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Saúde

'Nós' é uma metáfora complexa sobre saúde mental negra

O terror noire de Jordan Peele reflete o que está sob a superfície da experiência negra.
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Crédito: Claudette Barius / Universal Pictures.

Nós, o retorno de Jordan Peele aos cinemas depois do megassucesso de seu filme vencedor do Oscar Corra!, lida com o tema de múltiplos eus. E assim, pode ser visto como uma metáfora para saúde mental, especialmente dentro da comunidade negra.

O enredo foca em Adelaide Wilson, que quando criança teve um encontro por acaso com um doppelgänger mau num parque de diversões na praia. Anos depois, já adulta, ela, o marido e os dois filhos voltam para sua casa de infância nas férias de verão. Aí começa a loucura, quando quatro seres malignos que se chamam de “sombras” e são idênticos à família Wilson invadem a casa. O filme tem uma reviravolta psicológica que literalmente acaba com (alerta de spoiler, e vai ter muito mais!) uma mulher descendo para o subsolo ao estilo Alice no País das Maravilhas enquanto segue vários coelhos na busca por uma rainha louca.

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Corra! era um comentário direto sobre racismo e antinegritude, que visava um público negro enquanto também entretinha o olhar branco. Nós, por outro lado, tem uma mensagem mais universal que lida com a dualidade da natureza humana. Cada personagem do filme, não importa a raça, tem um sombra. No final, é explicado que essas duplicatas tão clones criados por um projeto do governo que deu errado, depois abanados em túneis pelo país.

Mas falando metaforicamente, as duplicatas podem ser vistas como uma representação física de seus medos, ansiedades e instintos mais básicos. Lidar com essas manifestações de demônios internos é uma experiência com que qualquer pessoa consegue se identificar, independente da raça. Mas seria míope ignorar o fato que os personagens principais são uma família afro-americana ou achar que todos os desafios de saúde mental são iguais por todo o espectro racial.

A família Wilson representa um tipo de pessoa negra que não vemos tipicamente em filmes ou na televisão. Para começar, eles são bem de vida. O filme começa com eles viajando para sua casa de verão nas férias. Os pais, interpretados por Winston Duke e Lupita Nyong'o, têm estudo, com o personagem de Duke usando com orgulho o agora icônico moletom da Universidade Howard na maior parte do filme. Tudo isso indica um status de classe média alta, mas a negritude deles não permite que os Wilsons contornem o trauma que vem da opressão social, que toma forma em suas réplicas.

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Um tema pelo filme é a ideia de guerra de classes entre um grupo oprimido e um grupo privilegiado, o que pode ser interpretado como uma crítica racial. O filme faz referência ao Hand Across America, uma campanha ativista de 1986 na qual aproximadamente 6,5 milhões de pessoas deram as mãos de costa a costa dos EUA para levantar dinheiro para os sem-teto. E em se tratando de pessoas sem-teto, os negros são desproporcionalmente super-representados.

Segundo a National Alliance to End Homelessness, afro-americanos são 40% da população sem-teto dos EUA, mesmo sendo apenas 13% da população geral do país. Transtornos mentais sem tratamento deixam muitas pessoas suscetíveis sem segurança para manter uma moradia, particularmente os não-brancos. No contexto de saúde mental, o componente Hands Across America do filme é especialmente significativo, considerando que pessoas vivendo na pobreza têm mais chances de sofrer com transtornos mentais.

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos de Saúde Mental de Minorias dos EUA afirma que a pobreza afeta o status de saúde. Dados do departamento coletados de 2013 a 2014 descobriram que afro-americanos adultos tinha 10% mais chance de relatar problemas psicológicos sérios do que brancos não-hispânicos. Com base em estatísticas do CDC, o estudo deles descobriu que pessoas negras vivendo abaixo da linha da pobreza, ao contrário daquelas vivendo duas vezes acima da linha da pobreza, tinham três vezes mais chance de relatar problemas psicológicos.

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A Mental Health in America, uma organização sem fins lucrativos dedicada a bem-estar mental, relata que mais de 16% dos norte-americanos negros foram diagnosticados com um transtorno mental em 2014. Aproximadamente 6,8 milhões de pessoas, o que corresponde ao número de participantes da campanha Hands Across America, que o filme usa como uma força de união entre os sombras.

Além disso, multiplicidade é algo enraizado nas comunidades de pessoas não-brancas como meio de sobrevivência. Minorias precisam “trocar de código” ou mostrar traços da cultura dominante para se assimilar e evitar discriminação. Essa fratura do eu tem consequências reais e pode se desenrolar de várias maneiras. Em fevereiro, Thomas A. Vance, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Columbia, relatou que a comunidade negra tem taxas em ascensão de preocupações com saúde mental, destacando ansiedade e depressão. “Historicamente, a comunidade negra tem desvantagens de saúde mental por estar sujeita ao trauma através de escravidão, opressão, colonialismo, racismo e segregação”, escreve Vance.

Complicando isso ainda mais, falar sobre saúde mental ainda é algo estigmatizado dentro da comunidade negra, o que torna conseguir ajuda mais difícil para uma população em risco. A tensão entre a comunidade negra e saúde mental é exacerbada por uma história de abuso e negligência da comunidade médica. Mas, na era de memes que colocaram os negros dizendo “eu” e hashtags de cuidado mental, falar sobre saúde mental está se tornando menos tabu. Mesmo dentro da comunidade negra, cada vez mais figuras públicas estão falando abertamente sobre a questão.

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Em 2016, Kid Cudi se abriu sobre seus desafios de saúde mental e admitiu que tinha se internado por causa de depressão e impulsos suicidas. No mesmo ano, Kanye West foi hospitalizado por causa de uma psicose temporária. Em 2018, Taraji P. Henson fundou a Boris Lawrence Henson Foundation em homenagem ao pai, e numa carta aberta disse que a missão da organização é erradicar o estigma cercando saúde mental.

Enquanto a cultura de silêncio sobre saúde mental está mudando, a questão surge em Nós, dado que nenhum dos sombras consegue falar com exceção do clone de Adelaide, Red. Apesar da habilidade de Red de se comunicar, a voz dela é distorcida e rouca, como se falar causasse dor. Essa é uma das muitas sutilezas do filme fazendo referência às barreiras sobre abordar questões de saúde mental por pressão social.

Nós é mais que um filme de terror sobre mortes sangrentas por um gêmeo do mal. O filme ilumina uma questão importante que tem um impacto esmagador em comunidades marginalizadas. O terror real não é o que vemos na tela, mas o que está sob a superfície de todos nós.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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