Sim, o Brasil tem burlesco
A artista burlesca Redbone pousa para as lentes de Mariana Bernardes no back stag.

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Sim, o Brasil tem burlesco

Festival internacional de arte burlesca permanece como símbolo de resistência da sexualidade desviante no Rio de Janeiro e no país.

“Aqui as mulheres que detém os meios de produção.” Uma mulher linda, gorda, de cabelos longos, pretos e cílios postiços maiores do que ornamentos que tapavam seus seios brancos começa sua apresentação em um pequeno inferninho em Copacabana para uma plateia curiosa. A quarta edição do Yes, Nós temos Burlesco – Festival Internacional ocupou espaços tradicionais do Rio de Janeiro para apresentar uma performance artística que vai muito além da habilidade de tirar a roupa lentamente: durante quatro dias (entre 19 e 22 de abril), foi a confirmação de que as mulheres ali estavam comandando os meios de produção.

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Antes de ir ao festival a convite do Sexlog, rede social de sexo liberal e swing e também um dos apoiadores do evento, tudo o que eu sabia sobre a arte do burlesco se resumia a Bettie Page e algumas artistas do neoburlesco que costumam aparecer no Suicide Girls. No entanto, foi circulando pelos camarins e conversando com as artistas convidadas do festival que pude entender o poder da sátira, da piada e da subversão de corpos que o artista burlesco desnudar perante uma plateia.

O festival nasceu em 2015, criado pela atriz e preparadora de atores Isabel Chavarri e pela diretora teatral Giorgia Conceição – também conhecidas, respectivamente, por Delirious Fênix e Miss G. De forma independente e bastante "faça-você-mesmo", a ideia de criar um evento ambicioso como esse foi justamente para poder valorizar artistas amadores e manter unida a comunidade burlesca brasileira. Após as três primeiras edições sem qualquer apoio de grana ou patrocínio, as artistas contaram com a ajuda na organização dos artistas burlescos paulistanos Marcello D’Avilla e Aline Marques, representantes dos movimentos burlescos Feira das Vaidades e Burlesque Takeover.

Marquesa Amapola, de maquiagem azul, se prepara para a grande apresentação do festival no teatro Rival. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

“(…) É um momento de encontro de todo mundo e de fortalecimento da cena. Aqui não é um local de disputa, mas sim de acolhimento e de troca. Essa troca pra mim é uma coisa que não se aprende em faculdade nenhuma, é uma troca física que fortalece e que faz dar um impulso para as pessoas fazerem também”, conta Aline.

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Na edição de 2018 os artistas celebraram o tema Diversidade. De fato, não havia como dizer que as apresentações não cumpriram esse papel. Nos dias de festival, vimos mulheres e homens das mais variadas idades, tipos corporais, identidades de gênero e gostos dançando e rebolando nos palcos pra ninguém se sentir excluído.

Delirious Fênix, uma das organizadoras do festival. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Para quem está mais acostumado com os eventos de sexualidade que acontecem em São Paulo (me incluo nessa), foi uma agradável surpresa ver tanto glitter, penas e cílios postiços reunidos no calor do Rio de Janeiro. A primeira apresentação foi em um inferninho chamado La Cicciolina, localizado na Avenida Prado Júnior (conhecida por ser ponto de prostitutas e eternizada no caótico longa Copacabana Mon Amour do Rogério Sganzerla) e a segunda, a principal, no Teatro Rival na Cinelândia, que além de ser tradicional na história do teatro brasileiro também divide o CEP com inúmeros cinemas pornôs – resquícios de um Rio de Janeiro perdido entre intervenções militares e gentrificações inevitáveis.

Amplificando o clima burlesco, o Rio guarda resquícios de um glamour esquecido e decadente, como as festas e apresentações ciceroneadas por Carlos Machado, rei do show business nacional dos anos 1950 e 1960, e os próprios puteiros jurássicos que agora dão o último respiro de vida ao abrigar o festival organizado por mulheres parte de uma nova geração de sexualidade desviante.

“Fui puta aqui no Cicciolina e fui puta em outros lugares.” Vestida de preto como uma personagem de filme noir, Mayanna Rodrigues começa a contar sua trajetória de stripper, trabalhadora sexual e artista no Brasil, num pequeno palco espelhado do inferninho. Hoje Rodrigues é diretora de filmes adultos, dançarina e artista alternativa, mas foi pelos puteiros que despontou como dançarina. Sua história como stripper começou em 2004, viajando por casas pelo Brasil todo para fazer performances. Segundo ela, o cachê pago pelas casas estão longe de ser convidativos, mas dão a chance de você aumentar o valor do programa para os clientes.

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“No puteiro, os strips costumam ser mais longos, porque tem interação com o público. A gente leva um cara no palco e tudo mais. Mas a diferença principal do strip-tease de puteiro com o burlesco é o público”, explica Mayanna, conhecida também como Black Rainbow na cena burlesca. “No puteiro a gente acaba fazendo para um público 100% masculino, que está interessado no que você tem debaixo da roupa. Já no burlesco, é o contrário, o público é um público misto, quase sempre grande parte é feminina e LGBT. É uma galera interessada no conjunto da obra.”

Mayanna também frisa que ser uma artista burlesca é suar a camisa sozinha – de pensar no tema da sua apresentação até costurar os paetês da sua fantasia. “Basicamente, é você fazer tudo por conta própria. Primeiro você tem que ter uma veia criativa, isso é mais importante do que ser desinibido, gostar do palco e ter uma boa coordenação motora. Você precisa estar ciente de que você está entrando nessa por sua conta e risco, porque a gente não tem qualquer apoio de nada. (…) Lá fora, a galera sobrevive do burlesco, aqui a gente ainda não consegue. Mas ser burlesco é isso. É você ter consciência do seu corpo, da consciência de que você está levantando uma bandeira artística que você tem que se responsabilizar por ela”, conta.

Redbone se prepara para uma de suas apresentações. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Não havia uma pessoa no festival que não costurou a própria fantasia. Desde os iniciantes do burlesco até artistas mundialmente reconhecidas como Redbone, uma das convidadas de honra que se apresentou no teatro Rival na noite do dia 21 de abril por conta do patrocínio do Academy of Burlesque. “O burlesco é praticamente 100% DIY punk rock”, explica a norte-americana nascida em Minnesota, considerada o “Ciclone do Burlesco”.

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Redbone é uma mulher negra e queer e contou para mim que foi no burlesco onde sua identidade encontrou espaço para se expressar. Na mesma linha de pensamento, Giorgia Conceição, confirmou que esse tipo de performance de fato é reservada para os rejeitados da sociedade: mulheres cis e trans e LGBTS que dificilmente são protagonistas na arte.

Miss G. no backstage. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

“Na Antiguidade, a partir do momento que oficializaram a dança e o teatro como linguagens oficiais como uma estratégia de propaganda do governo, as mulheres foram proibidas de entrar em cena. Então na verdade, o burlesco é toda essa história de freaks, marginais, mulheres, pessoas que não eram aceitas da cultura tradicional oficial. Tudo que sai desse ambiente do patriarcado está nesse leque do burlesco”, conta a artista.

Marcelo D'Ávilla (de costas) dá os últimos retoques em Marquesa Amapola. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

O line-up de artistas contava também veteranas como a Regina Müller, uma das remanescentes da trupe Dzi Croquettes, conhecida como Dorothy Boom. Representando a minoria masculina, Marcelo D’Avilla fez uma performance satirizando o comportamento dos homens.

“Burlesco é uma sátira ao sistema e a desconstrução do próprio machismo, do próprio masculino, novos padrões e novas possibilidades do erotismo em cima desse corpo masculino sem ser necessariamente atrelado a uma cultura falocrática ou normativa, ou tradicional, autoritária ou patriarcal. O corpo do homem só como corpo do homem, sem o status homem. O corpo como corpo com pênis. Ou sem pênis. Sem o signo que ele carrega”, explica o artista.

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A grande apresentação no Teatro Rival. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Durante a apresentação mais importante do festival no teatro Rival, gente de todo tipo se espremeu no camarim para apertar espartilhos e carregar no glitter para apresentações que flertavam com a comédia, paródias e até tocavam em assuntos mais sérios como o preconceito contra a população LGBT e o recente assassinato de Marielle Franco, cometida a poucos metros do próprio teatro.

“Esse momento para mim é muito forte, muito importante. Na minha performance, estou trazendo a Marielle porque eu acho que precisa ser falado. A performance do burlesco é um momento político”, frisa Aline Marques durante os seus últimos preparativos de maquiagem.

Após quatro dias circulando em inferninhos jurássicos do Rio de Janeiro, pegando praia com mulheres de paetê e rodando os seios enfeitados com ornamentos coloridos e sacando que qualquer um que tenha uma história para contar pode também ter seu lugar no burlesco, a sensação final é que a cena burlesca é mais punk do que o próprio rolê punk.

Saque mais fotos do backstage clicadas pela Mariana Bernardes antes da grande apresentação no Teatro Rival:

O apresentador da noite, Vinícius César, alonga antes de encarar o grande público. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Uma das artistas posando no pequeno mercadinho temático montado próximo ao palco do Teatro Rival. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Muita expectativa e pancake no camarim com a Cherry Pop. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Vendedora de tapa-mamilos de lantejoula posa ao lado de ambulante de cigarro e chicletes na porta do teatro. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Ma. Ma. Horn apresentou seu "queerlesque" ao som de 'Estaladinha'. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Da esquerda para direita: Lou'Ann Devon, e Blondiabolique (sentada). Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Ruth Mezeck, a Madame Sassah, no camarim. "Escolhi o burlesco porque todo mundo é bem-vindo nele". Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Artistas trouxeram malas cheias de roupas e maquiagens para se preparar. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Lou'Ann Devon antes de sua performance sobre ser lésbica. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Ma.Ma. Horn ao som de 'Estaladinha'. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Uma das assistentes de palco, Petit Cappucine, pousa belíssima para nossas lentes. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Maria Sem Vergonha fuma um cigarro na pausa das apresentações. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Chayenne F e Petit Cappucine (de costas). Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Fairy Adams alonga com Iara Niixe, que fez uma apresentação vestida de Daenerys. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

A Polly, drag fina e perfeita. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

Darkcinammon, assistente de palco, dando os toques finais. Foto: Mariana Bernardes/VICE.

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