FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Satélite do amor: Uma entrevista com Victor Bockris, o biógrafo do Lou Reed

Em ‘Transformer — A História Completa de Lou Reed’, Bockris remonta vida e obra do homem controverso e responsável por algumas das pepitas mais brilhantes da história do rock.

Lou Reed na época do lançamento de 'New York' (1989). Foto: reprodução.

Na primavera de 1959, Lou Reed (1942-2013), então com 17 anos de idade, entrava em uma sala de operações no Creedmore State Psychiatric Hospital, em Long Island, próximo a Nova York, para dar início a uma série de tratamentos de eletrochoque. "A última coisa que viu antes de perder os sentidos foi uma ofuscante luz branca", conta o jornalista e escritor Victor Bockris, autor de Transformer - A História Completa de Lou Reed, recentemente lançado no Brasil pela editora Aleph.

Publicidade

"Electricidade vem de outros planetas ", cantaria Lou dez anos depois em "Temptation Inside Your Heart", som do Velvet Underground. E eletricidade também parece ter sido responsável pela faísca inicial que daria a partida na carreira do cantor e compositor nascido no bairro do Brooklyn, em Nova York, a julgar pela biografia escrita por Bocrkis. As primeiras páginas do livro descrevem as sessões de eletrochoque (três vezes por semana durante um período de 56 dias) pelas quais o artista passou no final da adolescência, por decisão dos seus pais, que preocupados com as inclinações homossexuais do filho seguiram as orientações de um psiquiatra.

Lou Reed aos 17 anos. Foto: reprodução.

Eletricidade seria ainda uma importante característica na sonoridade dissonante do Velvet, a primeira banda importante na qual Reed tocou e que se tornaria uma das mais influentes na história do rock. E certamente eletricidade seria a palavra mais adequada para descrever o cotidiano de Reed durante boa parte dos anos 70 — período em que se lançou em carreira solo, gravando clássicos como Transformer (1972) e Berlin (1973) —, quando o consumo desenfreado de anfetamina fazia com que ele ficasse acordado por até três dias seguidos. Um manifesto apaixonado presente no encarte de Metal Machine Music, de 1975, (em si um disco que é pura eletricidade, composto apenas de feedback e distorções de guitarra) deixa evidente suas preferências durante esse período: "Minha semana ganha do seu ano".

Publicidade

Quanto mais afastado dessa eletricidade, como nos discos pop que lançou no meio dos anos 80, mais insossa e desinteressante a carreira de Lou se tornaria, pelo menos até que uma nova fase, mais calma e madura, mostrasse que ele ainda tinha cartas na manga durante suas últimas décadas de vida.

O livro escrito pelo jornalista Victor Bocrkis resgata essas e outras histórias, fazendo um apanhado bastante crítico da carreira de Reed, ao mostrá-lo muitas vezes como uma pessoa instável e difícil de lidar, ao mesmo tempo em que louva o cantor como um dos grandes artistas do século 20. Nascido na Inglaterra, Bocrkis viveu em Nova York durante a década de 70, onde trabalhou para a revista Interview, que na época era propriedade de Andy Warhol, e conviveu e entrevistou boa parte dos artistas da cena musical e artística da cidade na época — mantendo inclusive uma amizade com Lou durante seu período mais "junkie". Em entrevista por skype, Bocrkis, que também escreveu livros sobre Muhammed Ali e Keith Richards, falou comigo para o Noisey relembrando da sua relação de amor e ódio com o cantor e como mudou sua opinião sobre ele ao longo dos anos.

Creedmore Psychatrich Hospital. Foto: reprodução.

Noisey: Você já havia escrito um livro sobre o Velvet Underground anteriormente (Uptight, lançado em 1983). Quando e por que você decidiu escrever o livro sobre Lou Reed?
Victor Bockris: Eu conheci Lou em 1974 e me encontrei diversas vezes com ele ao longo dos anos 70. Fomos amigos por um período de aproximadamente seis anos, e ao longo da minha vida escrevi diversas vezes sobre ele. Só consigo escrever biografias sobre pessoas que eu conheço pessoalmente. Se eu nunca encontrei a pessoa ou não passei algum tempo conversando com ela não me sinto capaz de fazer um bom trabalho.

Publicidade

Depois que terminei de escrever minha biografia sobre Keith Richards, em 1992, resolvi começar outro livro. Então Lou Reed era um bom candidato, especialmente naquela época. Em 1992, Lou estava em um período alto na sua carreira, vindo de uma sequência de três discos aclamados — New York (de 1989), Songs For Drella (1990) e Magic And Loss (1992). Era uma boa época para se vender um projeto assim para uma editora nos EUA, e eles toparam me pagar o mesmo valor dos meus últimos dois projetos, livros sobre Andy Warhol e Keith Richards.

Fiz com grande alegria, me diverti mais fazendo esse livro do que qualquer outro que eu escrevi. Eu já não estava mais encontrando pessoalmente com ele, mas conhecia muitas pessoas com quem ele teve contato e foram importantes para sua carreira. Então foi uma boa época para escrevê-lo.

Andy Wahrol, Nico e o The Velvet Underground. Foto: reprodução.

Quanto tempo você passou escrevendo?
O livro foi publicado na Inglaterra no final de 1994 e nos EUA no ano seguinte, então foram dois anos e meio trabalhando nele. Foi o mesmo tempo que passei fazendo o livro de Keith Richards, embora eu tivesse passado muito mais fazendo o do Andy Warhol. Uma biografia é uma tarefa difícil, porque você sempre se pergunta qual será a forma do livro. E numa biografia o assunto dita a forma, a maneira como você irá ler o livro. Enquanto você coleta o material e organiza as entrevistas, você está sempre lutando com a questão de como irá escrever. Muitas das entrevistas te informam isso, porque há tantas vozes falando sobre o assunto, e você começa a desenvolver uma espécie de sonoridade própria, e parte daí. Mas dois anos e meio é um prazo razoavelmente rápido para escrever uma biografia grande.

Publicidade

Você consegue se lembrar da primeira vez em que ouviu alguma música do Lou Reed?
Sim, foi no verão de 1967, eu estava de férias no Arizona e naquela época estavam tocando "Heroin" no rádio. Você não espera que toquem uma música assim no rádio, mas eu ouvi e pensei que soava bastante como Bob Dylan, como algo do seu período elétrico, que ainda era recente, mas mesmo assim tinha um som bastante distinto. E então eu fui para a faculdade no mesmo ano, e muitos estudantes estavam ouvindo os discos do Velvet. Esses estudantes em geral eram o pessoal mais artístico da faculdade, e eles tinham o primeiro disco, que tinha saído em março de 67 (The Velvet Underground And Nico), e foi aí que realmente me envolvi com o som. Para mim se tornou uma música muito emotiva, que me acompanhou ao longo da vida em diferentes períodos. E depois veio a carreira solo do Lou Reed, que foi outra experiência totalmente diferente. Mas as raízes da minha descoberta certamente estão ligadas ao Velvet Underground.

Como era a experiência de vê-lo ao vivo nessa época, você se lembra da primeira vez que você viu ele tocando?
A primeira vez que o vi tocando foi em Nova York no outono de 1974. Ele deu ingressos para mim e mais dois amigos para um show, porque éramos muito próximos nessa época, e ele queria que nós o víssemos tocar. Ele liderava uma banda que se posicionava de modo triangular em relação ao microfone, então ele ficava no centro com os dois guitarristas principais um de cada lado e o baterista um pouco mais ao fundo, no que parecia ser uma flecha direcionada à audiência. Foi uma performance extremamente poderosa, me lembro dos meus amigos no final dizendo que aquilo era tão bom quanto Rimbaud. Minha geração foi muito inspirada por Rimbaud, e víamos conexões entre o trabalho de Lou e o de poetas como Baudelaire e Paul Verlaine. Ele tinha esse incrível carisma e segurava a plateia na palma da mão. Mas ao mesmo tempo havia essa espécie de barulho emocional, as pessoas gritavam para ele. O que mais gritavam era "chupa-rola", "chupa-rola" ("cocksucker" no original). Eram em sua maioria caras novos que pareciam confusos sobre sua sexualidade. E todos pareciam atraídos por Lou apesar dessa reação agressiva. Era uma espécie de amor agressivo eu acho.

Publicidade

Você tem que lembrar também que 1974, em Nova York, foi um ano importante no qual a população homossexual começou a ficar mais em evidência. E Lou despontou como uma espécie de porta-voz [desse público], pelo menos no meio do rock, quando escreveu canções que apoiavam os gays em discos como Transformer. Boa parte de sua audiência era composta por gays e isso teve muito a ver com seu sucesso na época.

Por que você acha que nos anos 80 ele tentou se afastar de certa maneira desse tipo de imagem? Foi uma época em que não só o som dele ficou mais comercial mas ele também passou a renegar esse tipo de conexão com a cena gay e parte do seu trabalho anterior.
Está absolutamente correto o que você está dizendo. É algo interessante, acho que houve diversos motivos para isso. Em primeiro lugar, ele estava bastante desesperado no final dos anos 70. Ele estava em um estado ruim, tinha se tornado um alcoólatra e tinha usado anfetamina por muitos anos. Isso estava começando a prejudicar seu corpo e sua mente. A força de Lou Reed é que ele é uma pessoa muito disciplinada, ele atravessou momentos em sua carreira que foram os piores pelos quais alguém poderia passar. E chegou a um ponto no qual, por volta de 79, ele encontrou aquela que seria sua segunda esposa, Sylvia, que fez emergir essa outra persona dele. Eu mesmo nunca considerei Lou Reed gay, ele sempre me pareceu um cara heterossexual, apesar de que, quando eu o conheci, ele vivia com uma drag queen, algo difícil de explicar (risos). Mas ele não passava a imagem de um cara gay. Acho que ele era bissexual, obviamente.

Publicidade

Sylvia e Lou. Foto: reprodução.

Sempre houve essa confusão, porque Lou Reed escrevia músicas sobre pessoas que viviam esse estilo de vida, e o público deduz que todas elas são pessoais, mas obviamente nem todas eram sobre ele. Ele sempre brincou com sua persona, e no processo de se casar novamente e passar a fazer um som mais comercial, ele também adotou uma atitude mais vendável. E teve resultados, porque depois que ele rejeitou seu lado gay a venda dos discos disparou. Os discos que ele lançou após Blue Mask (1982), que hoje são considerados os piores, na verdade venderam mais do que os anteriores. Então essa estratégia funcionou para ele, e por um bom tempo ele aproveitou o conforto de ser cuidado por uma mulher, que fazia o papel não apenas da sua esposa, mas também de mãe, gerente e anjo da guarda. Ele usou isso a seu favor.

Uma das coisas sobre Reed é que ele foi extremamente agressivo com jornalistas ao longo dos anos, e tentou controlar o que as pessoas pensavam dele ao exigir que acreditassem em tudo o que ele dizia. Havia momentos em que a coisa era meio absurda, mas existia essa cultura entre os jornalistas de rock, que em grande parte embarcavam na onda e acreditavam em tudo. O que de certa maneira não é um problema, porque artistas realmente atravessam períodos diferentes e você tem que permitir que eles façam o que eles querem e evoluam como quiserem.

No final das contas foi um processo que o conduziu de volta para uma boa posição, porque no final dos anos 80 ele fez New York, um de seus melhores discos, e entrou novamente numa fase diferente, e ele se reinventaria ainda outras vezes, foi uma longa carreira. Então eu não acho que ele deva ser criticado. Se você está interessado no trabalho dele e quer entendê-lo, você tem que entender todos esses aspectos da sua personalidade. Ele é de fato um heterossexual, se ele quiser ser, pelo menos. Para mim o único motivo em se discutir a sexualidade de um artista é se ela é parte do seu trabalho. Mas no caso de Lou é parte da sua obra, então é um assunto perfeitamente válido para se discutir.

Publicidade

Ao longo do livro, a impressão que se tem dele é a de uma pessoa bastante autoritária, muitas vezes perversa, e de péssimo humor. Qual foi a impressão que você teve dele quando o encontrou pela primeira vez?
Quando eu me encontrei com Lou Reed em 1974 ele foi a pessoa mais charmosa e bem humorada que já encontrei na minha vida. Ele foi extraordinário, era um cara muito inteligente, que havia lido muito, era um poeta basicamente. Eu também era poeta nessa época, e nós tivemos esse tipo de relação que era intelectual, surpreendente e excitante, e havia uma camaradagem. Ele foi amável e Lou Reed sempre teve esse lado na sua personalidade. Você tem que entender que ele aprendeu com Andy Warhol como controlar a imprensa. Ele fazia isso criando uma espécie de caricatura de desenho animado, um personagem reconhecível que pudesse ser identificado como Lou Reed. Você se apresenta para a imprensa dessa maneira.

Lou e Laurie. Foto: reprodução.

É verdade, porém, que Lou era uma pessoa muito perturbada. Ele operava num nível tão alto de criatividade e dúvida — algo que todo artista faz — que às vezes ele podia estar num humor muito bom e outras em um humor péssimo. No final da sua vida, quando ele começou o relacionamento com Laurie Anderson, ele se tornou uma pessoa muito mais simpática do que as pessoas imaginavam. Quando ele encontrou Laurie, ele achou finalmente uma igual, uma parceira de alma. Então ele podia continuar sendo Lou Reed, mas não era o bêbado maldoso de épocas anteriores.

Publicidade

Álcool afetava seu comportamento, mas como eu disse, ele sabia o que estava fazendo ao se apresentar como uma pessoa má. E ele podia ser bem perverso com as pessoas, mas era a perversidade de um artista que estava fazendo seu trabalho. Você não julga sua personalidade com a de uma pessoa normal, mas a de uma pessoa que era constantemente arrebatada por um rio de criatividade e dúvida, algo que caminha lado a lado com a criatividade.

De todas as entrevistas que você fez para o livro, quais foram as mais importantes e as mais revelatórias?
Responder essa é fácil. A entrevista mais importante para o livro foi feita com uma mulher chamada Shelley Albin, que foi a primeira namorada e musa de Lou, com quem ele morou quando estava na universidade em Syracuse, por volta de 1961, 62. Eu coloquei um anúncio no New York Times pedindo para as pessoas que o conhecessem para entrar em contato comigo. Ela me ligou, e eu fui para a Califórnia e fiquei no apartamento dela por uma semana, entrevistando-a em conversas que davam 10 horas de fita por dia. Eles continuaram em contato por muitos anos após o namoro. Começou como um clássico primeiro relacionamento na época da faculdade, e como todas as coisas assim eles acabaram terminando. Lou nunca a esqueceu e costumava cantar sobre ela em diversas canções. O terceiro disco do Velvet Underground, de 1969, foi em grande parte inspirado em Shelley, com quem ele estava saindo novamente na época. Então ela tinha diversos insights interessantes sobre o desenvolvimento de Lou Reed, como ele se tornou o que é e como ele seguiu em frente.

Publicidade

Eu continuei em contato com ela durante toda a escrita do livro e isso me deu muita força. É um truísmo quando você escreve sobre uma estrela do rock falar com mais mulheres do que homens. Mulheres são muito mais perspicazes, dispostas a discutir coisas como os sentimentos ou olhar para o lado psicológico de uma pessoa. A maioria dos homens é muito competitiva e em geral não tem muito para lhe dizer a não ser contar uma história engraçada. Então eu tive muita sorte em falar com um número grande de mulheres, e Lou é claro é um "ladie´s man", as mulheres são muito atraídas por ele, e ele teve alguns relacionamentos maravilhosos. Essa foi definitivamente a entrevista mais interessante.

Lou Reed em 1975. Foto: reprodução.

Houve alguma história sobre Lou que te deixou chocado, algo que você não sabia antes, nem tinha ouvido falar?
Essa é uma pergunta interessante. É uma coisa que realmente acontece quando você está escrevendo biografias, descobrir coisas que realmente te chocam sobre as pessoas. Eu não descobri nada que me chocou de verdade, porque tudo em Lou é sobre chocar, de certa maneira (risos). E eu já tinha tido a experiência de me chocar com ele muitos anos antes de começar a escrever o livro. Em um nível pessoal, nós tivemos um rompimento clássico quando ele me acusou de roubar algo dele, mas eu não tinha feito isso. Essas coisas acontecem. Mas eu sabia como ele era quando ficava com raiva de alguém, era algo que eu vivi. E muitas das coisas que Shelley me contou não foram exatamente chocantes, mas histórias detalhadas que me ajudaram a compor essa pessoa contraditória que era Lou Reed. Ela me mostrou as contradições que estavam na raiz da sua personalidade.

Publicidade

Lou também era famoso por discutir e brigar com jornalistas em diversas entrevistas. Qual você acha que foi a melhor entrevista que ele deu?
Eu adoro essa pergunta porque sou muito fascinado com entrevistas enquanto uma forma e acho que é uma forma que ainda não foi totalmente explorada. Eu acho que sem dúvida são as famosas entrevistas feitas por Lester Bangs. Bangs é considerado por muitos o maior crítico de rock que já viveu, e adorava Reed pelas razões corretas, ou seja, pela música, mas mesmo assim estava disposto a enfrentá-lo. Foram três entrevistas que eles fizeram, aproximadamente entre 1975 e 76, nas quais eles realmente discutiram um com o outro, mas elas eram muito reveladoras, além de serem muito boa publicidade para Reed.

Existem algumas grandes entrevistas de rock’n’roll. John Lennon e Bob Dylan, por exemplo, eram ótimas pessoas para se entrevistar. Lou também, embora às vezes ele pudesse ser chato quando entrava em detalhes técnicos de gravação. Mas ele nunca entendeu o poder extraordinário que essas entrevistas tinham, elas fizeram um bem incrível para sua carreira, além de constatar o fato de que as pessoas estavam interessadas em ler o que ele tinha para dizer. Muitas pessoas fizeram entrevistas reveladoras e ótimas com Lou ao longo dos anos, mas Lester Bangs definitivamente fica com o prêmio.

Lou entrevista o amigo Roderick Romero em seu apartamento com vista para o Hudson River, em 1979. Foto: reprodução.

Publicidade

O livro abre falando dos tratamentos de eletrochoque que ele sofreu, e a impressão inicial é a de que os pais de Lou eram pessoas bastante cruéis, mas conforme você lê o livro percebe que não era bem assim, eram pais que pareciam se importar e gostar dele. Por que então você acha que eles decidiram fazer isso?
Ele me falou muito sobre isso, e também falei com outras pessoas a respeito. Eu cheguei inclusive a visitar o local onde ele fez esses tratamentos, as salas onde fizeram as sessões, e falei com os médicos de lá também. Eles resolveram colocá-lo nesse tipo de tratamento porque naquela época, em 1959, havia um forte movimento para erradicar a homossexualidade nos EUA. Acusações de homossexualismo eram usadas para prejudicar a carreira de algumas pessoas e para acabar com elas de muitas maneiras, havia uma campanha acontecendo com esse objetivo. E Lou tinha muitos sentimentos homossexuais, mas, na época, muitos caras agiam como gays para aborrecer seus pais, porque era algo que deixava as pessoas com raiva. Seus pais foram consultar um psiquiatra na época com as dúvidas típicas: "Meu filho parece ser homossexual, nós não sabemos o que fazer". E foi dito a eles que o melhor a fazer era uma série de tratamentos de choque. Em 59, a maioria das pessoas nos EUA viam seus médicos como advogados ou deuses talvez. Você simplesmente fazia o que um médico lhe dizia, não era cogitado dizer não. E eles seguiram em frente sem realmente compreender o que estavam fazendo, sem saber a intensidade e os efeitos colaterais desse tipo de tratamento.

Publicidade

Você acha que eles depois se arrependeram de ter feito isso?
Sim, eles se arrependeram muito. Uma das primeiras coisas sobre as quais Lou me falou foi sobre isso, e sobre como ele perdia a memória a curto prazo, como ele lia um livro e de repente já não lembrava mais do que tinha acontecido na página anterior e esse tipo de coisa, o que era terrível para alguém como ele que almejava ser um escritor. Mas eu acho que ele foi "eletrificado" por esse tratamento de muitas maneiras. Foi uma espécie de pontapé para sua carreira de diversas maneiras, e ele iria eletrificar o mundo. Eletricidade, eletrocução e o conceito de ser eletrocutado, além de outros temas relacionados, se tornariam um assunto constante ao longo da sua carreira. Poderia ter sido uma tragédia e o transformado em um vegetal, mas fez com que ele criasse suas próprias coisas. Então ele usou isso de uma maneira favorável.

Para os pais sim, foi diferente. Mas nessa época havia uma distância tão grande entre pais e filhos, que eventos como a Guerra do Vietnã causaram rupturas verdadeiras dentro de muitas famílias. As pessoas mais novas eram contra, e as mais velhas claramente a favor da guerra, e isso causou uma divisão nos EUA. Isso ainda não estava acontecendo em 59, mas o tipo de contracultura que eventualmente explodiu nos anos 60 já estava em gestação. E Lou foi salvo pelo rock, como ele escreveu na música "Rock´n´Roll": "despite the amputations/ you could still dance to a rock´n´roll station". É um manifesto de Lou, foi sua maneira de se afirmar. E ele teve a coragem de agarrar o touro pelos chifres e seguir em frente, porque a maioria das pessoas que se envolviam com rock não passavam dos primeiros seis meses, sabe? Eles saiam fora, é um negócio muito difícil de aguentar. Mas Lou foi seguindo em frente e se tornando cada vez mais forte nisso. Eu acho que como um biógrafo você olha em retrospecto e pensa "obrigado a deus por esses tratamentos de choque" (risos). Foi algo que mandou ele para a estratosfera, para o "satélite do amor".

Publicidade

O livro se refere ao Velvet em muitas passagens como a segunda banda mais importante da história (após os Beatles) e Lou como um dos quatro ou cinco artistas solo mais importantes da história. Você ainda pensa assim?
Acho que sim, porque os três grandes artistas dos anos 60 foram os Beatles, os Rolling Stones e Bob Dylan. Se você pegar os discos que esses artistas gravaram entre 66 e 68 e comparar com o primeiro disco do Velvet e White Light/White Heat (1968), você percebe que eles estavam bem a frente do resto. A maneira como eles experimentaram com o rock depois se tornou popular entre muitas bandas. Os Beatles usavam cítara e os Rolling Stones experimentavam coisas aqui e ali, mas a maneira como a música do Velvet soava e os tipos de zumbidos que eles criavam eram mais ousados e certamente colocam eles no topo. Acho que realmente só os três artistas que eu citei foram mais importantes que o Velvet nos anos 60, e foram responsáveis pela disseminação do rock na nossa cultura, o que só cresceu desde então, para todas as direções. Se você analisar a evolução da música dos anos 60 até hoje, vai descobrir que a influência de Lou Reed foi ainda mais proeminente do que Lennon e McCartney. Os Beatles fizeram músicas maravilhosas, mas nem tanta gente foi impulsionada pelo que eles criaram como pelo o que Lou fez. O Velvet era muito mais intenso, mais inventivo e criativo com a música que eles faziam. Certamente mais do que Bob Dylan também. Mas é claro que a carreira de Lou não se tornou tão mitológica e ele não teve a mesmo nível de popularidade dos outros. Ele estava meio que constantemente dentro e fora das sombras, sabe? Mas historicamente e em termos de importância o Velvet está no mesmo nível, ou talvez até mesmo a frente de todos esses artistas.

Publicidade

Você já escreveu livros sobre o Velvet, sobre Lou Reed, John Cale e Andy Warhol. Faria algum outro trabalho sobre eles?
Não, mas devo dizer que eu acho que até agora não surgiu nenhum livro realmente impressionante e completo sobre a banda, feito com grande profundidade. Alguém poderia escrever um grande livro sobre isso, mas não é algo para mim. Eu fiz muitos trabalhos relacionados, então não é algo que eu queria revisitar, mas acho um grande assunto. Essa é uma das grandes histórias de todos os tempos, a biografia do Velvet Underground.

John Cale, Lou Reed, Patti Smith e David Byrne no palco do Ocean Club em 1976. Foto: reprodução.

Você não consideraria escrever um livro sobre Nico, por exemplo?
Não, não. A história de Nico… eu tentei escrever a biografia de um poeta beatnik chamado Gergory Corso dez anos atrás e eu parei, porque ele era um viciado. Eu escrevi livros demais sobre pessoas envolvidas com heroína, e percebi que uma vez que as pessoas se envolvem demais com a droga a vida delas não é tão interessante. Infelizmente ela usou heroína por um período muito longo, e embora ela tenha feito discos maravilhosos com John Cale, eu sinto que ela desperdiçou sua carreira, ela poderia ter sido uma grande estrela. Mas não vale a pena escrever um livro sobre um viciado.

Você chegou a conhecê-la na época?
Eu me encontrei com ela diversas vezes, a primeira foi no apartamento de Lou em 1974, e foi um momento singular porque ela tinha acabado de vir da Alemanha, esperando que Lou fosse escrever novas canções para um disco dela. Eu passei por lá dois ou três dias depois de ela ter chegado, e a atmosfera era muito estranha , Lou não a estava tratando muito bem. Haviam algumas poucas pessoas sentadas com ela na mesa, e ela era muito bonita — mesmo que já não fosse mais a mesma Nico de 1966, ela tinha uma grande presença. E eu era muito jovem, um poeta de aparência andrógina e meio pálida, e ela começou a me encarar. E eu estava na mesa também, não tinha como não olhar de volta. E de repente eu vi Lou erguendo a cabeça do sofá no canto da sala e dizendo pra mim: "Você não tem a menor chance" (risos). E a pobre Nico também não teve sua chance, porque ele a botou para fora no dia seguinte.

Publicidade

Eu me encontrei com ela diversas vezes, costumava vê-lab no Max´s Kansas City e no bar do Chelsea Hotel, coisas assim. Ela era uma pessoa amável, acho que ela precisava de muita proteção, e John Cale, é claro, a ajudou muitas vezes. Mas Lou a tratou muito mal, acho que um dos piores episódios da vida dele foi a maneira como ela a tratou. Existiram razões pra isso: eles tiveram um relacionamento no começo da carreira, em 1966 na Factory, e ela o deixou. Mas meio que "e daí", sabe? Não era grande coisa, não é como se eles morassem juntos ou coisa parecida, mas ele parece ter guardado uma raiva profunda dela. Ele me disse diversas vezes o quanto tinha gostado dela, até me mostrou uma carta que ela tinha escrito para ele.

Não se esqueça que Andy Warhol foi o grande responsável por fazer de Nico vocalista do Velvet Underground. Lou aceitou até certo ponto. Claro que ela não cantaria todas as músicas, mas é algo notório que o cantor e compositor de uma banda se coloque de lado e deixe uma mulher sem experiência nenhuma cantar. E ele só deixou porque Andy queria, e nessa época a banda era em grande parte a banda dele. As canções que ela cantava tinham sido compostas porque Andy pediu para Lou. Então ele devia ter um certo ressentimento profundo por causa disso, apesar de ela ter ajudado o disco a ser bem sucedido. Assim é a personalidade de um artista.

Sua opinião sobre Lou mudou com o passar dos anos?
Sim, mudou. A primeira versão do livro foi publicada em 1994, e eu atualizei o livro recentemente. Quando eu tinha terminado a primeira versão do livro eu não estava tão feliz com Lou. Naquela época, entre 1990 e 1992, ele estava se divorciando da sua esposa e estava obviamente sob grande estresse, e sendo espetacularmente antipático com as pessoas em diversas ocasiões, de uma maneira injustificável. E ele também estava se isolando bastante. Eu senti pena dele, mas também me senti muito próximo enquanto estava entrevistando todas essas pessoas que estavam lidando com ele na época, ouvindo histórias do que ele estava fazendo. Me parecia que com 50 e poucos anos, que é a idade que ele tinha na época, ele meio que havia empacado.

Ele estava tratando muito mal sua antiga esposa, que havia dedicado 10 anos da vida dela para ajudá-lo, e de certa maneira salvou sua vida e carreira, tornando ele uma estrela muito maior do que era. E também tinha a maneira como ele havia tratado o Velvet na turnê que eles fizeram quando voltaram. A maneira como ele tratou Sterling Morrisson e os outros depois disso foi tão horrorosa. Eu estava bem próximo da banda naquela época e me senti péssimo com isso.
Lou Reed em fotografia do Andy Warhol. Foto: reprodução.

Mas quando eu revisitei sua vida em 2013 e 2014, após a sua morte, eu fiquei encantado em descobrir todo esse mundo novo que ele construiu através de sua associação com Laurie Anderson. Ela tinha essa aparência andrógina, quase parecida com um garoto, então acho que ele encontrou tudo nela. Além dessa ambivalência sexual ele também encontrou nela uma figura à Andy Warhol, que tinha seu próprio estúdio enorme e organizado, cheio de pessoas trabalhando e gente indo e vindo. Então sua vida e sua carreira cresceu astronomicamente nesses 20 anos. Não só na música, ele publicou livros de fotografias extremamente bons. Além disso ele se tornou um personagem em Nova York, podia ser visto saindo o tempo todo, encontrando as pessoas e as encorajando, e estava feliz em estar vivo. Então eu meio que me apaixonei por ele de novo, porque conclui que tinha voltado a ser a pessoa que eu havia conhecido originalmente, já que quando acabei a primeira versão eu estava louco com ele.

Quando você se dedica a passar tanto tempo pesquisando sobre uma pessoa, ela não vai embora da sua cabeça mesmo quando você está dormindo. Você fica realmente envolvido quando escreve um livro sobre alguém. E eu ligo muito para as pessoas sobre as quais eu escrevo. Então foi uma grande alegria voltar a trabalhar no livro e perceber como sua vida havia evoluído. E acho que seu último disco é provavelmente o grande disco perdido que uma estrela do rock já fez. E é bom que muitas pessoas não tenham gostado. Quando Berlin saiu em 1973, as pessoas tiveram o mesmo tipo de reação, e agora ele é considerado um dos melhores discos já feitos. É um ótimo sinal que Lou tenha continuado a ser controverso mesmo quando já estava prestes a morrer. E também foi um grande sucesso, vendeu muito. Foi um grande triunfo, e fiquei muito feliz com isso. As pessoas continuarão a discutir Lou Reed por muito tempo ainda.

Quais são seus discos favoritos dele, e os que você menos gosta?
Entre os discos solo acho que seria Transformer, Berlin, o disco ao vivo Rock´n´Roll Animal (1974), New York, Ecstasy (2000) e Lulu (2011). Acho que esses são os discos mais passionais e expressivos. E do Velvet acho que os discos que eu mais escuto são o primeiro e o terceiro. O terceiro, The Velvet Underground (1969), que foi feito após a expulsão de John Cale da banda, é muito diferente dos anteriores, e tem canções de amor maravilhosas, como "Pale Blue Eyes" e "Some Kinda Love". E eu aprecio Lou Reed principalmente como autor de canções de amor, mas as pessoas não viam ele dessa maneira. Uma vez eu disse pra ele que ele deveria lançar um disco chamado Love Songs, e ele respondeu que era uma ótima ideia, mas não faria isso por causa da sua imagem.

Eu acho que ele mudou o rock, o transformou em um formato muito mais literário, e ele é muito amado por isso. Se você alinhar todos os discos que ele fez, incluindo alguns dos discos ao vivo que também eram obras de arte, você tem a versão dele da grande novela americana. A história da jornada de um homem através de tempos dramáticos, dos anos 40 até 2013, por meio de regiões bem obscuras, mas trazendo a informação de volta para nós, os ouvintes, os fãs e amantes de arte. O que ele fazia era arte, ele foi um artista, um escritor, mas sobretudo um cantor e guitarrista, ele também fazia rock´n´roll. Eu sempre amei a música "Sweet Jane", na qual ele canta "Me, I’m in a rock´n´roll band". O quanto ele tinha orgulho disso.

Eu não gosto muito dos discos dos anos 80, como Mistrial (1986) e New Sensations (1984), que eu quase não ouço. The Bells (1979) é interessante, quer dizer, algo que era comum em Lou é que ele tinha discos com apenas uma ou duas grandes músicas, como Street Hassle (1978), por exemplo. Algumas das canções são medíocres ou meia-boca. Então eu gosto de The Bells basicamente por causa da música-título. Acho que os anos 80 são o período que eu menos gosto no trabalho dele. Eu não gostei tanto de Magic and Loss (1992), eu acho que ele se perdeu um pouco, se tornou meio estudioso demais. Imagine ver as músicas ao vivo, era muito chato, ele parecia um professor colocando seus óculos e lendo as letras de um monitor, e exigindo que a audiência ficasse quieta enquanto ele recitava essas longas letras sobre perda. Também não gosto de Songs for Drella (1990), que acho um disco muito desonesto. Lou tinha um relacionamento muito complicado com Andy Warhol por culpa dele mesmo, e acho que ele fingia ser uma amigo muito mais próximo de Andy do que ele realmente era. O que ele diz nesse disco não é tão interessante, com exceção de uma música, "A Dream", na qual as letras são tiradas dos diários de Andy e recitadas por John Cale.

Burroughs e Lou. Foto: reprodução.

Você está escrevendo um novo livro agora. Sobre o que ele é?
Sim, estou escrevendo um novo livro, que se chama Punk Writer - A Way of Life. É sobre minha carreira como escritor, a maior parte sobre o convívio com todas essas pessoas sobre as quais eu escrevi. Sobre como foi conviver e escrever sobre Muhammed Ali ou Andy Warhol ou Debbie Harry. É também sobre a minha vida em Nova York durante os anos 70 e 80, foi uma época muito excitante. Eu acredito que o último grande movimento artístico nos EUA ocorreu entre 1977 e 1983. Era uma época incrível porque você tinha essa quantidade enorme de artistas de todos os lugares do mundo morando em Nova York, com Andy Warhol no centro disso tudo. E William Burroughs, dos beats, que era o avô do punk. A explosão do punk foi um catalisador de muitas coisas, era uma época muito emocionante. Eu quero falar daquela época tanto quanto do meu envolvimento com ela, porque eu acredito que aqui nos EUA nós perdemos o sentido de que a nossa comunidade artística tenha alguma importância. Nós tivemos uma grande comunidade artística nos anos 70, e a AIDS destruiu tudo isso nos anos 80. Então para mim isso é um grande assunto sobre o qual escrever.

Siga o Noisey nas redes Facebook | Soundcloud | Twitter