 1981, a banda construiu todo um universo estético com sintetizadores, um universo que mais tarde viria a influenciar bandas como The Human League e Eurythmics, e baladas como “Expected Way” (do álbum Naughty Boys, de 1983) mergulharam de cabeça na água com açúcar do New Romanticism, movimento londrino. Junto com bandas inspiradas em Bowie, como o Japan, Boy George e Ultravox, a YMO estabeleceu uma estética passional no início dos anos 80: o álbum Naughty Boys, em particular, mostrou o lado mais caloroso do trio, com acordes alegres e o efeito pungente de tarol que passou a dominar a música no fim da década.

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A influência do artpop não se limitou a um só álbum, e marcou uma série de faixas da banda na época. Em músicas como “Pure Jam” e “Neue Tanz” (do álbum Technodelic, de 1981), a YMO abraça batidas metálicas dignas de Phil Collins, ao passo que “The Madmen” (do álbum Service, de 1983) parece ter sido composta por David Byrne. É em momentos assim que a banda evidencia sua verdadeira identidade Alpha FM.

Playlist: “Cue” / “Music Plans” / “Expected Way” / “Opened My Eyes” / “The Madmen” / “You’ve Got To Help Yourself” / “Neue Tanz” / “Day Tripper” (cover dos Beatles)

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Bits & Beats

Em 1984, Hosono lançou o álbum Video Game Music. Resultado de uma parceria de longa data com os desenvolvedores de games da Namco, o LP foi uma das primeiras obras musicais compostas para 8 e 16 bits a ser levada a sério. Na época, o gênero se limitava a singles e EPs, criações de amadores da computação curtindo um hobby, ou jovens atrás de uns trocados. Hosono tratava a composição eletrônica como uma forma legítima de arte que, graças a seu sucesso com a YMO, abriu portas para toda uma nova geração de compositores de 8 e 16 bits no mundo dos games.

Além disso, boa parte das músicas da YMO foi influenciada por video games. “Computer Game”, faixa de abertura do disco de estreia, começa com uma enxurrada de vibrações eletrônicas, abrindo caminho para uma série de melodias complexas, incluindo samples de jogos de fliperama, como Space Invader, Gun Fight e Circus. Com acordes complexos e um cuidado redobrado com a qualidade afetiva da melodia, músicas como “Rydeen” e “Yellow Magic” costumam ser mencionadas como inspiração para as primeiras trilhas sonoras da Nintendo, e agora que ficamos sabendo que Michael Jackson colaborou com a trilha de Sonic 3, cabe nos perguntar se a YMO também não estava nesse bonde.

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Playlist: “Computer Game (Theme From the Circus)” / “Rydeen” / “Yellow Magic (Tong Poo)” / “Solid State Survivor” / “Ongaku” / “Technopolis”

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Synth-funk

Em 1982, o Afrika Bambaataa entrou para a história com um sample do Kraftwerk. Um ano depois, o DJ transformou “Firecracker” em uma obra-prima sombria de boombox, em “Death Mix Pt. 2,” música do lado B do álbum ao vivo do Death Mix. Embora hoje seja tratada como uma nota de rodapé na história do gênero, a YMO virou figurinha carimbada dos sets dos DJs, e já foi sampleada por meio mundo, de Mos Def e De La Soul a J Dilla, 2 Live Crew, Mariah Carey e Jennifer Lopez. Além de seus sons de 8 bits virarem referência, as batidas esquisitonas de sintetizadores da YMO contaram com uma influência inegável do funk, que casou muito bem com a miscelânea do hip hop. Em faixas como “Cosmic Surfin’” e “Rap Phenomena”, a banda explorou os elementos funk do pop dance e criou uma sinfonia de sintetizadores muito bem amarrada, isso uma década antes do G-funk ser um subgênero reconhecido nos Estados Unidos.

Playlist: “Cosmic Surfin’” / “Firecracker” / “Yellow Magic” / “Chinese Whispers” / “Pure Jam” / “Rap Phenomena” / “Citizens of Science” / “Behind the Mask”

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Acid House

“Techno é quando os sons do George Clinton e do Kraftwerk ficam presos em um elevador.” Atribuída a Derrick May, do grupo The Belleville Three, a citação não faz jus à diversidade de influências presentes nas primeiras demos do Cybotron, que também bebeu bastante da fonte da YMO. No detalhado livro de Simon Reynolds sobre a história da cultura rave, May acrescenta que Bootsy Collins, Giorgio Moroder e a YMO também tiveram um forte impacto nos anos de formação do Cybotron, grupo que definiu o techno e colocou Detroit no mapa da música eletrônica. “Costumávamos filosofar sobre o que essas pessoas pensavam quando compunham, e que rumos achavam que a música tomaria”, ele contou numa entrevista. “A gente apagava as luzes, sentava e se curtia ao som de Bootsy e Yellow Magic Orchestra. Jamais tratamos o trabalho como mero entretenimento, era uma filosofia séria.”

Felizmente, essa influência não foi uma via de uma mão só, e nos anos 90, a própria YMO experimentou com o techno e o acid house em seu lendário álbum de “reunião”, o Technodon. Recheadas de batidas fortes e efeitos abafados, produzidos com um sintetizador TB-303, faixas como “High-Tech Hippies” e “Nanga Def?” resgataram as melodias eletrônicas da década anterior e se provaram tão dançantes quanto os veteranos do gênero. Na segunda metade do álbum, o trio explorou um estilo mais meloso de ambient house, mais puxado para os grupos europeus de dance, como 808 State, Orbital e The Orb. Embora Technodon seja o único exemplar da YMO no estilo, a mistura de sua fórmula estabelecida de synth-pop com a vontade de seguir expandindo a paleta com novos sons comprova que o trio continuou focado em inovação, mesmo quando os integrantes estavam mais envolvidos com os seus trabalhos solo.

Playlist: “Nanga Def?” / “Dolphinicity” / “High-Tech Hippies” / “Chance” / “U. T” / “Key” / “Nostalgia” / “Floating Away”

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